Pasárgada

…Cheguei no momento da criação do mundo e resolvi não existir. Cheguei ao zero-espaço, ao nada-tempo, ao eu coincidente com vós-tudo, e conclui: No meio do nevoeiro é preciso conduzir o barco devagar.


Serei o que fui, logo que deixe de ser o que sou; porque quando fui forçado a ser o que sou, foi porque era o que fui.

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terça-feira, 31 de outubro de 2023

Obras de misericórdia

 

 

Obras da Misericórdia

(Mt 25,31-46)

As Obras de misericórdia corporais:

São Mateus apresenta a narração do Juízo Final (Mt 25, 31-36). Naquele tempo Jesus disse aos seus discípulos: “Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado por todos os seus anjos, há de sentar-se no seu trono de glória. Perante Ele, vão reunir-se todos os povos e Ele separará as pessoas umas das outras, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. À sua direita porá as ovelhas e à sua esquerda, os cabritos. O Rei dirá, então, aos da sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me de vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo. Então, os justos vão responder-lhe: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? E quando te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te?’ E o Rei vai dizer-lhes, em resposta: ‘Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes. Em seguida dirá aos da esquerda: ‘Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado para o diabo e para os seus anjos! Porque tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, era peregrino e não me recolhestes, estava nu e não me vestistes, doente e na prisão e não fostes visitar-me. Por sua vez, eles perguntarão: ‘Quando foi que te vimos com fome, ou com sede, ou peregrino, ou nu, ou doente, ou na prisão, e não te socorremos?’ Ele responderá, então: ‘Em verdade vos digo: Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer”. Estes irão para o suplício eterno, e os justos, para a vida eterna.”

As obras de misericórdia são as ações caridosas pelas quais vamos em ajuda do nosso próximo, nas suas necessidades corporais e espirituais. Instruir, aconselhar, consolar, confortar, são obras de misericórdia espirituais, como perdoar e suportar com paciência. As obras de misericórdia corporais consistem nomeadamente em dar de comer a quem tem fome, albergar quem não tem teto, vestir os nus, visitar os doentes e os presos, sepultar os mortos. Entre estes gestos, a esmola dada aos pobres é um dos principais testemunhos da caridade fraterna e também uma prática de justiça que agrada a Deus.

Catecismo da Igreja Católica, 2447.

As 14 Obras da Misericórdia

Obras Corporais:
1ª Dar de comer a quem tem fome;
2ª Dar de beber a quem tem sede;
3ª Vestir os nús;
4ª Dar pousada aos peregrinos;
5ª Assistir aos enfermos;
6ª Visitar os presos;
7ª Enterrar os mortos.

Obras de Misericórdia Corporais

Disse Jesus, de quem nos esforçamos para sermos discípulos: “Sede misericordiosos como vosso Pai do céu é misericordioso” (Lc 6, 36). Ainda, em outro momento reafirmou citando o Profeta Oséias:”Quero misericórdia e não sacrifícios” (Mt 9, 13); e, mais uma vez insistiu nas bem-aventuranças: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5, 7).

Vejamos o que é ser misericordioso, e em que consiste fazer obras de misericórdia.

Ter misericórdia não é ter pena de alguém. Longe disto, ter e exercitar a misericórdia é ter compaixão, e solidariedade para com a necessidade do outro. Mais do que só dar esmola, é descer até à carência física, espiritual e material da outra pessoa envolvendo-a com nosso ser e elevando-a à dignidade e à vida.

As obras de misericórdia corporais são:

– Dar de comer a quem tem fome.

1) Dar de comer a quem tem fome e 2) dar de beber a quem tem sede.

Estas duas complementam-se e referem-se à ajuda que devemos disponibilizar em alimentos e outros bens aos mais necessitados, àqueles que não têm o indispensável para comer em cada dia.
Jesus, segundo o Evangelho de São Lucas , recomenda: “Quem tem duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma, e quem tem mantimentos faça o mesmo” (Lc 3, 11).

DAR DE COMER A QUEM TEM FOME

O povo bíblico sempre deu grande atenção aos pobres, mas será a partir de Cristo que tal atenção se torna central e a obra primordial. De tal modo é essencial que Bento XVI escreveu na Encíclica Caritas in veritate: «Os direitos à alimentação e à água revestem um papel importante para a consecução de outros direitos, a começar pelo direito primário à vida.» (N.º 27) Trata-se do inviolável direito à vida.

DAR DE BEBER A QUEM TEM SEDE

Jesus disse: «Quem der de beber a um destes pequeninos, ainda que seja somente um copo de água fresca, por ser meu discípulo, em verdade vos digo: não perderá a sua recompensa.» (Mt 10,42) Por um lado, a água é imprescindível à vida, como diz o Papa Francisco na Encíclica Laudato Si: «O acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos.» (N.º 30) Por outro lado, também é o consolo e o novo alento daqueles que estão cansados, daqueles que trabalham. Quem amparamos e consolamos ao nosso redor? Somos capazes de dar um simples copo de água a todo aquele que nos pede?

Várias vezes, Nosso Senhor Jesus Cristo se preocupou com a fome dos que O seguiam (Lc 9, 10-17). Seu mandato ecoa até hoje:”Daí-lhes vós mesmos de comer” (Lc 9, 13).

Pe. Zezinho expressa muito bem isto na letra de sua canção: ”somos a Igreja do pão, do pão repartido, do abraço e da paz.” É bem verdade que nossas cestas básicas, missas do quilo e “sopões”, servidos nas madrugadas frias, não resolvem os problemas sociais, mas é uma solução imediata que sacia quem sente o desespero da fome.

É urgente e necessário que avancemos em políticas sociais que atinjam a causa da fome, mas enquanto não chegamos ao ideal, exercitemos a partilha no real. “Quem tiver muita roupa partilhe com quem não tem, e faça o mesmo quem tiver alimentos (Lc 3, 11).”

– Dar de beber ao sedento

Nosso Mestre Jesus disse: “Todo aquele que der ainda que seja somente um copo de água fresca a um destes pequeninos, porque é meu discípulo, em verdade eu vos digo: não perderá sua recompensa” (Mt 10, 42). Em nossos tempos esta obra de misericórdia parece sem sentido, quando cada um tem água encanada, com facilidade em seus lares. Pensa desta forma quem tem o privilégio de viver longe da seca, e dos desafios de andar, em pleno Século XXI, muitos quilômetros para buscar água em açudes, e em carros pipas.

A consciência cristã e ecológica impele a “copos d’água” que são dados quando exercitamos o uso responsável da água potável. O uso correto, consciente, e sem desperdício da água é um desmembrar desta obra de misericórdia.

Não obstante, Jesus Cristo, nas bem-aventuranças, fala da sede, porém de uma “sede de justiça” (Mt 5, 6). A sede saciada de justiça não seria o saciar a sede real de água, de dignidade e de solidariedade?

– Dar abrigo aos peregrinos.

3) Dar pousada aos peregrinos.

Em tempos antigos dar pousada aos viajantes era um assunto de vida ou de morte, pelas dificuldades e riscos das caminhadas e viagens. Não é o normal hoje em dia. Mas, mesmo assim, poderia acontecer recebermos alguém em nossa casa, não por pura hospitalidade de amizade ou família, mas por alguma verdadeira necessidade.

DAR POUSADA AOS PEREGRINOS

Na maior parte da sua História, os israelitas foram um povo estrangeiro, peregrino, de tal modo que a hospitalidade é muito valorizada. Na parábola do bom samaritano, Jesus ironiza com os seus ao apresentar um samaritano, um estrangeiro, como exemplo de quem acolhe, cuida e de quem oferece um teto para aquele que está em necessidade. O problema dos refugiados é uma realidade premente e que necessita da ajuda de todos. Além disso, é sempre necessário auxiliar as instituições que diariamente combatem os problemas da vida dos sem-abrigo. Também destacamos aqui as instituições que acolhem os órfãos. Como poderemos contribuir mais e melhor para auxiliar a resolução possível destes problemas?

Jesus foi um desabrigado já em seu nascimento, quando negaram a José e Maria que estava para dar à luz, um lugar na hospedaria (Lc 2,7).

Tendo em vista que a realidade dos tempos de Jesus era muito diferente da realidade dos tempos atuais, torna-se complicado, perigoso e é até ingenuidade de nossa parte querer acolher em nossas casas, pedintes ou moradores de rua. Porém, Deus suscita obras de acolhimento na Igreja, através dos padres, religiosos (as), e leigos (as), que nos permite praticar esta obra de misericórdia, com nossa ajuda concreta.

Como cidadãos, cristãos, ou enquanto comunidade, somos chamados a contribuir economicamente e voluntariamente nos serviços desta obra.

Não podemos eximir o poder público de uma política habitacional, ao contrário, é nosso dever como cristãos, estar atentos a isto, como obra de misericórdia.

Sem querer forçar a natureza desta obra de misericórdia, não se poderia entendê-la de uma forma mais ampla, como por exemplo, simplesmente “acolher” na vida familiar, na convivência, no afeto, no dedicar algum tempo?

– Vestir os nus

4) Vestir os nus.

Esta obra de misericórdia dirige-se a aliviar outra necessidade básica: o vestuário. Muitas vezes é-nos proporcionada com as recolhas de roupa que se fazem nas paróquias e noutros centros. Ao entregar a nossa roupa é bom pensar que podemos dar o que nos sobra ou já não nos serve, mas também podemos dar do que ainda nos é útil.

A carta de São Tiago propõe-nos sermos generosos: “Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: «Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome», mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará?” (St 2, 15-16).

VESTIR OS NUS

O padre e teólogo Pie Ninot recorda o gesto de São Martinho de Tours, que ofereceu metade da sua capa ao mendigo que se cruzou no seu caminho. «Na noite seguinte,» conta o autor, «Cristo apareceu-lhe vestido com a metade da capa dada para lhe agradecer o seu gesto.» É significativo como esta história antiga representa as palavras de Jesus: «Cada vez que o fizeste a um destes pequeninos, foi a Mim que o fizeste.» (Mt 25,40) São diversas as instituições que recolhem, tratam e redistribuem roupa em segunda mão. As lojas sociais vendem roupa a preços simbólicos. Precisamos identificar as necessidades da população que vive no território da sua comunidade?

Chamados somos nós, a sermos discípulos de um Mestre que os Evangelhos relatam, exortou: “Quem tem duas túnicas dê uma ao que não tem” (Lc 3, 11a)

O apóstolo Tiago escreveu à comunidade que lhe foi confiada pastorear: “Se a um irmão ou a uma irmã faltarem roupas e o alimento cotidiano, e algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos, mas não lhes der o necessário para o corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se não tiver obras, é morta em si mesma. (Tg 2, 15-17).

Pe. Pepe dizia: se passas três meses sem usar uma peça de roupa, essa peça não é tua coloque-a no corredor.

– Assistir os enfermos:

5) Visitar os enfermos

Trata-se de uma verdadeira atenção para com os doentes e idosos, tanto no aspeto físico, como em lhes proporcionar um pouco de companhia.

O melhor exemplo da Sagrada Escritura é o da parábola do Bom Samaritano que curou o ferido e, ao não poder continuar a cuidar dele diretamente, confiou os cuidados que necessitava a outro em troca de pagamento (ver Lc 10, 30-37).

ASSISTIR OS ENFERMOS

A doença faz parte da condição humana, de tal modo que mais cedo ou mais tarde cada um de nós se depara com ela. Nesses momentos é muito importante o apoio e o auxílio daqueles que nos são próximos. Na obra acima referida, P. Ninot cita Luciano Manicardi, monge italiano, afirmando que «o enfermo tem uma sacramentalidade crística que o converte em sacramento de Cristo», ou seja, assim como um sacramento cada doente é um outro Cristo. Não vêm de novo à nossa mente as palavras de Jesus: «A Mim o fizeste»? Mais, a visita aos doentes deve atender também à família deste, acolhendo-a e apoiando-a. Será que atendemos a todos os doentes da nossa comunidade e as suas famílias?

Os Evangelhos relatam abundantemente, momentos em que Jesus acolhe, atende, socorre e cura os doentes. As vezes eram levados a Ele no entardecer (Mc 1,32-34); em outras pediam que Ele fosse até a casa do enfermo, como fez o oficial que pediu a cura do filho que estava morrendo (Jo, 4, 46-53). Vale lembrar a ação de Jesus, quando na casa de Pedro, cura sua sogra (Mt 8, 14-15). Jesus se desdobrou em misericórdia para com os doentes.

Maria, mesmo grávida, andou quilômetros para ajudar e pôr-se a serviço da idosa Isabel, sua prima, grávida de seis meses.

A obra de misericórdia: assistir os doentes começa na família quando se lida com doenças prolongadas e, às vezes irreversíveis. Seja em qualquer idade, e por qualquer problema de saúde, que podem ser, entre tantos: o câncer, as paralisias, a anencefalia, e socorrer sem preconceito os portadores do vírus HIV.

Trata-se também de um trabalho voluntário em hospitais, asilos, e casas de recuperação terapêutica. Estende-se a uma pastoral urbana que visite e acompanhe aqueles que, nos grandes centros urbanos vivem a dor de sua enfermidade na solidão, e no esquecimento.

De forma profética esta obra de misericórdia questiona a ausência de uma pastoral de saúde, tanto em nossas comunidades paróquias, como nos hospitais, que efetivamente possam marcar presença nestes momentos de fragilidade, e vulnerabilidade do ser humano.

Muitos se perguntam: o que fazer para um doente gravemente enfermo?

A resposta é simples, às vezes nada, apenas “estar” presente junto ao que sofre. Misericórdia e solidariedade é estar perto de quem sofre, mesmo sem entender a extensão do sofrimento, pois o pulsar e o latejar da dor é próprio só de quem está machucado.

Assistir os doentes até o fim é uma obra de misericórdia conflitante a toda e qualquer idéia de eutanásia e similares.

Implica inclusive em oferecer, além de recursos físicos, e terapêuticos necessários, a assistência religiosa e espiritual. Fato este que familiares estão se esquecendo e negligenciando.

– Socorrer os prisioneiros

6) Visitar os presos

Consiste em visitar os presos e prestar-lhes não só ajuda material, mas também assistência espiritual que lhes sirva para melhorar como pessoas, emendar-se, aprender a desenvolver um trabalho que lhes possa ser útil quando terminarem o tempo que lhes foi imposto pela justiça, etc.
Significa também resgatar os inocentes e sequestrados. Em tempos antigos os cristãos pagavam para libertar escravos ou se trocavam por prisioneiros inocentes.

VISITAR OS PRESOS

Quando Jesus é crucificado, São Lucas refere outros dois malfeitores, sem mencionar que um é bom e outro mau, como tradicionalmente interpretamos. Facto é que um deles (não sabemos se o da esquerda ou da direita) se considera culpado, e todavia, nesse mesmo dia, ele estará com Jesus no Paraíso. Ao visitar a prisão de Palmasola, Bolívia, o Papa disse que «quando Jesus entra na sua vida, uma pessoa não fica detida no seu passado, mas começa a olhar o presente de outra forma, com outra esperança». A visita aos presos deve ter presente não só o preso mas a sua família, cuja punição também atinge. Conheço as condições das prisões mais próximas de mim? Apoio as instituições que assistem os presos?

