Pasárgada

…Cheguei no momento da criação do mundo e resolvi não existir. Cheguei ao zero-espaço, ao nada-tempo, ao eu coincidente com vós-tudo, e conclui: No meio do nevoeiro é preciso conduzir o barco devagar.


Serei o que fui, logo que deixe de ser o que sou; porque quando fui forçado a ser o que sou, foi porque era o que fui.

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domingo, 13 de janeiro de 2019

A VIDA RELIGIOSA NUMA COMUNIDADE FRATERNA


VIDA EM FRATERNIDADE E MISSÃO

A arquitectónica de vida em comunidade Fraterna – Condivisão (Rm 12,3-8; Ef 4,1-16)

A comunidade religiosa é o lugar de fraternidade. Mas com a condição de que estejam vivos e operantes os factores que constituem o seu fundamento: carisma, espiritualidade e missão.
O papel decisivo da comunicação.
A fraternidade na comunidade religiosa não é um facto automático, alguma coisa que vem da carne e do sangue ou da afinidade de gostos ou da mentalidade. É um DOM que vem de outra parte e que ao mesmo tempo se constrói pacientemente. É o mistério da origem divina de nossas convivências e do esforço humano necessário para edificá-las. Exactamente a síntese entre estes dois componentes, entre o dom e a tarefa, dá lugar àquela que podemos chamar de arquitectura da comunidade religiosa. Isto é, indica os componentes fundamentais, as estruturas portadoras desta obra divino-humana.
O fundamento da construção: o carisma
Na base de um projecto comum de uma consagração Religiosa há uma idêntica chamada da parte de Deus, idêntica porque ligada a um mesmo carisma, e por isso orientada para um mesmo modo de ser, de rezar, de fazer apostolado, de viver a própria fraternidade… enfim, para a mesma identidade. O carisma religioso é, de facto, a revelação do meu EU, o nome que Deus me deu, aquela especifica semelhança com Deus que eu sou chamado a exprimir e na qual consiste a minha pela realização. – Sentido de pertença.
Pois bem, numa comunidade se condivide o mesmo carisma, a mesma identidade. É exactamente daqui, da condivisão de algo fundamental como a identidade, que nasce a fraternidade.
É o carisma que nos une em comunidade, por um vínculo radical, mais forte do que a carne e o sangue, e tudo mais que se poderia condividir e que nos torna de certo modo semelhantes em nossas comunidades, por aquilo que somos e sobretudo por aquilo que somos chamados a ser.
Por isso, a aprofundada compreensão do CARISMA leva a uma clara visão da própria identidade, em torno da qual é mais fácil criar unidade e comunhão. É isto exactamente porque, em comunidade, se descobre que todos carregamos o mesmo nome, ou somos chamados a exprimir e realizar a idêntica semelhança com Deus (aquela continuidade na componente mística do carisma, e que nos reenvia àquela teofania que está na origem de todo carisma. Numa palavra, o carisma por sua própria natureza, cria comunhão; a fidelidade a ele gera fraternidade.
As paredes da construção: espiritualidade e missão
Se o carisma representa os fundamentos sobre os quais “é construída a comunidade, a espiritualidade e a missão são as paredes que sustentam a construção.
É normalmente aceite que a espiritualidade é um dos eixos da vida religiosa enquanto tal. Talvez não seja tão evidente que o seja também da fraternidade. A espiritualidade aparece, às vezes, como um problema do indivíduo, algo bastante privado. Muitos de nós fomos até habituados a cobrir com certa reserva, ou até com pudor, tudo o que se refere ao nosso relacionamento com Deus. Muitos dos momentos de espiritualidade eram vividos no segredo do próprio quarto, com as portas fechadas. No passado, a formação espiritual se dirigia à pessoa, tomada na sua estrita individualidade. O esforço ascético e toda a aparelhagem espiritual eram destinados à edificação e consolidação da estrutura sobrenatural pessoal.
Tudo isto era feito com boas razões e de boa fé; mas o resultado foi de privar muitas vezes a própria espiritualidade comum da contribuição preciosa de cada membro da comunidade, obscurecendo sempre mais a ligação natural entre espiritualidade e fraternidade.