Ficará à direita de Deus, no grupo dos bem-aventurados, aquele que visitou os que estavam na prisão (Mt 25, 36).

Hoje o acesso nos presídios não é livre, há um certo rigor e triagem para visitas a presidiários. Porém, nossas dioceses ainda são deficientes em se tratando de uma pastoral carcerária efetiva, e dinâmica. Est’a começando um trabalho em relação com isso.

A obra de misericórdia socorrer os prisioneiros, também se estende ao socorro às famílias dos presidiários (as); auxiliando economicamente as que necessitam, e ajudando-as a superarem os preconceitos.

– Enterrar os mortos

7) Enterrar os mortos

Cristo não tinha lugar onde repousar. Foi um amigo, José de Arimateia, que lhe cedeu o seu túmulo. Mas, não apenas isso, teve a valentia para se apresentar ante Pilatos e pedir-lhe o corpo de Jesus. Nicodemos também participou e ajudou a sepultá-lo. (Jo 19, 38-42)

Enterrar os mortos parece um mandato supérfluo, porque, de facto, todos são enterrados. Mas, por exemplo, em tempo de guerra, pode ser um mandato muito exigente. Por que é importante dar sepultura digna ao corpo humano? Porque o corpo humano foi morada do Espírito Santo. Somos templos do Espírito Santo (1 Cor 6. 19).

ENTERRAR OS MORTOS

Esta é a única obra de misericórdia que Jesus não menciona nos evangelhos. Porém, era uma prática comum no judaísmo, assim como na transversalidade das culturas e religiões. Defendem os sociólogos que os rituais religiosos mais ancestrais da humanidade são os ritos fúnebres, pois é nesses momentos que este mundo toca o outro, que a vida toca a morte. Sepultar não é apenas consolação dos vivos, mas homenagem aos mortos, um último gesto por aquele que partiu e que não se destruiu. Ns ritos fúnebres nas nossas comunidades, auxiliamos os nossos irmãos a atravessar a dor e o luto?

Crer na ressurreição da carne, na vida eterna, faz parte da oração pela qual professamos nossa fé.

No Livro de Tobias encontramos o seguinte: Tobit com uma solicitude toda particular, sepultava os defuntos e os que tinham sido mortos (Tb 1, 20).

O Novo Catecismo da Igreja Católica, assim diz: “Os corpos dos defuntos devem ser tratados com respeito e caridade, na fé e na esperança da ressurreição. O enterro dos mortos é uma obra de misericórdia corporal que honra os filhos de Deus, templos do Espírito Santo” (CIC § 2300).

Cada pessoa é templo do Espírito Santo e mesmo depois de morta, seu corpo merece respeito.

O velório, ou guarda do corpo é muito válido, importante e edificante, tanto para o morto, como para os familiares.

Da parte do falecido pelas orações feitas em seu favor, da parte dos familiares pela oportunidade de perdão, conversão e reflexão. Sobre isto aprenderemos mais nas obras espirituais.

3. Qual o efeito das Obras de misericórdia em quem as pratica?
O exercício das Obras de misericórdia comunica graças a quem as exerce. No evangelho de São Lucas Jesus diz: ‘Dai, e ser-vos-á dado’. Por isso, com as Obras de misericórdia fazemos a vontade de Deus, damos algo que é nosso aos outros e o Senhor promete que nos dará também a nós aquilo de que necessitamos.
Por outro lado, um modo de ir apagando a pena que fica na alma pelos nossos pecados já perdoados é mediante as boas obras. Boas obras são, obviamente as Obras de misericórdia. “Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia” (Mt 5, 7), é uma das Bem-Aventuranças.

As Obras de misericórdia também nos vão tornando mais parecidos com Jesus, nosso modelo, que nos ensinou como deve ser a nossa atitude para com os outros. No evangelho de São Mateus encontramos as seguintes palavras de Cristo: “Não entesoureis tesouros na terra, onde a traça os corrói, e onde os ladrões os roubam, mas amontoai tesouros no céu, onde a traça os não corrói, onde os ladrões não os roubam. Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. Seguindo este ensinamento do Senhor trocamos os bens temporais pelos eternos, que são os que valem de verdade.

*****

 

As Obras de misericórdia espirituais: breve explicação

1) Ensinar os ignorantes

Consiste em ensinar os ignorantes em qualquer matéria: também sobre temas religiosos. Este ensino pode ser levado a cabo através de escritos ou da palavra, por qualquer meio de comunicação ou diretamente.

Como diz o Livro de Daniel, “os que ensinam a justiça ao povo, brilharão como as estrelas pela eternidade sem fim” (Dan 12, 3b).

2) Dar bom conselho

Um dos dons do Espírito Santo é o dom do conselho. Por isso, quem desejar um bom conselho deve, primeiramente, estar em sintonia com Deus, pois não se trata de dar opiniões pessoais, mas de aconselhar bem a quem necessita de um guia.

3) Corrigir os que erram

Esta obra de misericórdia refere-se acima de tudo ao pecado. De facto, outra maneira de formular esta obra é: Corrigir o pecador.

A correção fraterna é explicada pelo próprio Jesus no evangelho de São Mateus: “Se o teu irmão pecar, fala com ele a sós para o corrigir. Se te escutar, ganhaste o teu irmão” (Mt 19, 15-17).

Devemos corrigir o nosso próximo com mansidão e humildade. Muitas vezes será difícil fazê-lo, mas, nesses momentos, podemos lembrar-nos do que diz o apóstolo S. Tiago no final da sua Carta: “aquele que converte um pecador do seu erro salvará da morte a sua alma e obterá o perdão de muitos pecados.” (St 5, 20)

4) Perdoar as injúrias

No Pai Nosso dizemos: “Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”, e o mesmo Senhor esclarece: “se perdoardes aos homens as suas ofensas, também o vosso Pai celeste vos perdoará a vós. Se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também o vosso Pai vos não perdoará as vossas” (Mt 6, 14-16).

Perdoar as ofensas superar a vingança e o ressentimento. Significa tratar amavelmente a quem nos ofendeu.
O melhor exemplo de perdão no Antigo Testamento é o de José, que perdoou aos irmãos o terem tentado matá-lo e depois vendê-lo. “Não vos entristeçais, nem vos irriteis contra vós próprios, por me terdes vendido para este país; porque foi para podermos conservar a vida que Deus me mandou para aqui à vossa frente” (Gen 45, 5).

E o maior perdão do Novo Testamento é o de Cristo na Cruz, que nos ensina que devemos perdoar tudo e sempre: “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34).

5) Consolar os tristes

O consolo para o triste, para aquele que passa por alguma dificuldade é outra obra de misericórdia espiritual.
Muitas vezes, irá a par com dar algum bom conselho que ajude a superar essas situações de dor ou tristeza. Acompanhar os nossos irmãos em todos os momentos, mas principalmente nos mais difíceis, é pôr em prática o comportamento de Jesus que se compadecia com a dor alheia. Um exemplo vem no evangelho de S. Lucas. Trata-se da ressurreição do filho da viúva de Naim: “Quando estavam perto da porta da cidade, viram que levavam um defunto a sepultar, filho único de sua mãe, que era viúva; e, a acompanhá-la, vinha muita gente da cidade. Vendo-a, o Senhor compadeceu-se dela e disse-lhe: «Não chores.» Aproximando-se, tocou no caixão, e os que o transportavam pararam. Disse então: «Jovem, Eu te ordeno: Levanta-te!». O morto sentou-se e começou a falar. E Jesus entregou-o à sua mãe” (Lc 7, 12-16).

6) Sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo

A paciência face aos defeitos dos outros é virtude e é uma obra de misericórdia. No entanto, há um conselho muito útil: quando suportar esses defeitos causa mais dano que bem, com muita caridade e suavidade, deverá fazer-se uma advertência.

7) Rezar a Deus por vivos e defuntos

S. Paulo recomenda rezar por todos sem distinção, também por governantes e autoridades, pois “Ele quer que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (ver 1 Tm 2, 2-3).

Os falecidos que estão no Purgatório dependem das nossas orações. É uma boa obra rezar por eles, para que sejam libertados dos seus pecados (ver 2 Mac 12, 46).

 

Enquanto cristãos, é de grande importância colocarmos em prática as catorze obras de misericórdia, tanto estas Sete Obras de Misericórdia Corporais, quanto espirituais.

Através delas, reafirmamos a nossa fé em Deus e demonstramos que a nossa crença não se limita apenas às palavras, mas também está nas nossas ações.


quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Razão pura

 

 

KANT[1] E OS PARALOGISMOS[2] DA RAZÃO PURA

 

Kaquinda Dias

Introdução

 

Kant: um revolucionário ou um filósofo tradicional?

O tema fundamental do kantismo, a chamada ideia crítica, aparece em 1781, com a Crítica da Razão Pura. Essa obra que traz em seu bojo a principal temática da filosofia do conhecimento kantiana tem como ideia central a rejeição da metafísica tradicional, a metafísica de Wolff e Baumgartem, de Descartes e Leibniz. O que conduziu Kant à ideia crítica não foi, entretanto, a rejeição das conclusões metafísicas, mas sim, a consciência da incerteza dessas conclusões e da fraqueza dos argumentos em que repousavam.

A leitura de Hume, segundo Kant, foi o que o acordou de seu “sono dogmático” e o impulsionou a repensar a metafísica. Com efeito, o empirismo céptico de Hume e, em particular, a sua crítica da noção de causalidade, tornava incertas as posições do racionalismo dogmático. Hume provara “de maneira irrefutável”, segundo Kant, que “a razão é incapaz de pensar a priori, e por meio de conceitos, uma relação necessária, tal como o é a conexão entre causa e efeito” (Prolegômenos, Introdução). Segundo Hume, somente a experiência poderia ter engendrado a noção de causa: é por estarmos habituados a ver um fenómeno Y seguir de um fenómeno X que esperamos Y quando X é dado, e traduzimos esta expectação subjectiva dizendo que X é a causa de Y. A partir de onde Hume concluíra que a razão não possui a faculdade de pensar as relações causais e de modo geral que “ todas as suas pretensas noções a priori são meras experiências comuns falsamente rotuladas, o que equivale a afirmar que não há, nem pode haver, qualquer espécie de metafísica” (Prolegómenos).

Assim, pela análise das noções a priori do espírito, ou das chamadas ideias inatas, é que o racionalismo de Descartes, de Leibniz e de Wolff pretendia atingir verdades absolutas sobre os conceitos de Deus, alma e mundo e constituir uma metafísica. A crítica de Hume, contudo, persuadiu Kant de que era necessário abandonar “o velho dogmatismo carcomido”(Crítica da Razão Pura, A X). Contudo, Kant não era muito simpático aos cépticos, que ele chamara de “espécie de nómada, que tem horror a toda fixação sólida no chão.”(A IX). Para Kant, os dogmáticos construíram seus edifícios metafísicos em solo movediço, onde tudo desmorona antes de ser levado a termo; mas o cepticismo, ao qual se renderam muitos pensadores do século XVIII, comete o erro de professar, pela metafísica, um desprezo que não pode ser sincero, pois que “é inteiramente vão querer afectar indiferença por um género de pesquisa cujo objecto não poderia ser indiferente à natureza humana” (A X).

Dessa forma, é com a metafísica que estão relacionados os problemas da existência de Deus, da imortalidade da alma e da liberdade do homem no mundo: ideias sobre as quais a razão humana é naturalmente levada a pensar, são essas questões, que segundo Kant, não podemos evitar de forma alguma. De modo que a razão não pode limitar-se à experiência; os próprios princípios que emprega no conhecimento experimental conduzem-na inevitavelmente a sair dos limites de toda experiência e conceber realidades transcendentes, tais como a de alma, do mundo considerado em sua totalidade e o de Deus. É claro que nesse domínio, onde a experiência está inteiramente ausente, a razão se vê completamente livre para obter verdades que dependam apenas de si própria, como é o caso das verdades que encontramos na Lógica, na Matemática e na Física, na medida em que essas são verdades fundamentadas a priori na razão. Tais disciplinas enveredaram, aquelas desde a Antiguidade, e esta, desde Galileu e Torricelli, pelo “caminho seguro da ciência” (B XII), isto é, progridem infalivelmente. A metafísica, porém, segundo Kant, estava continuamente enfrentando problemas quanto ao estabelecimento daquelas verdades que afirmava formar o corpo de sua doutrina e os pensadores metafísicos nunca pareciam chegar a um acordo em relação a essas verdades, estando a metafísica em contínuo desacordo consigo mesma.

O problema que Kant enfrenta é, pois, o seguinte: por que a metafísica não apresenta o mesmo grau de certeza que a lógica, a matemática ou a física? E tão grande é sua confiança na razão que não duvida que a questão comporta uma resposta. O comprometimento de Kant se resume no propósito de reabilitar a filosofia de assumir a defesa da razão contra o cepticismo. Mas ao invés de propor um novo sistema metafísico, que sem dúvida teria a mesma sorte que os outros, Kant irá atacar o problema pela raiz, interrogando-se sobre as próprias possibilidades da razão.

Dessa maneira, vemos o que significa a noção de crítica: um exame minucioso da razão que tem por finalidade discernir e distinguir o que a razão pode fazer e quais são seus limites. E, sendo essa crítica uma crítica da razão pura, ela se pronunciará apenas sobre o valor dos conhecimentos puramente racionais, como devem ser os da metafísica: “Não entendo com isso uma crítica dos livros e dos sistemas, mas o da faculdade da razão como tal, em relação a todos os conhecimentos a que esta possa aspirar independentemente de toda experiência, e, por conseguinte, a decisão sobre a possibilidade ou impossibilidade de toda uma metafísica em si, bem como a determinação tanto das fontes como dos limites da mesma; e tudo isso a partir de princípios.”(A XXII).

Portanto, ressalta Kant, era preciso buscar na própria razão as regras e os limites de sua actividade, a fim de saber até que ponto pode-se produzir verdades válidas, quais são, portanto, os limites do conhecimento.

De forma geral, é assim que é vista a filosofia crítica de Kant, ou seja, como um ponto final à metafísica, como uma filosofia que não apenas se contrapõe à metafísica, mas que a destrói definitivamente. Este trabalho irá se concentrar na análise dos paralogismos da razão pura, que estão na dialéctica e que mostram claramente como a razão cai na armadilha de tentar produzir verdades válidas sobre a alma e como, por não serem verdades que se pode conhecer, essas afirmações sobre a alma não podem constituir uma ciência da alma ou uma psicologia racional. Contudo, pela análise do conceito do eu penso, verificaremos as ambiguidades, dificuldades e obscuridades do texto kantiano nos paralogismos, dificuldades essas que têm sido discutidas e apontadas por muitos estudiosos da obra kantiana. Além de expor os paralogismos, procurarei mostrar o quanto Kant se aproxima e o quanto de facto se afastou dos metafísicos tradicionais aos quais tão veementemente combateu, para, por fim tentar mostrar que Kant na realidade nunca procurou se opor à metafísica em si, mas apenas à metafísica tal como formulada pelos filósofos racionais do século XVIII. Meu intuito será o de mostrar que Kant, de facto, era um filósofo mais tradicional do que às vezes se supõe[3]. Kant queria mesmo era livrar a metafísica de certas impurezas e reposicioná-la no que ele acreditava ser seu verdadeiro domínio. O “eu penso” e a psicologia racional.

A questão para a qual chamarei atenção nesse estudo sobre Kant se refere à proposição “eu penso” que encontramos na dialéctica Transcendental. E essa questão seria: como entender esse eu penso? Sabe-se que é a partir da proposição “eu penso” considerada do ponto de vista transcendental, ou seja, como condição exclusiva para que minhas representações pertençam a mim, que Kant inicia sua crítica às pretensões racionalistas de fundar uma ciência da alma ou uma psicologia racional.

Assim, a questão que se põe é: como entender exactamente esse “eu penso” e no que ele se difere do “eu penso” cartesiano? O quanto Kant de facto se afastara de Descartes? Em algumas passagens nos Paralogismos, Kant se refere a um “eu penso” considerado em sentido problemático, a um “eu penso” em geral, e ao nosso ser pensante, como veremos a seguir. Por isso, após um breve exame sobre o “eu penso” colocarei em confronto opiniões e leituras diferentes de alguns comentadores de Kant sobre o que seja o “eu penso” kantiano e, mesmo, sobre qual é sua função na análise dos Paralogismos da Razão Pura.

“O “eu penso” é, pois, o único texto da psicologia racional de onde esta deverá extrair toda a sua sabedoria” (A343/B401). Com essa afirmação, Kant aponta que o solo sobre o qual repousa toda a estrutura da Psicologia Racional é o “eu penso” ou a noção de um sujeito puro, absoluto. Mas a questão que se põe é: em que medida o eu penso, a substância pensante, funda e sustenta o edifício da Psicologia Racional?

A Psicologia Racional parte do “eu penso” e o toma como um sujeito absoluto, é o eu (enquanto consciência de si) convertido em substância, que actuaria como fundamento do pensamento e do qual derivariam todos os fenómenos psíquicos internos, de forma que a Psicologia Racional se constituiria como a ciência da alma. Esta pretendia fazer-nos conhecer a natureza do sujeito. Sua origem se deve à razão, que actuando como faculdade dos princípios busca o incondicionado, ou seja, se lança na empreitada de encontrar para o conhecimento condicionado do entendimento, o perfeito, o pleno, com o que se completa a unidade do mesmo (cf. A345). Desta forma, a razão chega a conceitos puros da razão ou ideias (cf. A348), que são conceitos aos quais não se pode dar um objecto congruente nos sentidos (cf. A359). Quando a razão serve-se da função do raciocínio categórico, chega necessariamente à noção da unidade absoluta do sujeito pensante.

Para a Psicologia Racional, é a partir do “eu penso” que se chega à ideia de alma como uma substância simples, idêntica e capaz de manter-se em relação como os objectos possíveis no espaço (pois se infere que o sujeito pensante seja uma unidade ontológica substancial, a partir da ideia de que o que só pode ser pensado como sujeito é substância), a qual figura como o princípio incondicionado, como essência última do sujeito. É uma determinação objectiva das coisas em si e, como tal, nos forneceria conhecimento.

Ainda deve-se notar que a Psicologia Racional, por definição, não poderia apoiar-se em nenhuma experiência, isto é, em nenhuma determinação do sentido íntimo, pois que: “O menor objecto de percepção (o prazer ou desprazer, por exemplo) que viesse juntar-se à representação geral da consciência de si mesmo logo transformaria a psicologia racional em psicologia empírica.”(B401)

O “eu penso” é, pois, a base sobre a qual assentam as asserções da Psicologia Racional em sua pretensão de constituir-se ciência. Ora, uma ciência não é verdadeiramente ciência, a menos que inclua juízos sintéticos. Mas o “eu penso” é um pensamento, e não uma intuição; isto é, sua unidade é puramente analítica; a consciência que tenho de mim mesmo enquanto sujeito único e idêntico não é, de forma alguma, conhecimento. Por conseguinte, é somente através de um paralogismo que se pode passar desta proposição analítica a proposições sintéticas, tais como o são as conclusões da Psicologia Racional.

 

O diagnóstico kantiano

 

Conforme mostraremos o primeiro paralogismo informa que se toma o sujeito em sentidos diferentes nas premissas maior e menor. Na maior, o ser pensante é considerado em geral, e, por conseguinte, tal como poderia ser dado na intuição. Na menor, ao contrário, trata-se unicamente do ser pensando enquanto tem consciência de pensar, do “eu penso” que pode acompanhar todas as minhas representações (este “eu penso” kantiano, puramente formal), e nesse sentido ele não pode, de maneira nenhuma, ser objecto de intuição. A conclusão, portanto, não pode aplicar-se a ele, isto é, não é possível aplicar-lhe a categoria de substância.

Em outras palavras, embora, o sujeito seja apenas sujeito e, de forma alguma, objecto, não se pode concluir que seja uma substância. Por este ‘eu’, por este ‘ele’, ou por ‘esta coisa que pensa’, nada mais nos representamos do que um sujeito transcendental dos pensamentos: e este sujeito não pode ser conhecido senão pelos pensamentos, que sãos seus predicados”(B404).

O erro, pois, consiste sempre em se confundir o eu transcendental com o eu empírico. O único conhecimento que podemos ter de nós é o do eu empírico, diferentemente do que a Psicologia racional defende. Segundo Kant, nós apenas nos percebemos tais como nos aparecemos, e não tais como somos; só conhecemos o eu fenoménico, este eu que percebe, experimenta e conhece o mundo, as coisas ao seu redor, na experiência. Contudo, nunca chegamos a ter acesso a esse “eu” enquanto substrato numénico, reclamado pela Psicologia Racional. Só há conhecimento daquilo que é objecto, e o que constitui o objecto não é a minha consciência do eu determinante, mas tão somente a do eu determinável (cf. B407). Separar o sujeito do objecto é perdê-lo; o que conhece não pode ser conhecido senão enquanto fenómeno. O “eu penso” só pode conhecer o que não é ele, mas mais ainda, ele tampouco pode se conhecer em sua essência. Isso significa que mesmo o que é fenoménico não é uma substância, como algo no espaço pode ser.

Entender o “eu penso” como substância é um equívoco, pois ao fazermos isso, aplicamos de forma ilegítima uma categoria do entendimento, visto que esta pode ser aplicada apenas aos dados da intuição, mas não ao eu penso, que para Kant é pura actividade formal de onde dependem as próprias categorias. A esse respeito, Kant nos diz que: “De tudo isso se vê que a psicologia racional deve sua origem a um simples mal-entendido. A unidade da consciência, que serve de fundamento às categorias, é tomada aqui por uma intuição do sujeito enquanto objecto, a que se aplica a categoria de substância.” (B421-22).

Dessa maneira, Kant nos mostra não só que a base da Psicologia Racional seja o “eu penso” (cartesiano), mas que também o acesso a esse substrato ontológico que deriva da ideia de “eu penso” (cartesiano) é impossível. A ciência da alma, que pretende ter como objecto de estudo a alma, este sujeito, este eu puro, está fadada ao fracasso, pois sua deficiência é interna: a ela não é dado conhecer este substrato numênico que postula, este sempre nos escapará. Logo, ao extrapolar os limites do sensível, a psicologia racional terá como resultado paralogismos da razão pura, nunca conhecimento de fato. Kant declara o projecto de uma tal ciência inviável. O “eu penso” é a um tempo o fundamento da psicologia racional, bem como sua própria chaga.

 

O controverso “eu penso”

 

O problema, porém, é que a descrição kantiana do “eu penso” parece ambígua. Existe de facto uma séria dificuldade em entender o “eu penso” nos Paralogismos, uma vez que as próprias descrições kantianas do “eu penso” são aparentemente contraditórias ou pelo menos conflituantes entre si. Ora Kant diz que o “eu penso” é uma representação, ora diz que é um juízo ou um conceito. Dessa forma, o leitor de Kant não é ajudado pelo próprio autor a entender o que é o “eu penso”. Certamente, não é fácil analisar e compreender os sentidos do “eu penso” nos Paralogismos.

Esse ponto é amplamente reconhecido pelos comentadores. Por exemplo, Walsh, em ‘Crítica da Metafísica de Kant[4], afirma que a dialéctica é a parte da Crítica em que Kant lançará luz sobre alguns conceitos que apareceram na Analítica de forma confusa ou ambígua, especialmente no que diz respeito ao misterioso “eu penso”, que muitas vezes é descrito como uma ‘representação’, um ‘conceito’ e um ‘juízo’ o qual é ao mesmo tempo a expressão da unidade da apercepção e a base sobre a qual os metafísicos constroem a pseudo-ciência Psicologia Racional. Para Walsh, Kant faz um uso muito livre da expressão cartesiana “eu penso”.

Bennett, em Dialetica de Kant[5], apresenta outra leitura sobre o que seja o “eu penso” a partir do que ele chama de base cartesiana. Esse comentador defende a ideia de que o “eu penso” expressa o papel peculiar do sujeito como a fronteira de seu mundo na base cartesiana, como veremos mais adiante.

Já Brook, em Kant and the Mind[6], afirma que, embora a definição kantiana para o “eu penso” não seja clara, trata-se de entender que o “eu penso” não é um conceito ou uma descrição, mas sim uma proposição vazia.

Por outro lado, segundo Landim em seu artigo “Do “eu penso” cartesiano ao “eu penso” kantiano”[7], o “eu penso” pode ser entendido como um juízo que denota um acto exclusivo do entendimento e que tem um significado diferente não só do “eu penso” descrito na Dedução Transcendental, como também do “eu penso” considerado como proposição empírica.

Assim, além das aparentes hesitações e oscilações kantianas, o leitor de Kant se depara com as mais diferentes interpretações dos comentadores sobre o “eu penso”. Apresentarei, no capítulo 3 algumas das importantes interpretações do “eu penso” nos Paralogismos e as discutirei criticamente, após expor o texto kantiano. Numa primeira parte, apresentarei o que chamo de preliminares para uma análise adequada do “eu penso” nos Paralogismos. Na segunda, farei uma apresentação dos textos relevantes de Kant, passando pela discussão crítica dos comentadores na terceira parte. Na quarta, dedico-me a expor a assim chamada psicologia de Kant. Procuro fazer uma análise do que eram e do que se tornaram as noções de psicologia empírica e psicologia racional após o ataque de Kant à metafísica racional, para concluir meu trabalho mostrando que na realidade, mesmo após efectuar a virada crítica, Kant sempre foi um metafísico que, ao efectuar o ataque à psicologia racional na dialéctica Transcendental e às outras partes componentes da metafísica tradicional, na realidade tinha como objectivo de restaurar a metafísica tradicional no que ele acreditou ser seu campo legítimo de actuação (ou seja, o campo da ética) para assim preservá-la dos debates inférteis que assomavam seu domínio no campo do conhecimento[8].

Assim, investigarei especialmente a crítica à metafísica tradicional e a teoria da verdade que resulta dessa crítica. Serão contrastados os aspectos positivos e negativos da teoria kantiana, visando compreender como, à limitação do conhecimento à experiência, corresponde igualmente a possibilidade de superação desses limites pela afirmação da lei moral, embora esse seja um tópico a ser desenvolvido em um estudo posterior.

 

1 - Preliminares para uma discussão crítica de Kant

 

1.1 - O lugar dos paralogismos no interior da Dialéctica:

A Analítica definiu a “terra da verdade” (A235/B294): ela nos permitiu saber sob quais condições podemos afirmar correctamente que nossos pensamentos têm objectos e que nossos juízos são capazes de verdade. Essas condições são aquelas da experiência possível e os resultados da Analítica mostram que elas são necessárias tanto quanto suficientes para o conhecimento. Disso se segue que os limites do conhecimento coincidem com os limites da experiência e que as afirmações da metafísica transcendente são infundadas.

Contudo, até aí apenas a primeira metade da empreitada crítica está completa, pois é na dialéctica que Kant fornecerá uma crítica detalhada à metafísica transcendente. Enquanto na Analítica, Kant se posiciona contra a concepção empirista da experiência em apoio à afirmação racionalista de que a razão pura é necessária para o conhecimento, na dialéctica ele se volta contra a concepção racionalista do escopo da razão, em apoio à afirmação empirista de que deve haver a experiência dos objectos para que eles sejam conhecidos.

Há uma série de razões por que essa empreitada é necessária. A mais óbvia é que um exame da metafísica transcendental é exigido para uma solução conclusiva para o problema da metafísica e a defesa completa de sua teoria do conhecimento.

À primeira vista, parece que Kant poderia simplesmente permitir que seu veredicto contra a metafísica transcendente repousasse nos resultados da Analítica. Mas, num exame mais minucioso, não seria aconselhável para ele manter essa linha. A relação de Kant com a metafísica transcendente é muito mais complexa do que a de outros alvos de sua crítica. Kant não rejeita afirmações sobre objectos não-empíricos, mas, para ele, estes não são, de forma alguma, cognoscíveis. O caso, porém, é que sua teoria da origem a priori das categorias o compromete a afirmar que pensar sobre objectos não-empíricos é possível, mas que o escopo de nosso pensamento excede o de nosso conhecimento possível. A objecção kantiana ao conhecimento transcendente se volta inteiramente sobre a lacuna entre o pensamento e o conhecimento. Nesse momento da obra kantiana encontramos uma das bases de sua crítica à razão quando esta se lança para além dos domínios do mundo fenoménico, ou seja, quando é razão pura. Kant aí denunciaria essa extensão ilegítima do uso da razão e com isso questiona a própria condição de possibilidade de conhecer, ou ainda, podemos dizer que ele põe em xeque o estatuto do que pode ser conhecido pela razão humana. Seria exactamente essa característica que inaugura o modo de pensar kantiano, ou seja, sua filosofia transcendental.