Dissemos ligação natural porque a espiritualidade, no interior de uma comunidade religiosa, não só tem um novo imediato e intrínseco com a fraternidade, mas é por si mesma comunitária, porque essencialmente ligada ao carisma. Ora, se o carisma indica uma comum identidade, a espiritualidade exprime exactamente o conteúdo desta identidade comum, reconhecendo-o naquela particular experiência de Deus, típica do Instituto, que revela e contém também um correspondente projecto de vida e de realização do EU.
Por isso, a espiritualidade não é somente comum, mas a própria comunidade, e nela os irmãos são o caminho providencial através do qual nos vêm (chega até nós) os bens espirituais. Assim é ainda a comunidade, a fraternidade o lugar teológico e o destinatário último destes bens (eu sou feliz na comunidade é na comunidade que eu sou feliz). Podemos até dizer que, se não é comunitária, não é verdadeira espiritualidade, também porque ninguém pode presumir de possuir e compreender na sua totalidade o dom que vem do Alto e que pede necessariamente a relação com o dom da irmã: os dons de Deus procuram-se entre si e somente encontrando-se revelam toda a sua beleza e a plenitude de seu sentido. Quando, ao contrário, o indivíduo se apropria do dom de Deus, este permanece só e não serve mais para nada…(sonho que se sonha só pode ser uma ilusão, sonho que se sonha muitos é sinal de união, vamos pois, companheiro sonhar ligeiro, sonhar em mutirão) Daqui tiramos uma aplicação importante que diz respeito ao estilo, à modalidade de irmãs em comunidade.
A técnica (engenharia) da construção: a condivisão – Rm 12, 3-8; Ef 4,1-16
Propostas concretas, operativas: “comunicar para crescer juntos”.
Trata-se não de um comunicar qualquer, mas de uma condivisão.
A comunidade religiosa é “participação e testemunho qualificado da Igreja-Mistério, enquanto expressão viva e realização privilegiada de sua peculiar comunhão, da grande koinonia trinitária de que o pai quis fazer participar os homens no Filho e no Espírito Santo” .
Há uma convicção profunda na origem da condivisão e da vontade de condividir: é a convicção (quase uma concepção antropológica) de que o homem se realiza não somente no dom de si mesmo, mas graças ao dom do outro e a abertura a tal dom.
Não se trata de “comunicar-se sobre temas e problemas periféricos, mas de compartilhar sobre aquilo que é vital e central no caminho da consagração”. Dizer palavras que condividam a vida, partilhar coisas que ajudem no crescimento da comunidade.
A própria oração comunitária, ocasião privilegiada para o intercâmbio de experiências espirituais deve chegar a ser comunicativa para que possa atingir as próprias riquezas que devem ser transmitidas com simplicidade aos outros. As orações devem ser um render glórias a Deus “com uma só alma e uma só voz (cf Rm 12,5 e Ef 4,4).
A comunhão nasce justamente da partilha dos bens do Espírito, uma partilha da fé e na fé, na qual o vínculo de fraternidade é tanto mais forte quanto mais central e vital é o que se põe em comum (32).
De que adianta pôr em comum os bens materiais se isto não nos leva a condividir os bens do Espírito? E quando deixarmos de condividir os bens do Espírito, também não teremos condições de dividir entre nós os bens materiais.
A condivisão é uma exigência irrenunciável, mas tudo deverá acontecer dentro dos limites sugeridos pela prudência e pelo bom senso (…o que tu me falas por caridade, eu, por caridade, não to falo…). “O problema deve ser afrontado explicitamente com tacto e atenção, sem nenhum exagero mas também com coragem, transparência e criatividade, procurando formas e instrumentos que possam permitir a todos aprender progressivamente a partilhar, com simplicidade e fraternidade, os dons do Espírito, a fim de que se tornem realmente de todos e sirvam para a edificação de todos.
Realmente não é suficiente para quem escolheu uma vida de fraternidade e comparticipação, celebrar com cuidado o próprio pessoal e intimo relacionamento com Deus e aquele banquete de convivialidade da graça que é a oração comunitária.
As formas de comunicação dos dons espirituais podem ser diferentes. Cada comunidade deve encontrar as que mais se adaptam à sua realidade. O importante é que cada um aprenda a pôr ao serviço dos outros a própria experiência espiritual, para o crescimento de todos na comunidade “para a sua edificação e a sua missão no mundo”. Então, a comunidade será realmente aquele “lugar em que a gente se torna irmão”.
Vida Fraterna em Comunidade: comunhão e missão
A missão, para ser eficaz, pressupõe uma autêntica e forte vida fraterna. A comunidade religiosa, é lugar e sujeito da missão. A comunidade tem um papel explicitamente missionário, mas também a missão tem dimensão fortemente comunitária, estabelecendo uma relação de influxo recíproco entre as duas realidades (a comunidade e a missão).
Dilema equívoco
Toda comunidade religiosa é, segundo a natureza própria, apostólica; e logo em seguida: a comunhão representa a fonte e ao mesmo tempo o fruto da missão, a comunhão é missionária e a missão é para a comunhão.
a) Princípio inspirador
Na base da perspectiva sintético–harmónica está a afirmação de que toda a comunidade é apostólica por sua própria natureza. Existe, de fato, diversos tipos de comunidades religiosas que nos foram legadas através dos séculos (a comunidade monástica, a conventual e depois a ativa ou “diaconal”), cada um com legítimas diferenças no modo de entender a comunidade e o relacionamento com a missão, e, assim mesmo, cada uma chamada a fazer-se “anúncio”, diaconia e “testemunho evangélico” .
O que decide sobre o modo de realizar a projecção apostólica da fraternidade é o carisma. Por tanto, é a inspiração carismática que indica como conciliar comunhão e missão. De facto, conteúdos do carisma são também, além da experiência mística, o objectivo e estilo apostólico como o sentimento de pertença e o modo de ser comunitário. Cada instituto, e cada membro seu, encontra a sua identidade em torno destes componentes carismáticos. É necessário, portanto, defini-los com precisão, continuamente descobrindo e redescobrindo aspectos novos e inéditos de uma realidade por sua própria natureza, sempre ideal e rica de mistério. E defini-los não somente na regra de vida, mas também no programa formativo, inicial e permanente; não só nas grandes ideias ou nos projectos ideais, um pouco cansativamente repetidos (por exemplo: o serviço dos pobres), mas também evidenciando os passos, como pessoas e como grupo, ou as etapas intermediárias que levam a viver com originalidade aquele valor, porque exactamente este é o carisma, alguma coisa que abraça todo o aspecto e fragmento da vida, do relacionamento com Deus ao modo de fazer amizade do projecto apostólico ao estilo pessoal de vida.
E então, é necessário colher o mais possível a concretude e a razão de ser em seu lugar, em estreita relação com o conjunto, enquanto o todo exprime a especialidade e a beleza de um projecto que vem do Alto.
b) Dinamismo unificante
A primeira causa do equívoco ou do dilema, de que falávamos acima, é a indeterminação ou imprecisão com a qual um carisma é definido, no plano teórico e mais vezes ainda no plano prático e metodológico (temos de facto boas regras de vida, mas não acontece o mesmo com as Ratio formationis). Se o carisma não for concebido como método e estilo de vida, não será mais principio inspirador que possa levar à harmonia a comunidade e a missão. Mas, como realizar esta harmonia?
O dinamismo unificante é dúplice ou circular: da comunidade para a missão e da missão para a comunidade. E supõe a aplicação de dois princípios, o da condivisão e o da circularidade carismática.
Principio da condivisão: a comunhão é a fonte da missão
É uma afirmação bem conhecida. Nós interpretamos este princípio, por uma questão de coerência lógica, a partir do que foi dito no ponto precedente: numa fraternidade a comunhão é fruto da condivisão dos bens do Espírito. Certo, em si é um Dom já dado para nós merecido pela cruz do Filho, mas torna-se efectivo quando o dom do perdão, por exemplo, é condividido entre dois irmãos, ou quando a palavra é um dom que um faz ao outro e se cresce juntos.