A dialéctica seria, conforme Kant, uma “lógica da ilusão, à qual se opõe, na filosofia crítica, uma crítica da ilusão Dialéctica” (CRP A62/B86). Desse modo, a dialéctica é uma lógica da ilusão em oposição a uma lógica da verdade que, no caso, seria a Analítica Transcendental. Analisarei essa lógica da ilusão, porém vale salientar que, como pode haver diversos tipos de ilusão, é interessante mostrar a qual irei me reportar. A ilusão empírica – as ilusões ópticas por exemplo - provém da influência da imaginação sobre o entendimento, é facilmente vencida e não é objecto desse estudo . Da mesma maneira, segundo Kant, a ilusão lógica não resiste à prova: bastaria ser mais cauteloso em relação às regras da lógica para que os raciocínios sofísticos (o que chamaremos de agora em diante de paralogismos) caiam por terra. A aparência ou ilusão de que trataremos não é do tipo lógico, mas do tipo transcendental[9], a qual é muito mais tenaz, pois “(...) não cessa com ter sido descoberta e com se haver reconhecido claramente a sua inanidade pela crítica transcendental. (...) A causa disso é que há em nossa razão (considerada subjectivamente, isto é, como faculdade de conhecimento do homem) certas regras fundamentais e máximas referentes ao seu uso, as quais têm exacta aparência de princípios objectivos, fazendo com que a necessidade subjectiva de uma certa ligação de nossos conceitos, exigida pelo entendimento, passe por uma necessidade objectiva da determinação das coisas em si” (B 353).

Desse modo verificamos que temos de nos haver aqui com uma ilusão natural e, portanto, inevitável. Não bastaria apenas denunciá-la para que se dissipe, porque responde a uma necessidade ou exigência do nosso espírito. Examinarei, pois, esse tipo especial de ilusão atentando para os paralogismos da razão pura.

A dialéctica Transcendental, como já foi esboçado, é o estudo das ilusões transcendentais e das suas fontes. Nos deteremos numa apresentação dos principais conceitos ligados ao exame da Dialéctica, que nos ajudarão a compreender as ilusões transcendentais.

A sede da ilusão transcendental é a razão pura, que nos cumpre distinguir, agora, do entendimento. A sensibilidade é, em Kant, a faculdade das intuições (ou o que se percebe imediatamente no mundo fenoménico), o entendimento (verstand) é a faculdade das regras, enquanto a razão (Vernunft) é a faculdade dos princípios (B355).

Para Kant, todo nosso conhecimento começa pelos sentidos, donde passa ao entendimento para terminar na razão que, por sua vez, elabora a matéria da intuição e a reduz “à mais alta unidade do pensamento”. Assim todo pensamento consistiria em ligar, unificar. O entendimento, através dos seus conceitos, reduz à unidade a multiplicidade dada na intuição e opera, assim, segundo certas regras. Mas estas mesmas regras, a razão as toma como ponto de partida para atingir uma unidade mais elevada, que é a dos princípios (B359). Kant nos esclarece sobre esse ponto afirmando que, se o entendimento pode ser definido como a faculdade de reduzir os fenómenos à unidade por meio de regras específicas para tal, a razão é a faculdade de reduzir à unidade as regras do entendimento sob certos princípios, ou seja, a razão sempre se refere aí ao entendimento, nunca imediatamente à experiência ou a um objecto e nisso consiste boa parte do nosso problema.

A unidade alcançada pelo entendimento nunca vai além de um encadeamento de factos, mas a razão tende a ultrapassar o entendimento. E isso ocorre porque a razão também é poder de síntese e sua actividade assenta em conceitos, e não em intuições.

Essa busca da mais alta unidade a que me referi acima pode verificar-se já no uso lógico da razão, ou seja, no raciocínio. Efectivamente, raciocinar é compreender uma proposição particular sob uma condição geral que a contém, juntamente com muitas outras. Raciocinar é, pois, julgar, mas tomando por matéria, não as representações, mas as proposições; portanto é levar mais longe a busca da unidade do que o entendimento o faz.

Sobre essa ideia, Kant nos esclarece que razão e entendimento diferem entre si, pois esse último tem como objecto o finito e o condicionado, os fenómenos da experiência, por exemplo, ao passo que a razão tem como objecto o infinito e o incondicionado (B364). Ou ainda, para sermos mais específicos, a razão seria o intelecto quando este vai além do limite da experiência possível. Mas cabe dizer que é a razão pura, isto é, a razão aplicada fora dos domínios da experiência, que se lança em busca do incondicionado, considerado como a condição última de todas as condições. E o incondicionado, por sua vez, é a recusa do inacabado, da dependência, é a exigência de uma conclusão, de uma perfeição, de um ideal.

A dialéctica transcendental, assim, estuda não o intelecto e suas leis, mas a razão e suas estruturas. Em Kant, a razão tem: a) um significado geral, que é o que indica a faculdade cognoscitiva em geral; b) um significado mais específico e, nesse caso, serve para unificar o pensamento e o conhecimento. Ao contrário, então, da concepção dos filósofos racionalistas, em especial dos alemães como Wolff, o entendimento não era sinónimo de razão, mas uma faculdade humana que não se identifica com o entendimento porque não nos dá conhecimento apenas permite pensar sobre conceitos[10]. O entendimento por sua vez permitiria termos conhecimento porque lida com intuições da experiência e com conceitos.

Visto que o conceito possibilita uma ligação do múltiplo dado na intuição sensível, a ideia vai mais além da experiência fenomenal; é uma exigência do remate dos nossos conceitos. É que as sínteses operadas pelo entendimento na experiência não bastam à razão; o mundo empírico não nos satisfaz, uma vez que não passa de um conjunto de fenómenos, e não um todo único. A exigência da razão é a de representar a si o universo como uma totalidade acabada. Por certo, a razão, com suas ideias[11], não apreende nenhum objecto, mas esta ideia de universo, este ideal de um universo acabado e perfeito, impele o espírito a levar adiante, sem cessar, as suas sínteses empíricas. O conceito, obra do entendimento, é um conhecimento limitado; a ideia, obra da razão, é menos um conhecimento do que uma directiva; ela determina, não um objecto, mas um sentido ou rumo (B385-386). E tanto é assim que, em seu uso prático, isto é no domínio da moral, que se localiza o ponto basilar das ideias. Mas convém desde já chamar atenção para o facto de que é somente por causa dessa recusa da razão de contentar-se com o que é, ou nessa exigência de perfeição que, no plano puramente especulativo que damos um significado moral para o mundo, segundo Kant.

Mas qual é o resultado desse esforço em demanda do incondicionado? Quais são essas ideias que a razão pura não pode deixar de formar? Elas podem ser descobertas considerando as diversas maneiras pelas quais se pode remontar à totalidade das condições do condicionado dado e estas diferentes maneiras são definidas pelas categorias[12] da relação (A323).

Em outras palavras, a primeira busca do incondicionado é a de um sujeito que outra coisa não seja senão sujeito, gerando a ideia da unidade absoluta do sujeito pensante, ou seja, a ideia de alma. A segunda é a de uma causa que outra coisa não seja senão causa, indo culminar na ideia da unidade absoluta da série das condições do fenómeno, ou seja, na ideia de mundo. A terceira é a da determinação de todos os conceitos em relação a um conceito supremo que os englobe em sua totalidade; termina na ideia da unidade absoluta da condição de todos os objectos do pensamento em geral, ou seja, na ideia de Deus.

A alma, o mundo (enquanto unidade metafísica) e Deus são, pois as três ideias da razão pura, e a aparência dialéctica vem do facto de se tomá-las por determinações objectivas das coisas em si, e não por simples ligações subjectivas de nossos conceitos. Mas, se nada nos podem dar a conhecer, tais ideias têm pelo menos uma espécie de realidade, visto serem ideias da razão, ou seja, frutos de um raciocínio necessário: “A realidade transcendental (subjectiva) dos conceitos puros da razão tem como base, pelo menos, o facto de sermos conduzidos a tais ideias por um raciocínio necessário”(B397). Este tipo de raciocínio é chamado necessário por Kant, pois tem um fundamento transcendental que nos impele naturalmente a estabelecer uma conclusão formalmente inválida a esses raciocínios. Estes raciocínios fazem parte de uma ilusão transcendental que consiste no facto de atribuirmos erroneamente um valor objectivo a conceitos sem prestar atenção a suas condições de validade. Formamos um raciocínio perfeitamente lógico, mas aplicando-o sub-repticiamente, conferindo-lhe um valor de conhecimento, transferimos incorrectamente as estruturas subjectivas de nosso pensamento para a objectividade do mundo. A “necessidade” desse raciocínio, reside num carácter “natural e inevitável” da ilusão a que a razão é levada. A razão é levada a engendrar raciocínios falsos que não deixam de existir nem quando esta os reconhece, pois a razão tende naturalmente ao incondicionado, é este movimento que produz necessariamente esses raciocínios sofísticos.

Todavia, este raciocínio necessário, que resulta da própria natureza da razão, não passa de um sofisma, isto é, de uma falácia, erro de raciocínio, e é ao estudo desses raciocínios sofísticos que Kant consagra a segunda parte da Dialéctica Transcendental, intitulada “Dos raciocínios dialécticos da razão”. Os sofismas que conduzem à ideia de alma, e que são chamados paralogismos da razão pura, constituem a Psicologia racional. A ideia de mundo, objecto da Cosmologia racional, inspira os raciocínios contraditórios chamados antinomias da razão pura, os quais são igualmente verdadeiros ou igualmente falsos. E enfim, a Teologia racional, que trata do ideal da razão pura, ou seja, de Deus, contém os sofismas pelos quais se pretende demonstrar a existência de um Ser supremo.

Estas três divisões correspondem às três questões fundamentais da Metafísica: a imortalidade (que se pretende estabelecer na Psicologia racional), a liberdade (de cuja existência ou não-existência se pretende decidir na Cosmologia racional), e Deus (cuja existência se tenta provar na Teologia racional).

 

1.2 - O conceito de alma em Kant:

 

Pensadores como Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Wolff e um sem número de outros nomes estiveram durante praticamente toda a história da filosofia às voltas com a questão sobre o que seria a alma. Kant também aborda a temática da alma, contudo seu interesse se centra mais numa crítica desse conceito. Vejamos porquê.

Como vimos, a primeira das três ideias da razão é a alma, bem como que Psicologia Racional teria como objecto ou “único texto” (A343/B401) o “eu penso”.

O “eu” enquanto “... ser pensante, objecto do sentido interno” é o que Kant chama de alma (A342). O conceito de alma em Kant, assim, aparece no capítulo primeiro da dialéctica como designando um sujeito absoluto, um ser que não é objecto da experiência fenomenal, como o corpo o seria. Dessa maneira este “eu penso”, enquanto sujeito absoluto do qual derivam todos os fenómenos psíquicos internos, seria a alma.

A investigação da substância pensante, ou desse sujeito absoluto do “eu penso” que a Psicologia racional empreende para Kant, está fadada ao fracasso, pois toma o sujeito de “eu penso” como objecto de conhecimento, estendendo o uso das categorias para além de sua legítima aplicação, isto é, o problema aqui reside no facto de que a psicologia racional tenta provar que a

alma seja uma substância, numericamente idêntica, simples e capaz de manter-se em relação com todos os objectos possíveis no espaço (A345/B403).

Vejamos como se dá o primeiro enunciado da Psicologia racional: no primeiro paralogismo mostra-se que o “eu” que pode acompanhar o pensamento é substância. Enquanto Kant afirma que “fora da significação lógica do eu, não temos nenhum conhecimento do sujeito em si, que, na qualidade de substrato, esteja na base desse sujeito lógico, bem como de todos os pensamentos. Entretanto, pode-se certamente admitir a proposição ‘a alma é substância’, se nos resignarmos a que este nosso conceito não leve mais além ou não possa ensinar nada das conclusões habituais da doutrina racional da alma, como, por exemplo, a duração constante da alma em todas as modificações e mesmo na morte do homem e que, portanto, designa apenas uma substância na ideia, mas não na realidade”(A350). O erro, portanto, é atribuir a categoria de substância ao que é conceito puro, ao qual não corresponde nenhuma intuição. Isso significa que não nos conhecemos enquanto substratos numénicos, ou seja, nosso “eu” em si, mas como fenómenos, como seres que se encontram no espaço e no tempo e que é determinado conforme as doze categorias[13].

A alma, esse eu que transcende os limites da experiência, não pode ser conhecida por nós. De modo algum constitui um princípio de conhecimento transcendente, como se pretendia pela metafísica tradicional, porque fora dos limites da experiência não nos é possível obter conhecimento.

Kant, assim, analisa o conceito de alma, tal como concebido pela metafísica tradicional, criticamente negando a possibilidade de que dele possam se extrair consequências de valor epistemológico para nós. Isso, contudo, não significa que ele rejeita o conceito de alma ou o nega. Kant lhe confere um outro estatuto, que não é o de objecto do conhecimento, mas da moral.

A alma como uma ideia da razão, ganha um uso regulador com Kant e passa a valer como uma espécie de regra, sob a qual nossas acções devem se nortear. A ideia de alma, assim como as outras ideias, passam a ter outra função, como princípio heurístico, como horizonte moral que guie as acções e a vontade humana sob forma de lei.

A alma não pode ser conhecida pela razão teórica, mas pode ser determinada pela razão prática. O que significa que a busca pelo incondicionado, esse inevitável lançar-se da razão humana ao transcendente ganha seu sentido e tem sua validade assegurada quando se trata do campo da moral.

Tendo em vista a existência de uma alma imortal, um Deus que a tudo preside e um mundo enquanto totalidade, enquanto absoluto metafísico, as acções humanas podem ser dirigidas visando à harmonia e paz em comunidade, assim o mundo ganha um sentido para os homens.

O conceito de alma, portanto, é transferido do campo da razão teórica no qual era vazio de significado, para exercer função de princípio normativo com a razão prática.

Kant, ao operar essa transição, nos oferece um uso legítimo desses conceitos e delimita o campo da possibilidade de nosso conhecimento. Assim, a noção de sujeito em Kant nascerá dessa transição. A nova concepção de sujeito apresentada por Kant não só impedirá a formulação da metafísica com estatuto de ciência, mas fará uma revolução epistemológica que apresentarei em seguida.

Notemos, todavia, que, se a Crítica conclui ser impossível demonstrar que a alma é imortal, ela conclui, da mesma maneira, pela impossibilidade de se provar que não o seja. Ela traça, no conhecimento de si, um limite intransponível à razão especulativa, impedindo-a “tanto de lançar-se no seio de um materialismo sem alma”, como “de perder-se visionariamente num espiritualismo que não tem para nós fundamento algum na vida.”

 

1.3 - A concepção de sujeito em kant no contexto da filosofia moderna.

 

Assim se situará a análise dos paralogismos nesse trabalho, que busca mostrar que os paralogismos são os primeiros raciocínios dialécticos apresentados no contexto da Arquitectónica da Crítica, porque é a partir do sujeito (do eu) que os Racionalistas construíram suas teses metafísicas e só se pode derrubar o edifício da Metafísica Moderna, a partir de Descartes e Locke, em sua pretensão de tornar-se ciência pela sua base, o sujeito. Kant mostra que é por causa de uma concepção inadequada da noção de sujeito que se originam os raciocínios dialécticos do eu. Como esses raciocínios (que são ilusões transcendentais) encontram sua base e origem na ideia de sujeito (eu) tal como concebida nos racionalistas, Kant os exporá e analisará em primeiro lugar.