Já, neste sentido, a comunhão gera missão e um adequado espírito missionário; de facto, uma condivisão “da fé e na fé” com os próprios irmãos, como diz o nosso texto, é útil também para aprender a pôr em acto o mesmo estilo da condivisão no apostolado, permitindo a cada um “confessar sua fé em termos fáceis e simples, para que todos possamos entender e saborear” (32). Resumindo, aprende-se a exprimir a própria fé em comunidade para depois saber condividir o dom da fé e da missão, porque ninguém pode pensar, improvisar “fora” algo que não aprendeu “dentro”, com estilo habitual de vida e de relacionamento. A ascese de um certo estilo comunitário, baseado sobre a condivisão dos bens espirituais, então habilita progressivamente para o anúncio apostólico.
E não é só. Esta condivisão da fé e na fé é também condivisão do carisma e no carisma, não é só questão de conteúdos a transmitir e explicar, mas de uma atitude a internalizar ou de uma sensibilidade em linha com o carisma. Por exemplo: se o projecto apostólico de um instituto é o serviço aos pobres, em comunidade, se deve aprender a condividir, sem realmente marginalizar ninguém, antes procurando fazer participar de seus próprios dons, de modo especial, o irmão “pobre”, como pode ser o ancião, o doente, o tipo difícil, aquele que tem mais dificuldade de entender, aquele que tem mais vontade de julgar… Ninguém deve alimentar a ilusão de amar sinceramente o pobre “de fora” se não tiver aprendido a amar o “pobre de casa”. Não difunde a caridade, a fraternidade, aquele que não sabe ser irmão dos irmãos que o Senhor colocou ao seu lado.
Também aqui se repete a mesma lógica, vista anteriormente, é a comunidade que se torna centro propulsor de precisas atitudes missionárias ou lugar de formação (permanente) para viver integralmente o carisma; é a vida comunitária que educa para um certo estilo “carismático” que cria depois uma natural e correspondente disposição apostólica. Se a missão não for “confirmada” é de certo modo recebida e sustentada pela comunhão com os irmãos, não será anúncio do Reino e pode mesmo perder sua credibilidade.
Podemos, então, dizer, em síntese, que a comunhão é fonte de missão quando nasce da condivisão da fé e na fé, do carisma e no carisma; e na medida em que o estilo de Vida Comunitária prepara e dispõe para um correspondente estilo apostólico. Então a comunidade torna-se realmente apostólica e o indivíduo é ajudado a viver a unidade da vida.
Mas, o dinamismo unificante vai também noutra direcção: da missão à comunidade. A missão nos faz uma coisa só.
2) Princípio da Circularidade Carismática: “a comunhão é fruto da missão”
É sempre o mesmo nexo, mas agora considerado a partir da outra vertente: da missão. Segundo este princípio, “ todo o carisma nasce na Igreja e para o mundo, deve ser constantemente reconduzido às suas origens e finalidades, e estará vivo na medida em que for fiel a elas. A Igreja e o mundo permitem (tornam possível) a sua interpretação, solicitam-no o estimulam a uma crescente actualidade e vitalidade” (60). Em síntese, existe apenas um modo de garantir o frescor de um carisma: conservá-lo bem fixo nas suas raízes, aquelas raízes que são a comunidade civil e eclesial e que representam de certo modo o seu lugar hermenêutico. Este manter radicado na “sua terra” não significa outra coisa do que viver plenamente a missão, “exportando” o dom recebido para ambientes novos e situações diferentes, cujas provações e solicitações inéditas possam de alguma maneira fazer “explodir” toda a sua riqueza e originalidade.
Um carisma tem necessidade de ar puro, de espaços abertos, de estimulações sempre novas; do contrário se achata, se empobrece; e nós também empobrecemos juntamente com as nossas comunidades. Por que? O porque é bastante claro e lógico. O carisma representa o elemento fundamental na arquitectura da comunidade religiosa, aquilo que está à base de um comum projecto de consagração. Então, se o carisma não “vive”, se não se renova em contacto com as suas raízes, é fatal que também a comunidade, que está construída sobre ele, perca sua vitalidade (elã), não tenha vínculo que a mantém unida.
É terrível, e não muito raro, ver como as incoerências ou reticências ou ainda o medo ou preguiça na missão se reflectem sobre a qualidade da vida comunitária, mortificando-a, deprimindo-a ou – ao contrário – carregando a vida comunitária de um sentido excessivo e artificial, porque quando não há nenhuma “saída” apostólica e a vida e os interesses são todos trancados aí dentro, quase forçosamente comprimidos, então a comunidade termina em si mesma e a vida comunitária torna-se praticamente impossível, quase um inferno. Infelizmente o critério da circularidade carismática funciona também ao contrário (negativo).