Na chamada “Revolução Copernicana”[14] atribuída a Kant pelo modo como este inverte o papel do sujeito no processo do conhecer, podemos identificar toda uma reestruturação não só do papel do sujeito no conhecimento – agora como um elemento activo e participante desse processo -como também da própria acepção de conhecimento e de sujeito.

Ao deslocar o sujeito para uma função activa em relação à produção do conhecimento, Kant tira também do sujeito aquela posição epistémica privilegiada concedida por Descartes e outros filósofos. O sujeito não escapa à investigação crítica, porque para Kant este sujeito absoluto e intocável dos racionalistas é tão obscuro e problemático quanto o mundo enquanto uma totalidade ou Deus. Este sujeito, para quem é postulada uma alma imortal, este sujeito que origina o “eu penso” cartesiano, conforme Kant nos mostra, origina também as ilusões transcendentais do eu. Por isso, Kant fornece uma nova acepção de sujeito e consequentemente, teremos em primeiro lugar a análise dos paralogismos da razão pura na Crítica.

Assim como antes o sujeito tinha um lugar primeiro e privilegiado pelos racionalistas, agora na dialéctica ele também será analisado em primeiro lugar, pois dele decorrem os demais raciocínios dialécticos. Porque é somente por pensar o sujeito num lugar incorrecto e de um modo incorrecto é que todo o sistema do conhecimento e domínio da ciência encontra-se em disputas inférteis, sem consolidação e a ciência não se define nem se fortalece e também é só assim que a metafísica pode se pretender uma ciência.

Para entendermos a transição do conceito de sujeito dos racionalistas ao adoptado por Kant, traçarei um percurso que se inicia com Descartes, passa por Locke e termina em Kant. Descartes fala, não exactamente de um sujeito, mas de uma ‘res cogitans’. O famoso ‘Cogito ergo sum’ seria uma operação que me permitiria suspender a dúvida sobre minha própria existência quando eu tenho a experiência de pensar. O ‘cogito nos forneceria’, assim, a certeza de que posso ter um acesso preciso e indubitável a mim mesmo pelo pensamento. Mas o facto é que nesse primeiro momento eu sei que tenho consciência de mim mesmo pelo pensamento que é por sua vez sempre claro e distinto. No entanto, esse tomar consciência de si ainda não é concebido por Descartes como sujeito. Ao dizer que enquanto penso, sou, isto é, ao se ter a certeza de que existo como pensamento, Descartes não afirma com isso que, se penso, sou um sujeito que pensa, ou seja, compreende, imagina, sente, actua no mundo, vê, corre, dorme, etc. Em vez disso, a única coisa que diz é que eu sou uma coisa que pensa, uma ‘res cogitans’.

Dessa forma, o sujeito compreende a si como ‘cogitatio’, uma substância singular que se distingue de outra, a ‘res extensa’, a ideia de sujeito é entendida sob o modo do “eu penso”. Mas, mesmo assim, Descartes não chega, até onde se sabe, a falar de sujeito propriamente. O que acontece é que os filósofos discípulos de Descartes introduziram a ideia de ‘consciência’ na disseminação das teses cartesianas, transformando o ‘eu’ cartesiano em ‘eu consciente’[15] e este último em sujeito-objecto de uma metafísica da alma, uma psicologia racional, que é um dos objectos de crítica kantiana.

O sujeito cartesiano é, pois, uma substância pensante, um sujeito que tem sua existência assegurada pelo pensamento, ou melhor, pela certeza do pensamento. Todas as coisas ao seu redor, objectos materiais e num ponto de vista mais amplo até a realidade a sua volta, podem ser objecto de dúvida quanto a existirem ou não, porém a certeza de que sou, de que existo, me é dada pelo pensamento, não pelos dados sensíveis, portanto isso é certo e indubitável.

Esse sujeito, cuja existência é garantida pela operação do cogito, é pois um sujeito que se destaca num lugar de privilégio existencial sobre todas as demais coisas no mundo, mas além disso – e essa é uma decorrência dessa ideia - esse sujeito se conhece antes e melhor que todas as outras coisas ao seu redor. Por isso, a noção de conhecimento em Descartes depende em toda sua estrutura dessa concepção de um sujeito absoluto que tem acesso epistémico privilegiado a si. Todo o edifício do conhecimento para Descartes se fundamenta aí e é a partir dessa noção de sujeito que ele inaugura sua filosofia racionalista.

Locke ao contrário, caminha na contracorrente e sua noção de sujeito ou de alma se relaciona com o sensível, com a experiência. Para ele, a mente não possui qualquer outro conteúdo além das ideias extraídas em primeiro plano da experiência, ideias essas que ela associa, dissocia, combina e ordena. E essas ideias não são o que definem a mente, o sujeito, mas a experiência que as originou. As ideias[16] para Locke não são meros conteúdos inatos dos quais se desenvolverão os germes do conhecimento, mas produto da experiência, seja interna (reflexão) ou externa (sensível), que servirão de base para a produção de conhecimento. Dessa forma, sua concepção sobre sujeito já se mostra diferente da cartesiana por não admitir um sujeito que é como uma instância epistemológica basilar em relação ao conhecimento como um todo. Locke também oferece resistência à ideia de uma substância pensante absoluta, isto é, auto-suficiente, independente da experiência, independente de ser produto da experiência. Responde ele a Descartes que temos aí uma ilusão: não se deve associar o pensamento a uma substância independente da experiência e que existe por si porque isso seria confundir o que é uma operação mental (pensar em si, pensar que se tem consciência de si enquanto pensa) por um ente real. Toma-se um processo mental por um fenómeno, tal é o erro cartesiano. Daí sua recusa em aceitar as ideias inatas de Descartes na explicação dos fundamentos do conhecimento.

O sujeito lockeano não é uma “coisa que pensa”, mas é a comunhão de uma dimensão psicológica (ser consciente), uma dimensão lógica (identidade) e uma perspectiva moral (a responsabilidade), além da estética (o prazer). São esses elementos que reencontraremos na composição do(s) sujeito(s) kantiano(s). E Kant também retoma de Locke a função da unidade da consciência de si, ou o “Eu penso que pode acompanhar todas as minhas representações” dado que tanto para Locke quanto para Kant temos a consciência em unidade.

A diferença entre Locke e Kant em relação ao sujeito e também a diferença entre Kant e Descartes é que o “eu penso” é uma função puramente lógica. Não temos aí um “eu penso” que designe uma substância pensante (uma alma) que independe da experiência para existir e que originará uma noção de conhecimento e ciência baseados na precisão e certeza do intelecto puramente; tampouco que designe um conteúdo psicológico na consciência de si e uma memória que garanta identidade consigo mesma e responsabilidade moral no caso de Locke.

O sujeito kantiano na realidade se divide em dois: o sujeito fenomenal (que actua no mundo, um ser mais moral) e um sujeito que chamamos de “eu transcendental”, do qual nada posso saber enquanto tal, mas que em contrapartida é através dele que posso conhecer. Temos, pois um eu empírico de um lado, ou um eu que pertence ao mundo fenoménico e que pode ser apreendido e compreendido como um fenómeno e um eu que permite que todas as minhas representações sejam minhas de facto e que, portanto, viabiliza o processo do conhecimento, mas que ele mesmo não pode ser conhecido por ser uma função intelectual de unidade.

O “eu penso” kantiano actua dessa forma, como um índice da consciência de si (se nos remetermos a Locke) que pode acompanhar todo acto cognitivo ou toda operação mental, isto é, as sínteses da percepção podem através dessa função ser unificadas em um acto que não é mais da ordem da percepção mas de uma apercepção[17], que Kant denomina apercepção transcendental.

Esse eu penso, essa consciência de si é, então, condição de possibilidade do conhecimento, mas não pode tomar-se a si mesma por objecto de conhecimento, ou como coloca Kant, “afectar a si mesma”. Se esse “eu” tomar-se a si como objecto de conhecimento seria como o sujeito psicológico de Locke e portanto, empírico (A342/B400).

A distinção que Kant faz entre um eu empírico e um eu transcendental inaugura seu idealismo transcendental, uma vez que já que não temos acesso imediato aos objectos exteriores, mas os acessamos por meio das representações (sensibilidade e percepções) conferindo o estatuto puramente fenoménico do conhecimento.

Kant nos revela um sujeito transcendental, um sujeito, um eu que opera exclusivamente na esfera do conhecimento, um sujeito que é responsável pela nossa formação e apreensão de conhecimento. Nessas perspectivas que o sujeito participa activamente da constituição do conhecimento junto aos fenómenos ao seu redor que também são condições para obtenção de conhecimento. Mas o que caracteriza o eu transcendental é que ele não é um sujeito do qual se pode conhecer as propriedades metafísicas como a simplicidade, imaterialidade ou incorruptibilidade, conforme Kant nos aponta nos paralogismos da Razão Pura, mas é concebido como uma unidade de juízo e reflexão. Temos aí, pois, a denúncia kantiana de que é impossível que a metafísica se constitua como ciência algum dia. Kant, contudo, admite que o fazer metafísica, que o lançar-se ao incondicionado, é natural para a razão humana, por isso tem lugar na esfera das acções humanas, ou no caso, no domínio da moral, porque nesse âmbito, Kant afirma que precisamos de um Deus ou da ‘certeza’ da existência da alma para nortear nossas acções e relações. Não podemos conhecer a alma ou a Deus, como queriam os racionalistas, pois, Kant adopta a distinção leibniziana entre percepção e apercepção. Mas a apercepção leibniziana propriamente está na Crítica em forma de apercepção empírica, ou sentido interno que é “a consciência de si mesmo de acordo com as determinações de nosso estado em percepção interna” (A107). Junto a ela está a apercepção transcendental que para Kant é o que torna possível a faculdade de julgar, é a faculdade de “fazermos de nossas próprias representações o objecto de nosso pensamento” (Falsa subtileza das quatro figuras silogísticas[18]). Na Crítica da Razão Pura, a apercepção transcendental desempenha o papel de unidade a priori que permite formular juízos (unir uma intuição a um conceito) do conhecimento, como o princípio do conhecimento humano. Entretanto, Kant afirma que existe o emprego regulativo para as ideias da Razão Pura: a moral. Por isso, podemos dizer que Kant nunca de facto destruiu ou abandonou a metafísica. Ele apenas a situou onde acreditava ser seu verdadeiro domínio.

 

2 Apresentação dos textos relevantes de Kant

 

A Psicologia racional, da qual um dos maiores representantes é Descartes, é um ramo da Metafísica Tradicional, a qual diz ser capaz de conhecer o eu (ou alma, daí o termo psicologia, estudo da alma, psique) e suas características que seriam a de uma substância indivisível, imaterial, incorruptível e imortal. A psicologia racional é distinta da empírica entre outras coisas porque se baseia unicamente na apercepção[19] do “eu penso” (cogito cartesiano). Sendo o “eu penso” uma representação não empírica, a psicologia racional se esforça para responder a seguinte questão: “Qual é a constituição daquilo que pensa?” (A398) em termos a priori.

A partir disso é que Kant investigará as quatro principais asserções da psicologia a respeito da alma, as quais ele denominou de paralogismos, pois para Kant um paralogismo é um silogismo inválido (A341, B399), a primeira forma que a ilusão transcendental toma, isto é, a ilusão sobre o eu e que serão classificados como o da substancialidade da alma, o da simplicidade, o da identidade e o da relação exterior (A395). Desses conceitos decorrerão outros como a imaterialidade, incorruptibilidade, espiritualidade, comércio psicofísico, animalidade e imortalidade.

A Psicologia Racional tem como sua pretensão fazer-nos conhecer a natureza do sujeito, isto é, do sujeito absoluto, considerado como substância do eu, como alma. Suas proposições determinam a alma do ponto de vista da relação, ou seja, quando diz que a alma é uma substância pensante; do ponto de vista da qualidade, ao afirmar que a alma é simples; da quantidade, ao afirmar que a alma é uma e idêntica; e finalmente do ponto de vista da modalidade, afirmando que a existência da alma é mais certa que a do corpo. Na primeira edição da Crítica (cf. A348-405), Kant estudara, sucessivamente, os quatro paralogismos da psicologia racional (os da substancialidade, da personalidade, da simplicidade e da idealidade). Na segunda edição, contenta-se com uma crítica geral. Isso porque, em última análise, os diferentes argumentos se baseiam num só e mesmo sofisma, que se faz mister pôr em evidência[20].

Por definição, a psicologia racional, não pode apoiar-se em nenhuma experiência ou em nada da experiência. (B401) Para Kant, porém, uma ciência não é verdadeiramente uma ciência a menos que inclua juízos sintéticos, ou seja, juízos que nos ofereçam conhecimento. Ora, como se vê na Dedução Transcendental das Categorias , o “eu penso” é um pensamento, e não uma intuição; isto é, sua unidade é puramente analítica; a consciência que tenho de mim mesmo enquanto sujeito único e idêntico não é, de forma alguma, um conhecimento[21]. Por conseguinte, é só através de um paralogismo que se pode passar desta proposição analítica a proposições sintéticas, tais como o são as conclusões da psicologia racional. O ponto central do primeiro Paralogismo é nos apresentar a alma não somente como algo existente, mas como um substrato último, mais essencial do sujeito, que equivaleria ao eu. Teríamos, pois algo de permanente aí. A experiência do sujeito interno nos é dada como permanente. Comentadores de Kant, como Gardner[22], defendem que não há nada de permanente na experiência do eu. Tudo que é dado no sentido interno é uma sucessão de aparências que precisam se sujeitar a uma unidade.

Mesmo assim, seria preciso que o conceito de substância tivesse uma intuição correspondente na experiência e, assim, a conclusão da psicologia racional poderia ser justificada, caso o conceito de substância fosse empregado na sintetização do eu. Porém, conforme o que Kant já demonstrou, tudo o que é envolvido no processo de sintetização do eu é o “eu penso” enquanto apercepção transcendental. E esta é uma condição para a aplicação do conceito de substância juntamente as outras categorias.

Segundo a interpretação de Sebastian Gardner, tudo o que esse paralogismo nos diz é que se um objecto X corresponde a uma representação Y e Y é um sujeito lógico, então X é uma substância.

A inferência que é permitida é condicional sobre um objecto já dado: ela diz que se um objecto X é dado e sua representação é um sujeito lógico, logo X é uma substância. A premissa maior, entendida correctamente, não nos fala nada sobre as condições sob as quais objectos podem ser dados. Não se pode, pois autorizar uma inferência de representações para objectos como a Psicologia Racional supõe e reclama.

Essa inferência do primeiro paralogismo é a pedra de toque, o fundamento da psicologia racional, sem o qual esta não se sustentaria (vide B410-413). Acredito que apenas o primeiro paralogismo já seria suficiente para mostrar todo o intento, conteúdo e falha da psicologia racional, mas Kant para tornar sua exposição mais completa e segura, segue mostrando como o mesmo padrão dialéctico é repetido nas outras inferências sobre a alma. Vamos então segui-lo.