Há ainda um outro aspecto a ser lembrado, e que de certo modo liga o princípio da condivisão ao da circularidade carismática. Quando um instituto é fiel ao seu serviço aos pobres e de fato os seus membros vivem no meio deles e para eles, acontece um facto extraordinário que o documento não deixa de ressaltar: os pobres se tornam evangelizadores! Onde a inserção entre os pobres se tornou – para os pobres e para a própria comunidade – uma verdadeira experiência de Deus, provou-se a verdade da afirmação de que os pobres são evangelizados e de que os pobres evangelizam (63). Certamente nada de automático ou de sensacional; mas, de fato, quando se faz um sincero esforço de explicar e transmitir em termos fáceis e simples o próprio dom, ali nasce algo que é conduzido pelo Espírito; a condivisão gera condivisão, os carismas se aproximam e se iluminam entre eles, o dom de um evoca o dom do outro, e o evangelizador e a própria vida religiosa são evangelizados pela sabedoria e beatitude do pobre!
E assim o dom volta para o lugar de onde partira. O círculo se fecha e a comunhão se abre e se estende. A comunidade, em cujo interior se iniciara a comunhão dos bens, se reencontra enriquecida, de maneira imprevista, de um dom que a torna nova e sempre mais comunidade reunida e enviada pelo Senhor.
VIDA FRATERNA EM COMUNIDADE: BUSCAR JUNTOS A DEUS
Quando se condivide o que é central, isto é, a busca de Deus, nasce a comunidade: um abrir-se ao outro que é, ao mesmo tempo, percepção do mistério que o habita.
A “comunidade ideal”, perfeita, ainda não existe. O nosso é o tempo de edificação e de construção contínua: sempre é possível melhorar e caminhar juntos para uma comunidade que saiba viver o perdão e o amor. Em comunidade somos irmãos por um dom e uma escolha que vem do alto, e nos tornamos irmãos pelo dom de Deus e a nossa luta quotidiana.
Gostaríamos de compreender melhor o sentido desta fraternidade, para além (se possível) dos lugares comuns e, sobretudo, compreender melhor como realizá-la e construí-la. A partir daqui, concentraremos, então, as nossas reflexões sobre três temas que correspondem a outros tantos dinamismos essencialmente comunitários: o buscar a Deus, o servir ao irmão e o crescer e santificar-se juntos (conjuntamente). Partimos de dois pressupostos, quase hipóteses de trabalho:
a) A comunhão fraterna nasce da qualidade do relacionamento com Deus e leva à condivisão do próprio relacionamento.
b) A comunhão fraterna pressupõe a relação e a reconciliação consigo mesmo e conduz à condivisão dos próprios dons.
Veremos agora o primeiro destes dinamismos: Buscar juntos a Deus.
Peregrinos em busca de Deus
Escolhe-se a vida consagrada substancialmente porque se descobre num carisma uma via específica de experiência do divino. Esta experiência se torna comum àqueles que condividem o mesmo carisma, “peregrinos” de uma mesma peregrinação, mas é também o lugar em que o indivíduo, “buscador de Deus”, encontra aquele Deus que o revela a si mesmo. É o aspecto comunitário e, ao mesmo tempo, pessoal da dimensão mística do carisma.
Realizar esta síntese não é empresa fácil, mas é condição fundamental e elemento constitutivo da comunidade religiosa. E nos reenvia, como acenamos na primeira das hipóteses, à qualidade global do próprio relacionamento com Deus e a um aspecto particular dele, implícito na própria idéia de “peregrinação” e busca de Deus como caminho ininterrupto, olhar que perscruta o horizonte, mão colocada atrás da orelha para ouvir alguma voz que oriente, passo fatigante e, no entanto, já tornado sábio e prudente pelo caminho já feito, coração que recorda a estrada percorrida e, ao mesmo tempo, atento para o caminho que preciso fazer ainda.