 

2.1 - Primeiro paralogismo:

 

Esse paralogismo fundamental, como já vimos, se apresenta assim:

1. O que é pensado sujeito de juízo e não pode ser predicado de nada mais, é substância.

2. Eu como um ser pensante sou sempre o sujeito de meus pensamentos.

3. Portanto, eu, como um ser pensante (alma), sou substância.

O argumento é, à primeira vista, convincente. Kant explica, contudo, que não é válido (A349-51/B410-13). O paralogismo aqui consiste em tomar o sujeito em sentidos diferentes na premissa maior e na menor. Na maior, o ser pensante é considerado em geral e, por conseguinte, tal como poderia ser dado na intuição. Na menor, ao contrário, trata-se unicamente do ser pensante enquanto tem consciência de pensar, do “eu penso” que acompanha todas as minhas representações, e neste sentido não pode, de maneira nenhuma, ser objecto de intuição. A categoria de substância, portanto, não pode aplicar-se a ele.

Em outras palavras, o sujeito é apenas sujeito, e de maneira alguma objecto; o pensamento se define por um acto, e não por propriedades. O erro da Psicologia Racional, então, consistiria em um equívoco sobre o sujeito; uma confusão do sentido lógico do termo com seu sentido extra-lógico. Kant afirma que o ‘eu’ é sempre algo do qual as coisas são predicadas, e não pode nunca ser predicado de nada mais. Então é verdade que o ‘eu’ deve sempre ser reconhecido como sujeito de pensamento. Mas, de acordo com Kant, isso é adequadamente entendido como uma asserção sobre o papel lógico da representação ‘eu’: ela nos diz que o ‘eu’ deve ocupar uma posição de sujeito de qualquer juízo. Então, o que é verdadeiro é somente que o ‘eu’ deve ser reconhecido como sujeito no que Kant chama de o sentido ‘lógico’ do sujeito. Dessa forma, pode-se entender melhor o que Kant, na Dedução Transcendental, diz com «o “eu penso” pode acompanhar todas as minhas representações». Pois que esse “eu penso”, esse ‘eu’ significa a unidade transcendental da apercepção ou, em outras palavras, esse ‘eu’ não significa um sujeito de carne e osso, mas é “a forma da apercepção que pertence a toda experiência e a precede” (CRP A354). É, pois, a forma que acompanha toda e qualquer representação que um sujeito possa ter, para que essa possa pertencer a ele.

E disso não se segue que o ‘eu’ seja um substrato numénico. Prova disso é que Kant já nos mostrou na Dedução Transcendental que nada se segue sobre a natureza do eu como um objecto, além de que o “eu penso” é uma unidade puramente formal.

A barreira que Kant ergue entre o sentido lógico e o real de sujeito, pela qual as inferências da psicologia racional são invalidadas, depende de sua descrição das condições de aplicação do conceito de substância e, de forma mais geral, das condições sob as quais objectos podem ser dados, no que, de acordo com Kant, a psicologia racional não consegue entender. (A349-50, A399-400, B407-412).

 

2.2 - Segundo Paralogismo:

 

Passarei agora ao segundo paralogismo (A351-2, B407). O facto de que o pensamento essencialmente envolve unidade permite a psicologia racional reclamar que o “eu” não é apenas uma substância, mas uma substância simples e indivisível.

Kant afirma (A352-6, A400-1, B408) que embora seja verdade que o “eu pensante” não pode ser composto – se as diferentes partes do meu pensamento fossem distribuídas entre diferentes partes de mim, elas não formariam um pensamento só - disso não se segue que o eu possui a unidade de um objecto indivisível. A unidade do pensamento não implica a unidade do sujeito pensante, excepto no sentido tautológico (analítico) que um ser que pensa não deve ser composto de um modo que seja inconsistente com a unidade do pensamento. Assim, a unidade do eu é, de novo, somente lógica, puramente formal.

Tudo o que ‘eu sou simples’ realmente mostra é que a representação ‘eu’ não contém nenhum conteúdo de nenhuma sorte.

A ideia dos psicólogos racionais, por oposição, seria algo do seguinte tipo: porque o ‘eu’ é completamente vazio, supõe-se que este deve denotar um objecto simples. Na realidade, dizer que

o ‘eu’ é simples significa somente dizer que “penso alguma coisa, como completamente simples, porque, na realidade, não sei dizer nada mais, a não ser que é alguma coisa” (A400).

 

2.3 - Terceiro paralogismo:

 

O mesmo tipo de erro a respeito das características da apercepção para as de substância, leva a psicologia racional a afirmar que o ‘eu’ se refere a uma mesma pessoa, uma substância que tem consciência de sua identidade através do tempo e da mudança, sendo este o terceiro paralogismo (A361-2,B408). A psicologia racional infere a personalidade do ‘eu’ do facto de que eu sou consciente de minha identidade durante o tempo que não sou consciente de mais nada. Novamente, Kant afirma (A362-6, B408-9) que essa inferência envolve uma confusão de um uso lógico e não-lógico dos conceitos, neste caso o conceito de identidade.

Para tornar esse ponto mais esclarecedor, Kant emprega a seguinte analogia (A363n-64n): Algumas de esferas são colocadas numa linha, a primeira a ser jogada comunicará seu movimento à sua sucessora e assim por diante, como num jogo de sinuca. De forma similar, para tudo o que conhecemos, no caso do ‘eu’ é perfeitamente possível, para toda série de sucessão, substâncias numericamente distantes comunicarem suas representações e consciências à seguinte. Na realidade, a unidade de consciência através do tempo é totalmente compatível com mudança de identidade da substância e não há nenhuma inferência legítima da unidade da apercepção para aquela da coisa pensante através do tempo.

 

3.4 - Quarto paralogismo:

 

Um erro final é cometido pela Psicologia Racional – o quarto paralogismo (B409) – quando esta converte a verdade de que eu posso distinguir minha própria existência como um ser pensante de outras coisas fora de mim incluindo meu corpo, na asserção de que minha existência é independente da do meu corpo (o que claramente nos remete ao argumento cartesiano do dualismo psicofísico).

Diante da crítica da noção racionalista de substância, em especial de Descartes, como podemos entender a necessidade da refutação do dualismo psicofísico efectuada por Kant no quarto paralogismo? Considerando as diferenças entre a primeira e segunda edição da Crítica, farei uma análise mais detida desse paralogismo tratando separadamente as duas edições. Para tanto, acompanharei a exposição do quarto paralogismo por Kant, analisarei seus argumentos e exporei a crítica kantiana ao paralogismo, para que se possa esclarecer a questão que tenho em vista e relacionar o quarto ao primeiro paralogismo.

Para construir o paralogismo, na primeira edição, Kant utilizará as teses da filosofia da consciência cartesiana que são também teses do idealismo empírico: 1) o que ocorre em nós é imediatamente percebido; 2) somente o que é imediatamente percebido é indubitável. O paralogismo nos mostrará que essas teses, quando em conjunto, resultarão na dúvida sobre o mundo exterior.

Se reconstruirmos o quarto paralogismo, chegaremos ao seguinte argumento:

1. O que é imediatamente percebido é indubitável.

2. A existência dos objectos externos, isto é, de objectos fora de nós não é percebida imediatamente.

3. A percepção de objectos externos é um efeito da existência desses objectos, que são a causa da percepção.

4. Um efeito, no entanto, pode ter várias causas, conhecidas e desconhecidas.

Segue-se então a conclusão céptica: o conhecimento da existência dos objectos externos é incerto.

A primeira premissa do paralogismo exprime uma tese fundamental da filosofia da consciência cartesiana, pois a descoberta e a prova do eu existo como ser pensante só é possível pela tese da indubitabilidade dos actos de consciência e do eu penso. Se o “eu penso” é indubitável é porque não é possível negar que se pensa sem exercer um acto de pensamento, o que significa que o acto do pensamento se liga à consciência do acto, ou seja, não há como pensar sem estar consciente desse acto, por isso não há como negar ou duvidar do acto de pensamento.

No paralogismo, Kant se vale de outra terminologia, mas com o mesmo sentido, e opõe aquilo que ocorre em nós[23] ao que existe fora de nós.

Na segunda tese, temos que lidar com o sentido da expressão fora de nós, que parece ser ambíguo, para que compreendamos seu significado. Como Kant mesmo assinala[24], essa expressão pode ser usada em dois sentidos: num sentido transcendental, como designando objectos cuja existência independe de condições epistêmicas e, sob este aspecto, designando objectos “distintos de nós” (coisas em si); num sentido empírico, como designando objectos submetidos às relações espaciais (fenómenos) e, sob esse aspecto, designando objectos (fenómenos) exteriores a nós.

A prova do paralogismo usa, porém, da ambigüidade dessa expressão para mostrar a dubitabilidade do conhecimento de objectos externos. Para Kant, a expressão fora de nós, designa objectos espaciais. Mas, para demonstrar que esses objectos não são percebidos imediatamente, é necessário dar um outro sentido à expressão objecto fora de nós. Agora, essa expressão designará os objectos cuja existência independe de condições epistêmicas. Desse modo, para demonstrar que a existência dos objectos externos (fora de nós) não pode ser percebida imediatamente e que, por conseguinte, a existência deles é dubitável, prova-se que os objectos são fora de nós, já que “fora de nós” significa, neste caso, independente de condições epistêmicas, seguindo-se, portanto, que as condições da representação destes objectos não são condição do próprio objecto. Dessa maneira, segue-se que os objectos são coisas em si, pois eles existem independentemente de poderem ser representados, então, eles não são percebidos imediatamente.

Mas como os objectos exteriores seriam possíveis, se são coisas em si? Uma solução possível para entender isso é interpretar a relação entre representações e objectos como uma relação causa-efeito: a percepção (representação) de objectos exteriores seria um efeito, que teria como causa os próprios objectos externos. Uma teoria causal da percepção, na qual as coisas em si são conhecidas por serem causas das suas próprias representações, parece solucionar essa dificuldade. Neste caso, a existência de objectos exteriores, percebida mediatamente, seria, portanto, inferida pela aplicação do princípio de causalidade às representações imediatamente acessíveis dos objectos externos.

Contudo, Kant afirmou que um efeito pode ter múltiplas causas, conhecidas e desconhecidas. Por isso, se as coisas exteriores (como coisas em si) só podem ser conhecidas por meio de seus efeitos, isto é, por serem causas das suas representações, a sua existência é incerta por ser inferida pela relação causal.

A construção do paralogismo se baseou na conjugação de três princípios: as teses cartesianas, o realismo transcendental e a teoria causal da percepção. O resultado da conjunção destes princípios é o cepticismo sobre a existência de coisas fora de nós. Pela análise kantiana, o realismo transcendental parece se defrontar com dificuldades insuperáveis: de um lado, a conjunção da tese de que as representações são imediatamente percebidas com a tese de que apenas pelas representações se tem acesso aos objectos fora de nós exige do realista transcendental uma “prova do mundo exterior”; por outro lado, a tese central do realismo transcendental, de que os objectos fora de nós são coisas em si e que, só podem ser conhecidos mediatamente pelas suas representações, obriga o realista a recorrer a uma “teoria causal da percepção” para explicar as relações entre representações e objectos fora de nós e justificar, desta forma, a possibilidade do acesso ao mundo exterior. No entanto, se uma representação pode ter múltiplas causas, o conhecimento dos objectos fora de nós será sempre duvidoso.

A refutação kantiana do paralogismo envolve uma série de teses demonstradas ao longo da CRP: 1) a tese do idealismo transcendental, 2) a tese da realidade empírica do espaço, 3) a tese do fenomenismo e 4) a tese anti-reducionista. A tese do idealismo transcendental diz que os objectos de conhecimento são fenómenos, ou seja, objectos dependentes de condições epistêmicas necessárias. Já a tese da realidade empírica do espaço afirma que os objectos dos sentidos externos são submetidos à condição formal-subjectiva do espaço, por isso, os objectos da experiência, quando determinados na intuição externa, são considerados “fora de mim”. A tese do fenomenismo diz que os objectos do conhecimento (fenómenos) na medida em que são constituídos por condições necessárias, formais e subjectivas, são representações. Porém, devem ser distinguidas as que são subjectivas e as objectivas, que são aquelas representações que podem ser consideradas como objectos de conhecimento por satisfazerem a certas condições necessárias. A tese do fenomenismo, assim, não implica que os fenómenos sejam identificados às representações subjectivas. Já a tese anti-reducionista afirma que, embora os objectos de conhecimento tenham sido reduzidos a representações, os objectos externos submetidos na intuição externa à condição formal do espaço, têm um conteúdo que não pode ser determinado a priori por qualquer condição subjectiva. Assim, além de satisfazerem a certas condições formais-subjectivas, os objectos externos satisfazem também a uma condição necessária a qualquer condição formal: sem um dado, correlato da sensação, não é possível identificar algo na intuição como objecto externo[25]. Esta tese, que se baseia na Estética Transcendental e que parece atenuar a perspectiva fenomenista da primeira edição da Crítica, será explicitada e desenvolvida na Refutação do Idealismo, quando a filosofia cartesiana da consciência será posta em questão. Supostas estas teses, a refutação do paralogismo se torna plausível, pois, segundo a tese da filosofia da consciência cartesiana (de que o que é percebido imediatamente é indubitável), as representações podem ser percebidas imediatamente. Se os objectos de conhecimento são fenómenos (tese do idealismo transcendental), se os fenómenos externos são representações submetidas à condição formal do espaço (teses 3 e 4), então pode-se perceber imediatamente os fenómenos externos sem que isso signifique que o percebido seja um estado subjectivo (teses 3 e 4).

A tese da realidade empírica do espaço e a tese do idealismo transcendental permitiram dissolver a ambiguidade essencial utilizada na construção do paralogismo: o sentido da expressão objecto externo (ou fora de nós). Assim, ficou determinado o significado preciso dessa expressão: objectos externos são fenómenos submetidos à condição subjectiva do espaço. Contudo, essas teses ainda não provam que a percepção dos fenómenos externos seja indubitável. Elas apenas refutam o realismo transcendental, estabelecendo que os objectos de conhecimento são fenómenos e que fenómenos não são independentes de condições subjectivas epistémicas. Para refutar o paralogismo ainda é necessário mostrar que a percepção de objectos externos é indubitável. Em razão da tese da filosofia da consciência cartesiana, sabe-se que as representações, enquanto estados subjectivos, são indubitáveis; mas não se sabe ainda que os fenómenos externos também o são. A tese do fenomenismo completa, assim, a refutação do paralogismo: os fenómenos são representações. Dessa forma, não será mais duvidosa a prova do ‘mundo exterior’ e, do ponto de vista da certeza, não há mais prioridade da percepção de representações ‘em mim’ sobre a percepção de objectos ‘fora de mim’, pois ambas são percepções imediatas, são percepções subjectivas, se estas pertencem aos sentidos internos; são percepções de representações objectivas, no caso de serem submetidas a condições necessárias categoriais; são percepções de objectos (representações) externos, se são submetidas a condições categoriais que tornam possível identificar o dado da intuição externa do objecto.

Segue-se, então, que a refutação do paralogismo se realiza em quatro fases: inicialmente é pressuposta, apenas como ponto de partida, a premissa da filosofia da consciência cartesiana (o que ocorre em nós é imediatamente percebido). Por isso, na crítica ao paralogismo em [A], Kant dá alguma razão a Descartes. Disso se conclui que as representações são imediatamente percebidas. Em seguida, prova-se que os objectos externos são fenómenos e que os fenómenos são representações, para finalmente demonstrar que os objectos ‘fora de mim’ não podem ser assimilados nem às representações subjectivas dos sentidos internos, nem às representações objectivas dos estados subjectivos.

Na segunda edição, ocorre uma reformulação do quarto paralogismo, em que Kant apresenta uma nova crítica ao idealismo céptico (problemático) que está contida na Refutação do Idealismo e uma nova crítica da relação mente-corpo.

 

2.5 - A Refutação do Idealismo:

 

Na Refutação do Idealismo, Kant tenciona provar que nós temos experiência de objectos externos - objectos distintos de nós no espaço – e, portanto, refutar o cepticismo sobre o mundo externo.

Numa breve nota à Refutação (B274-5), Kant analisa as diferentes espécies de idealismo. Idealismo de um tipo não transcendental é referido como ‘idealismo material’; Kant também às vezes se refere a isso como ‘idealismo empírico’ (ele emprega o termo em A369). O Idealismo Transcendental, porém, é um ‘idealismo crítico’ ou ‘idealismo formal’ (B519n). Assim, enquanto a forma conceitual e sensível das aparências deriva do sujeito, a matéria (a qual corresponde à sensação) não. O idealismo empírico afirma que a matéria da aparência é fornecida pelo sujeito, então este é um idealismo que diz respeito à existência de objectos, diferente do idealismo transcendental. Mas mesmo dadas essas “especificidades” de idealismo, Kant coloca tanto Descartes quanto Berkeley no mesmo grupo como idealistas empíricos, por conta de dois motivos: primeiro, porque ambos assumem que os objectos primários e imediatos do conhecimento são exclusivamente subjectivos, privados, entidades mentais, em vez de objectos empiricamente reais. Contudo, eles aceitam que o conhecimento de objectos no espaço repousa sobre a inferência do conhecimento de estados internos. Segundo, porque nenhum dos dois, de acordo com Kant, obtém sucesso na defesa de uma crença de senso comum na realidade empírica. Berkeley tencionava que sua análise idealista do conhecimento empírico fosse uma defesa do senso comum contra o cepticismo, mas o resultado da empreitada de Berkeley, para Kant, é reduzir coisas no espaço a “entidades meramente imaginárias”. E embora Descartes tencione usar a dúvida céptica apenas como uma ferramenta metodológica, Kant diz que ele falha de escapar do solipsismo: se somente objectos internos são conhecidos imediatamente, não há uma rota inferencial para o mundo externo.

O idealismo empírico ou material é dividido por Kant em dois tipos (B274-5). Primeiro, o idealismo ‘dogmático’ de Berkeley, o qual sustenta que a existência de um mundo externo seja “falsa e impossível”. Este tipo de idealismo é dogmático porque afirma que nós podemos saber que não existe uma coisa como um mundo exterior[26]. Em segundo lugar, teríamos o idealismo problemático (ou idealismo céptico, conforme A377) de Descartes, o qual afirma que a existência de um mundo externo é possível mas “dubitável e indemonstrável”, de forma que qualquer afirmação sobre o conhecimento do mundo externo envolve uma dúbia (problemática) inferência de estados internos para objectos externos (vide A367-8).

O caso é que Kant direcciona a Refutação apenas contra o idealismo problemático, afirmando que já tratara do idealismo de Berkeley na Estética (B274). De forma que só lhe sobra o idealismo problemático para refutar, ou seja, Kant ainda deve mostrar “que nós temos experiência [Erfahrung], e não meramente imaginação, de coisas externas”. Para isso, é necessário, Kant afirma, provar que “mesmo nossa experiência interna, a qual para Descartes é indubitável, é possível apenas supondo-se a experiência externa” (B275).

O argumento kantiano é colocado em apenas um parágrafo curto (B275-6, ampliado numa longa nota de rodapé no Prefácio, Bxxxix-xli[n]). Ele começa com a asserção (com a qual Kant pensa que até o céptico irá concordar) de que “Eu sou consciente de minha própria existência como determinado no tempo” (B275, e em outras edições pode-se ler “consciência empírica de minha existência”, Bxl). Afirmar isso é algo mais forte do que simplesmente afirmar na Dedução que eu tenho auto-consciência transcendental, a qual é mera consciência de mim mesmo como pensante: auto-consciência empírica pressupõe sentido interno e um correspondente empírico. Estamos aqui em outro nível, porque agora, o argumento kantiano envolve temporalidade de minhas representações mais do que a de objectos.

Agora, tal consciência, como toda determinação do tempo, “pressupõe algo permanente na percepção” (B275). E sabendo-se que tudo o que eu intuo internamente é a sucessão de minhas representações, numa perspectiva humeniana, este permanente não pode ser algo dentro de mim (quer dizer, não pode ser “uma intuição em mim”, vide Bxxxix [n]). Mesmo se houvesse algo passível de ser intuído em mim que permanecesse constante através de minha experiência, seria uma representação permanente, não uma representação de um permanente. Enfatizando essa distinção, Kant aponta que uma representação permanente não é mais necessária do que é suficiente para a representação de um permanente: representações devem elas mesmas ser transitórias, mas devem se referir a algo permanente (Bxli).

Com a eliminação da “res cogitans” cartesiana como candidata para o permanente, Kant infere que isso é possível “apenas através de uma coisa externa a mim e não através de uma mera representação de uma coisa externa a mim” (B275); e se o permanente deve estar fora de mim, então ele deve ser espacial, porque o espaço é a forma do sentido externo[27].

Então, Kant conclui que consciência empírica de minha existência “é ao mesmo tempo uma consciência imediata da existência de outras coisas fora de mim” (B276). Isto é, não apenas devem existir coisas fora de mim, mas eu devo ter consciência delas, e esta consciência deve ser imediata, pois que eu, de outro modo, teria que inferir a ordem-tempo de objectos externos (como o cartesiano assume, B276), o que exigiria que eu pudesse identificar a ordem-tempo de minhas representações de forma privilegiada às de seus objectos - sendo que a primeira analogia mostra que isso é impossível[28].

O resultado é que a experiência interna e a externa são necessariamente correlatas. Dessa forma, a suposição cartesiana que estados subjectivos podem ser conhecidos independentemente do mundo externo, que a auto-consciência é privilegiada em relação ao conhecimento dos objectos, é incorrecta: Kant mostrou que os ataques da “certeza indubitável” cartesiana acertam não a auto-consciência empírica, num primeiro momento, mas a auto-consciência transcendental, e que o conhecimento da experiência interna (auto-consciência empírica) pressupõe a experiência externa.

A Refutação mostrou que a mudança de uma visão subjectiva para uma visão objectiva da própria existência – um movimento que o idealista deve fazer se ele está se referindo a fatos da experiência interna como base para a dúvida idealista- nos obriga a um movimento dos objectos internos para os externos. Isso nos mostra porque deve haver um mundo externo, e explica porque sua existência deve ser auto-evidente do modo que nós achamos que é.

 

2.6 - A Refutação do Idealismo e o Quarto Paralogismo:

 

O argumento na Refutação é relativamente fácil de entender, mas sua presença na Crítica cria uma espécie de quebra-cabeça e sua interpretação é altamente controversa. Não é inicialmente óbvio porque a Refutação é necessária, na visão da Dedução e Analogias, e como ela se encaixa entre essas duas. Embora a Refutação volte a alguns temas da Analítica da auto-consciência e temporalidade, ela não simplesmente recapitula o material anterior. Mas se a Refutação acrescenta algo realmente novo, então a questão que surge é se ela é estritamente necessária para a defesa kantiana da objectividade. Se a resposta é sim, então parece se seguir que a Dedução e as Analogias, apesar de aparentemente fazer isso, são inadequadas ou insuficientes em algum aspecto para refutar o cepticismo sobre o mundo externo.

Uma consideração, que pode ajudar a resolver esse enigma, é que a Refutação foi inserida apenas na segunda edição, e isso coincide com a eliminação da longa secção na dialéctica da primeira edição que é a do Quarto Paralogismo (A366-80), na qual Kant combate o cepticismo cartesiano, como já vimos. De acordo com o idealismo transcendental, objectos externos estão “fora de nós” apenas no sentido empírico – num sentido transcendental eles estão dentro de nós, uma vez que o espaço pertence à nossa sensibilidade – os objectos exteriores “são, porém, meros fenómenos, portanto, também nada mais do que uma espécie das minhas representações” (A370). A subclasse de minhas representações a qual constitui objectos externos é distinguida por ser dada também no sentido interno, pois como Kant afirma “as coisas exteriores existem, portanto, tanto como eu próprio existo e estas duas existências repousam, é certo, sobre o testemunho imediato da minha consciência, apenas com a diferença de que a representação de mim próprio, como de um sujeito pensante, está simplesmente referida ao sentido interno, mas as representações que designam seres extensos estão referidas também ao sentido externo.”(A371). Porque minhas representações são conhecidas imediatamente no sentido interno, daí se segue que meu conhecimento de objectos externos deve estar em pé de igualdade com meu conhecimento de meus estados mentais. objectos internos e externos diferem no tipo de representações que são, mas meu acesso a eles é o mesmo nos dois casos: a existência de objectos externos “é provada da mesma forma que a existência de mim mesmo como um ser pensante” (A370). Kant ainda adiciona que “não tenho mais necessidade de proceder por inferência com respeito à realidade dos objectos externos do que com respeito à realidade do objecto do meu sentido interno (dos meus pensamentos), pois tanto num caso como noutro esses objectos são apenas representações, cuja percepção imediata (a consciência), é, ao mesmo tempo, uma prova suficiente de sua realidade”(A371).

O problema com esse argumento, Kant descobriu, é que ele permite ser lido como uma declaração do idealismo de Berkeley: ele ecoa a afirmação de Berkeley que o cepticismo desaparece tão logo se percebe que não há nada mais sendo um objecto empírico que sendo um certo tipo de ideia na mente. Então, o que Kant parecia ter conseguido no Quarto Paralogismo não é um argumento contra o idealismo empírico, mas um argumento contra a forma cartesiana de idealismo empírico do ponto de vista do idealismo empírico de Berkeley, ou seja, temos aí uma refutação berkeleyana a Descartes.

Kant repudiou veementemente essa sugestão (como podemos ver no Apêndice aos Prolegómenos, 372-80). Dessa forma, é razoável supor que Kant desejava na segunda edição reafirmar a tarefa anti-séptica do Quarto Paralogismo com a Refutação, pensando que iria desencorajar a falsa assimilação do idealismo meramente empírico ao transcendental.

Na actualidade, os comentadores de Kant vêem essa substituição do Quarto Paralogismo em favor da Refutação na segunda edição como a marca de um novo, e extremamente importante, avanço na filosofia kantiana. Sebastian Gardner, por exemplo, defende que os objectos externos, que na Refutação são pressupostos para a auto-consciência empírica, devem ser correctamente considerados como coisas em si mesmas. Para sustentar essa leitura, Gardner afirma que deve ser observado que na Refutação não há qualquer apelo à idealidade transcendental de objectos externos.

Alguns intérpretes da linha analítica, por sua vez, afirmam que a Refutação é a culminação da Analítica, na qual a verdade epistemológica contida na teoria kantiana da experiência é libertada de suas amarras idealistas. Segundo essa interpretação, a Refutação seria uma prova do realismo em oposição à metafísica berkeleyana, que Kant tinha defendido na primeira edição: sua introdução seria perfeita para a admissão de que o idealismo transcendental não é distinto do idealismo de Berkeley. Na Refutação, portanto, Kant romperia consciente ou inconscientemente com o idealismo transcendental.

Se essa segunda interpretação aqui por mim apresentada é justificável, isso depende muito de como o capítulo da Refutação é encarado pelos comentadores, principalmente no que diz respeito a ‘que peso eles dão ao idealismo transcendental’. Se a doutrina da Refutação é tida como insatisfatória, ou como próxima do idealismo de Berkeley, tal como seus críticos alegam, então haverá boas razões para considerar Kant como alguém que não tinha uma ideia muito clara a respeito do que ele mesmo defendia, ou que forçou a si mesmo a dar um passo além das pernas na Refutação.

Mas o que nos interessa aqui é saber se há uma leitura plausível da Refutação que a torna consistente com o idealismo transcendental. E há. Lendo a Refutação atentamente, sugere Gardner, veremos que ela desempenha um duplo papel no capítulo dos Paralogismos. Um interno a teoria kantiana da experiência, e o outro, externo. No que diz respeito ao primeiro, a Refutação é uma extensão directa da Dedução e Analogias, para as quais a Refutação serve como uma espécie de Apêndice, pois faz uma série de observações importantes ao argumento anterior: o permanente exigido pela primeira analogia é especificamente determinado como material (B277-8); a dependência da auto-consciência empírica em relação a experiência externa é estabelecida, e a experiência externa, que já fora dada como certa na Analítica , é demonstrada necessária.

Em sua dimensão externa, afirma Gardner, a Refutação, faz algo diferente. Novamente aqui ela não é independente do idealismo transcendental. Nessa dimensão ela direcciona um desafio maior ao idealista empírico, a saber, explicar a base na qual ele faz os juízos sobre sua própria história mental que ele afirma como privilegiada sobre todas as outras. Se o idealista empírico recusa o desafio, afirmando que a auto-consciência empírica é um absoluto dado, então ele se torna dogmático; mas se ele o aceita, então estará lidando com os argumentos da Analítica. E o idealismo transcendental será nomeado como um meio de defender o realismo empírico.

Sob esse prisma, a Refutação é consistente e contínua com o Quarto Paralogismo (conforme Kant mostra em Bx[n]): ela acrescenta algo importante, a saber, a demonstração de que a intuição externa é necessária. Contudo, tanto a Refutação como o Quarto Paralogismo mostram que o idealismo transcendental é imprescindível para refutar o céptico. Além do mais, ao analisarmos o idealismo transcendental tal como apresentado no Quarto Paralogismo, verificaremos que ele não pode ser interpretado como idealismo berkeleyano.

A Refutação do Idealismo colocará em xeque a tese cartesiana da prioridade epistêmica do ‘cogito’ enquanto uma consciência pretensamente imediata de meus estados. A tese da Refutação, é importante salientar, vale para a consciência empírica que um sujeito tem de seus estados, não para a consciência de si como um sujeito numericamente idêntico desses estados, a qual, diz Kant, não só não é empírica, mas a priori, como também é transcendental e originária relativamente ao conhecimento de objectos externos[29]. A razão disso é que os objectos espaciais são eles próprios o resultado da actividade de um sujeito consciente de si mesmo, quer dizer, a consciência que um sujeito tem de seus estados é dependente do conhecimento de objectos externos. Na actividade de julgar, por exemplo, vemos que essa só é possível através do acto pelo qual o sujeito traz cognições dadas à unidade da apercepção, ou seja, à unidade da consciência de si.