É a “peregrinação da fé” da qual Maria é perfeita imagem. Como Maria, o peregrino é convidado a “conservar e meditar no coração” (Lc 2,19. 51) tudo o que vê e ouve. Sabe que o passado jamais passou de todo, mas que ainda está aí, a espera sempre e ainda de receber um sentido. Qualquer passado também e, sobretudo, aquele negativo que recorda um sofrimento ou que parece privado de qualquer sentido coerente.
À diferença dos “sábios e inteligentes”, o peregrino buscador do divino tem a percepção muito mais viva da transcendência e da alteridade de Deus, colhe em todas as coisas uma perspectiva ulterior, intui em cada acontecimento, também naquele que parece simples e imediatamente claro, um significado que o supera. Ele sempre respeita a “distância”, uma distância que não afasta nem separa, mas, ao contrário, é espaço fecundo do mistério que abre sempre novos horizontes.
Esta mesma distância, então, torna-se objecto de contemplação; a ausência de Deus se transforma em nova presença e em nova intimidade com ele, onde Deus se revela no “murmúrio da brisa ligeira” (1Rs 19,12); o silêncio de Deus torna possível encontrar uma palavra nova, palavra que pode ser dura, mas dá a vida, nutre e ilumina o caminho.
Mas, em que sentido tudo isto está relacionado com a vida de comunidade?
Transcendência de Deus e fraternidade humana
Aquela distância é também o espaço em que nasce e floresce a fraternidade na comunidade religiosa, espaço no qual nos encontramos e acolhemos reciprocamente. Na verdade não existe para nós outra fraternidade a não ser aquela que se desenvolve ao longo do tempo e na fadiga da peregrinação e por causa dela. “A perfeita comunhão dos santos é meta na Jerusalém celeste” (n.26). Mas há uma comunhão a construir já aqui em baixo, que talvez não será perfeita nem “só para os santos”, mas não deixa de ser comunhão e fraternidade verdadeira, vínculo que vem de Deus e da busca do seu rosto. É esta a típica comunhão da comunidade religiosa. Comunhão fraterna tanto mais intensa quanto mais intensa for a busca, tanto mais verdadeira quanto maior for o desejo de estar com o Senhor, tanto mais forte quanto mais sofrida for a experiência da alteridade de Deus. Isto ao menos por dois motivos:
a) Antes de tudo porque o tender autenticamente para Deus faz redescobrir a raiz comum, a origem da qual juntos viemos e que nos torna filhos seus e irmãos entre nós. E, quanto mais este caminho de convergência para o centro nos permitir entrar no espaço transcendente de Deus, aceitando a distância do seu silêncio, tanto mais estaremos em condições de perceber aquela semelhança radical entre nós, sempre mais forte do que tudo o que poderia nos dividir.
Em outras palavras: a experiência da alteridade – diversidade de Deus como lugar de uma nova intimidade com Ele – nos torna capazes de acolher o irmão na alteridade-diversidade, como um bem a ser valorizado.
Enquanto, ao contrário, a tentativa – embora subtil – de eliminar a distância que nos “separa” de Deus, quase a homologando à própria (minha) imagem do divino e aos próprios gostos, torna-nos incapazes de aceitar a diversidade do irmão ou torna imediatamente conflitual a própria diversidade como tal.
b) Segundo motivo: para o cristão o conhecer a Deus é um acto essencialmente intersubjectivo, acto que acontece no interior de uma série de mediações, das quais a primeira é a Palavra pronunciada por Deus e depois feita ressoar na comunicação fraterna. Segundo Basílio, o crente que se torna monge tem uma interioridade dialógica, ou seja, tem o máximo de cuidado para não pretender que a sua interpretação do divino seja exaustiva ou de fazer coincidir imediatamente a verdade com a sua ideia, e por isso decide entrar em diálogo como o irmão. Assim, a distância que o separa da compreensão plena da verdade torna-se também o espaço dentro do qual procura e acolhe o irmão e por ele se sente acolhido, e junto com ele busca a Deus.
É este o espaço de uma nova fraternidade, que não nasce da carne e do sangue, mas que nem por isso deixa de ser profundamente humana e contagiosa (e contagiante). A fraternidade possui raízes místicas e escondidas, mas o seu florescer é um dos sinais visíveis e atraentes do Reino que está para vir. Uma comunidade, na qual juntos se busca a Deus, é fraternidade que testemunha a beleza da consagração e exerce uma atracção violenta.
Sinais de comunhão na busca de Deus
Tentaremos perceber ao menos alguns sinais desta comunidade em que se busca juntos o rosto de Deus.
a) Experiência espiritual individual e comunitária.
O que faz de uma convivência de pessoas uma comunidade religiosa não é o caminho espiritual dos indivíduos, mas o pôr em comum destes caminhos até o ponto de formar deles idealmente um só caminho. No fundo, o carisma não é uma proposta de uma mesma experiência de Deus? O relacionamento com Deus deveria levar a descobrir sempre mais o sentido da fraternidade e, portanto, também procurar o irmão para condividir com ele o idêntico caminho evangélico e espiritual. Como poderia ser rico aquele depósito de sabedoria espiritual que é fruto da condivisão das experiências dos indivíduos em nossas comunidades! Como uma espécie de “banco comum de bens espirituais” com o qual todos contribuíram e do qual todos podem “sacar” para caminhar juntos com mais disposição em encontro do Senhor, nosso único bem.
b) Solidão e companhia
Viver em comunidade quer dizer, portanto, fundamentalmente condividir. É o significado etimológico da palavra “com-panhia”: condividir o pão a ser comido, nutrir-se do mesmo alimento durante a viagem. A amizade religiosa deriva deste tipo de “com-panhia”, é autêntica quando aquilo que une (liga) os dois amigos é o próprio movente essencial da sua consagração.
Quando se condivide aquilo que é central, isto é, o “pão” da busca de Deus, se faz contemporaneamente a experiência de “com-panhia” e de solidão como de duas realidades que entre elas se espelham e se completam, com as duas faces da mesma medalha: uma não pode existir (sobreviver) sem a outra, uma autentica a outra. Uma “com-panhia” que não respeita a solidão é um amizade entre dois consagrados que não põem no centro do seu relacionamento aquilo que é essencial e, portanto, não é verdadeira amizade, nem faz crescerem juntos. Por outro lado, uma solidão ou uma intimidade com Deus que não se abre para a “com-panhia” não é verdadeira espiritualidade nem autêntica solidão. É antes fechamento (isolamento) que empobrece o indivíduo e a própria comunidade. Ainda uma vez, trata-se de unir a busca solitária e a peregrinação comunitária para Deus, e fazer das duas uma coisa só.
c) Diálogo e silêncio
Já dissemos que o consagrado tem uma interioridade dialógica, o diálogo é parte essencial da sua identidade. Um diálogo ininterrupto se desenvolve no segredo e no silêncio de sua alma com a Palavra de Deus. Esta Palavra, o consagrado não pode guardá-la só para si, nem pode alimentar a pretensão de compreendê-la por si só. Então o diálogo passa do silêncio da interioridade para a partilha fraterna em comunidade. E, com um fruto talvez nem de todo calculável: a Palavra de Deus, enquanto ressoa na riqueza e variedade de interpretações suscitadas pelo mesmo Espírito, une os corações e as mentes no mesmo caminho de santidade. Do silêncio ao diálogo, do diálogo ao silêncio. O silêncio protege o diálogo com Deus, o diálogo com Deus protege o diálogo com os irmãos que – por sua vez – reenvia ao silêncio da intimidade divina. E a vida comunitária se torna intimidade divina. E a vida comunitária se torna cada vez mais busca e manifestação do rosto de Deus.
Vida fraterna em comunidade: juntos para uma missão comum
O serviço apostólico pode e deve nascer da escuta individual e comunitária da Palavra. O serviço não conhece a ‘ânsia e a angústia’ de quem anuncia a si mesmo. O serviço é prestado ao pobre, tanto dentro como fora da comunidade.
A missão, como sabemos, é uma das paredes que sustentam a estrutura (a arquitectura geral) comunitária. Mas, o que qualifica o apostolado é que este é feito comunitariamente, não é expressão de um indivíduo, muito menos se destina a sua afirmação pessoal, mas expressa a paixão de um grupo de irmãos que decidem condividir, também com aqueles que não fazem parte da família, aquilo que atraiu o seu coração e preencheu a sua vida.
Consideramos já, anteriormente, mas de maneira muito global, a relação que existe entre comunidade e missão. Gostaríamos agora de tentar individuar, com mais precisão, aquilo que abre o indivíduo a esta acção comunitária, quais são as condições indispensáveis, internas ao sujeito, para testemunhar servir não a título pessoal, mas em comunhão de obras e de intenções com os seus irmãos. Sabemos que tudo isto não acontece com muita naturalidade. Muitos religiosos sabem testemunhar, mas não colaborar (trabalhar com); são generosíssimos na dedicação pessoal, mas na mesma medida ciumentos daquilo que fazem. Estão dispostos a sacrificar-se no apostolado, mas retiram-se ressentidos quando não estão mais no centro das atenções; ou se doam totalmente, mas com a condição de fazê-lo segundo os seus projectos; eles são mais franco atiradores (batedores livres) do que ‘servos inúteis’.
Mas, ao contrário, que testemunho eficaz dá uma comunidade de irmãos concordes e unidos nas fadigas da missão, capazes de tornar visível, para além de tudo quanto poderia dividir, a força daquilo que os une.
Mas, afinal, o que há no coração desta experiência? Por que ela é tão difícil?
Para responder. Exploraremos aqueles dois pressupostos já indicados no artigo precedente, segundo os quais a comunhão fraterna nasce ao mesmo tempo da qualidade do relacionamento com Deus e consigo mesmo, e leva a condivisão dos próprios dons da natureza e da graça. É uma hipótese da qual partimos para esta reflexão.
Discípulos e apóstolos
O problema coloca-se em dois níveis
a) Num primeiro nível, interpessoal, trata-se de encontrar a síntese entre duas dimensões do ser consagrados: a dimensão do discípulo que escuta a Palavra e do apóstolo que serve o irmão. Muitas vezes não há realmente comunicação entre estas duas figuras ou símbolos ou maneiras de entender a própria vida consagrada. Por isso, haverá sempre quem a interpreta sublinhando, às vezes excessivamente, a vertente espiritual, e quem – ao contrário – vê só ou prevalentemente o trabalho a fazer. É uma antítese clássica, até ‘evangélica’ se nos dois tipos for lícito reconhecer a atitude de Marta e Maria (Lc 10, 38-42); antítese, sobretudo estéril e insolúvel, se não for reconhecida à raiz mais escondida e interna da pessoa.
b) E com isto chegamos ao segundo nível, o intrapsíquico, sem dúvida o mais decisivo, embora pareça estar longe do objecto da nossa análise, que é a comunhão fraterna no apostolado. O princípio é este: também a fraternidade na missão está ligada à qualidade do relacionamento com Deus e consigo mesmo.
Voltemos, por um momento, à cena de Betânia e tentemos ler o episódio como se Marta e Maria fossem dois aspectos de uma mesma pessoa, ou duas realidades que vivem dentro de cada um de nós, talvez se alternando em horários diferentes e às vezes contrapondo-se, como no Evangelho. No fundo, o que esta passagem quer sublinhar é exactamente a dificuldade de harmonizar estas duas dimensões. E, não é também esta uma expressão de qualidade dialéctica interna, profundamente radicada no íntimo do homem (ser humano) daquela fractura intrapsíquica, como uma isquemia subtensa (que tem a função de inibir, dificultar) ao coração humano que nos impede de comunicar-nos connosco mesmos, de tomar consciência de nosso mundo interior com seus sentimentos, tendências, desejos, monstros, feridas ainda abertas….?
De modo particular, o episódio evangélico assinala uma expressão específica desta ‘não comunicação’, ou dois níveis da nossa vida habitual, entre os quais, muitas vezes, não há suficiente relacionamento: o nível da acção (Marta) e o da motivação profunda (Maria).
Acção e motivação
Muitas vezes, estes dois planos se ignoram numa mesma pessoa: o comportamento vai numa direcção, mas o indivíduo não o sabe, e deixa assim que o contraste se radique em profundidade, criando inevitavelmente um conflito interno (agitação de Marta) e tensão externa (ausência de comunicação entre Marta e Maria, ou seja, entre os dois planos).
Kaquindas Dias

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