Contudo, na “Refutação do Idealismo” (CRP B), será abandonado não apenas o ponto de partida da filosofia da consciência cartesiana, como também a tese do fenomenismo. De fato, ‘a prova do mundo exterior’ é uma refutação dos princípios da filosofia da consciência cartesiana, ou mais especificamente, das filosofias que admitem um acesso prioritário aos estados de consciência pelo sujeito desses estados e um acesso mediato e problemático aos objectos externos. Porém, a Refutação tem apenas como ponto de partida o conhecimento e não a consciência indubitável de estados internos, ou seja, tem como ponto de partida a experiência interna.

Resumidamente poder-se-ia dizer que em [A] para defender a tese fenomenista, Kant partiu ou assumiu a tese da filosofia da consciência cartesiana, enquanto na Refutação do Idealismo ele rompe com a tese fenomenista tanto quanto com os princípios da filosofia da consciência cartesiana. A premissa inicial cartesiana não sendo aceite nem como hipótese nem como uma asserção correcta, tornou (do ponto de vista da ‘prova do mundo exterior’) a tese fenomenista desnecessária. Contudo, foi necessário distinguir não só as representações subjectivas de representações objectivas (como já fizera no 4º paralogismo), como também distinguir entre representações de coisas em mim de coisas fora de mim. Kant demonstrou que coisas fora de mim seriam condições das representações de objectos externos.

Mas como o problema do mundo externo ainda se põe e todo esse processo de refutação do quarto paralogismo ainda é necessário, se Kant já havia declarado (A 356-60) que a discussão entre o dualismo e o materialismo no que diz respeito ao estatuto ontológico do eu ou alma já fora dissolvida? Desde que o eu não pode ser conhecido como simples ou como existindo independentemente de objectos externos, incluindo o corpo, a discussão cartesiana sobre o dualismo psico-fisico entraria em colapso. O facto de que o eu não pode ser conhecido como imaterial implica que também não pode ser conhecido como material: quando afirmo que eu não posso ser uma substância, também não posso afirmar que sou uma substância idêntica ou distinta de meu corpo, ou seja, não há nenhum conhecimento de minha relação com meu corpo. Isso é o que tínhamos até o quarto paralogismo. Contudo, não é apenas isso que o quarto paralogismo demonstra, mas ele ainda se faz necessário porque ele ultrapassa a linha da simples crítica ao racionalismo para permitir o advento do Idealismo Transcendental, dado que é quase trivial demonstrar que após a dissolução da ideia de uma substância absoluta, não existe o comércio psico-físico. No entanto, Kant ainda tinha que demonstrar que a percepção de objectos externos é indubitável porque os objectos externos são representações e as representações são imediatamente percebidas, mostrando assim que um Realismo Transcendental é insustentável e oferecendo o suporte final a sua refutação a tese racionalista da alma como uma substância absoluta.

 

2.7 - Padrão dos Paralogismos:

 

A crítica de Kant parece seguir um padrão familiar: o facto de que coisas fora de mim no espaço são coisas que “eu penso” como distintas de mim mesmo é uma questão analítica; mas seria uma informação sintética que eu deva existir sem elas[30].

Sumariamente, a psicologia racional está impregnada por uma má interpretação do “eu penso” que é toda a base, limite e alcance de sua empreitada. Todo o conhecimento que nós podemos de facto derivar do “cogito” está contido nas seguintes proposições: 1) eu penso; 2) como sujeito; 3) como sujeito simples; 4) como sujeito idêntico em todo estado de meus pensamentos (B 419).

É verdade, segundo Kant, que “algo real” é dado no eu penso; algo que realmente existe (B423n). Mas tudo o que o “eu penso” expressa é uma intuição empírica indeterminada, de algo do qual não temos nenhum conceito determinado. Seu conceito é meramente um algo em geral que não pode ser intuído (A400). Esse algo não pode, segundo Kant, ser reconhecido tanto como uma aparência quanto como uma coisa em si (B423n).

Igualmente devemos reconhecer que o cogito é empírico e a posteriori (B423n). Mas o ‘eu penso’ em si mesmo precede esse material empírico e é puramente formal, intelectual. Assim, o cogito não responde a pergunta que a psicologia racional faz. A única forma de conhecimento que podemos ter de nós mesmos é empírica, só podemos nos conhecer enquanto fenómenos e uma investigação empírica do eu não pode fazer parte do escopo de psicologia racional, a qual por definição não se dedica aos fenómenos internos do sujeito.

A demonstração dos paralogismos serve então para provar que a empresa da psicologia racional de constituir-se como ciência é fadada ao fracasso, visto não ter um objecto de estudo tal como esta reclamava ter. Não temos acesso epistémico à alma, se é que ela existe. Nosso eu, segundo Kant, não denota um substrato numénico, mas uma unidade formal, uma função lógica que não serve para provar a existência por meio da consciência. Não é uma categoria entre as categorias, pois que não é uma substância. Serve, segundo Kant, para “apresentar todo o nosso pensamento como pertencente à consciência (CRP A341/B400). A proposição “eu penso” não é uma experiência, tampouco é, ao contrário das categorias, uma condição de possibilidade dos objectos, mas a “forma da apercepção que pertence a toda a experiência e a ela precede” (A354). Kant também diz que “de tudo isto se vê que a psicologia racional deve sua origem a um simples mal-entendido. A unidade da consciência, que serve de fundamento às categorias, é tomada aqui por uma intuição do sujeito enquanto objecto, a que se aplica a categoria da substância.”(B421-22).

 

Conclusão: Kant metafísico

 

Considerando o problema da interação corpo-mente, e como esta discussão estava sendo arduamente debatida por muitos filósofos naquela época, é interessante notar como Kant achava que podia lidar com essa questão muito bem e (relativamente) facilmente através dessas respostas. Acredito que suas concepções aqui apenas reforçam a impressão racionalista que eventualmente pode-se ter da discussão geral da interacção. E isso principalmente porque num determinado ponto dessa discussão em K3, Kant diz que a acção do corpo na alma não precisa ser “ideal” porque esta é tão genuína quanto a acção do corpo sobre o corpo. A esse respeito Kant diz que “o corpo como fenômeno não está em comunidade com a alma, mas antes é uma substância distinta da alma, cuja aparência é chamada corpo. Esse substrato do corpo é uma determinação externa da alma, mas como esse commercium é constituído, a nós não é dado saber. No corpo nós conhecemos meras relações, mas não conhecemos o interno (o substrato da matéria). O qua extensum não age sobre a alma, caso contrário ambos correlata teriam de ser no espaço, portanto alma seria um corpo. Se nós dizemos que o inteligível do corpo age sobre a alma, então isso significa que este númeno do corpo externo determina a alma, mas isso não pode ser (...) Essa determinação o autor (Baumgartem) chama de influxus idealis, mas este é um influxus realis (...)”. Ainda quanto à relação corpo-alma, Kant prossegue em outra ocasião “Como que a alma está in commercio com o corpo? Commercium é a influência recíproca entre substâncias, embora corpos não sejam substâncias, mas apenas aparências. Portanto, nenhum real commercium existe nesse caso”. (L2, 28:591) E da mesma forma na Metafísica Mromgovius, Kant afirma que o corpo é um fenômeno assim como suas propriedades, mas não estamos familiarizados com seu substrato. Por isso como se daria o comércio corpo-alma, Kant afirma que isso remontaria a questão de como substâncias em geral podem estar em comércio. O que parece não resolver muito bem a questão.

No final devemos decidir se para Kant substâncias fenomênicas realmente são substâncias genuínas na interação ou se elas não são tal como essas lições apontam. Acredito que tenderíamos a dizer que sim, pois na Crítica, Kant reforça esse ponto dizendo que “a matéria, cuja unidade com a alma levanta tão grandes dificuldades, não é outra coisa que uma simples forma ou um certo modo de representação de um objecto desconhecido, formado por aquela intuição que designamos por sentido externo(...) a matéria não significa uma espécie de substância tão inteiramente diferente e heterogênea ao objecto do sentido interno (alma).” (A386). Nesse sentido que acredito que mesmo após a virada crítica (e mais as evidências dessas lições) Kant não parecia disposto a romper totalmente com a ontologia tradicional. Não é, portanto, acidental que num certo momento o idealismo transcendental fora definido como a visão de que o fenômeno não é substância, mas requer um substrato numênico. (D, 28:682). Assim, devemos ter em mente que ao passo que sob certos aspectos Kant se diferenciava de seus predecessores dogmáticos, por outro lado ele não parecia estar disposto a desistir das implicações ontológicas do idealismo transcendental, algo exigido para a constituição de uma metafísica totalmente não-racionalista.

Mesmo, operando uma intensa crítica à Psicologia Racional, Kant manteve-se fiel à metafísica tradicional. Prova disso é que, ele quis depois da virada crítica, “depurar” a metafísica. Kant mostrou que ela não podia ser uma ciência, que as disputas e inconclusões em seu campo se davam exactamente por ela não gozar desse status de conhecimento certo e necessário. O Kant crítico já aponta isso no Prefácio à segunda edição da Crítica. Já no prefácio à Dialéctica Transcendental, Kant afirma que a metafísica é uma natural e inevitável produção do pensamento humano. A alma não pode ser conhecida dada a estrutura de nosso aparelho cognitivo, que conhece apenas o que lhe aparece como fenómeno dentro dos limites do tempo e espaço e das categorias, mas a alma, bem como as demais Ideias da Razão podem ser pensadas. Ora, Kant deslocou a problemática, e conferiu à metafísica tradicional um patamar mais singelo. As Ideias da Razão não são mais objectos de conhecimento da razão pura, mas objectos da razão prática, são princípios regulativos da acção humana no mundo. Kant refutou a noção de substancialidade, por exemplo, no que diz respeito ao conhecimento dessa noção, mas a manteve no nível da ética. Por isso, em momento algum ele se desfez das Ideias da Razão Pura. Ao contrário, apenas impõe limites ao conhecimento humano e diz que essas Ideias transcendem esse limite. Não podemos conhecer Deus, a alma ou o mundo enquanto totalidade metafísica, mas é próprio da natureza humana, conforme Kant aponta, lançar-se à reflexão de tal forma para além dos limites do aparente, que inevitavelmente chegamos a essas Ideias. Mas a questão é, conhecer a alma, por exemplo, ou no caso pretender conhecê-la, leva a razão a produzir paralogismos; porém, nos é permitido pensar sobre a alma, pois disso não decorre nenhuma implicação negativa. Ora, isso mostra que Kant ainda mantém-se fiel a toda estrutura da metafísica tradicional. Ele apenas a transporta para o que acredita ser o seu verdadeiro domínio, mas não a refuta. Essa nunca foi sua pretensão. Kant era ele mesmo, no fim, um grande metafísico que ao notar as disputas e inconstâncias em seu terreno, resolveu mostrar que ela apenas estava ocupando o patamar errado. Assim, a metafísica tradicional, bem como as Ideias da Razão que a compõem, são rearranjadas de forma a serem preservadas. Por isso Kant não desiste das implicações ontológicas do idealismo transcendental. Porque ele não quer compor uma metafísica não-racionalista, mas apenas mostrar que as discussões inférteis no campo da metafísica serão totalmente extintas, ao se estabelecer de uma vez o domínio legítimo de actuação desta, que, para todos os efeitos, não é o do conhecimento científico.

 

 

Bibliografia

1 - Obras de Kant

Crítica da Razão Pura. Trad. Manuela P. dos Santos e Alexandre F. Morujão. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.

Escritos pré-criticos.Trad.Jair Barboza. São Paulo:Editora Unesp, 2005..

Prolegômenos a toda metafísica futura que queira apresentar-se com ciência.Trad. Artur Morao. Lisboa:Edições 70, 2003.

 

2 - Outras obras

DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Trad. Germiniano Franco. Lisboa: Edições 70, 1994.

DELEUZE, Gilles.Para ler Kant. Trad.de Sonia Dantas Pinto Guimarães.Rio de Janeiro:Livraria Francisco Alves Ed.,1976.

DREHER,Edmundo. A impossibilidade da metafísica na Crítica da Razão Pura: ensaio de síntese e análise. Curitiba: Edições Paulinas,1960.

GALEFFI, Romana. A Filosofia de Immanuel Kant. Brsília: UNB, 1986.

LANDIM, Raul Filho.Do “eu penso” cartesiano ao “eu penso” kantiano in Studia Kantiana, São Paulo:vol. 1, n. 1, 1998.

LANDIM, Raul Filho.Descartes: Idealista empírico e realista transcendental?in Síntese Nova Fase, Belo Horizonte:vol. 23, n. 74, 1996.

 



[1] Kant, Immanuel - 22/4/1724, Königsberg, Prússia (actual Kaliningrad, Rússia) - 12/2/1804, Königsberg, Prússia (actual Kaliningrad, Rússia)

"Age de maneira tal que a máxima de tua acção sempre possa valer como princípio de uma lei universal." Assim o filósofo Immanuel Kant formulou o "imperativo categórico". Ao buscar fundamentar na razão os princípios gerais da acção humana, Kant elaborou as bases de toda a ética moderna. Immanuel Kant era filho de um pequeno artesão e passou toda a vida em sua pequena cidade natal, Königsberg. Estudou no Colégio Fredericianum e na Universidade de Königsberg. Em 1755, doutorou-se em filosofia. Depois de alguns anos trabalhando como preceptor para filhos de famílias abastadas, passou a dar aulas privadas na universidade. Em 1770, tornou-se catedrático em matemática e lógica na Universidade de Königsberg. Kant era conhecido por ser um homem metódico e de saúde frágil. Não se casou nem teve filhos, dedicando toda sua vida à elaboração de uma das obras mais importantes da história da filosofia. Ao estudar a questão do conhecimento, investigando seus limites, suas possibilidades e suas aplicações, Kant elaborou sua obra capital, a "Crítica da Razão Pura", publicada em 1781. O filósofo também se ocupou do problema da moral. A "Crítica da Razão Prática", publicada em 1788, discute os princípios da acção moral, a acção do homem em relação aos outros e a conquista da felicidade. Kant tornou-se um filósofo respeitado e conhecido. Contudo, devido a suas ideias sobre religião, foi proibido de escrever ou dar aulas sobre assuntos religiosos pelo rei Frederico Guilherme II, da Prússia, em 1792. Cinco anos depois, com a morte do rei, Kant viu-se desobrigado de obedecer à censura, publicando um sumário de suas ideias religiosas em 1798. Além de obras sobre o conhecimento, a moral e a religião, Kant escreveu várias obras sobre estética, sendo a mais importante a "Crítica da Faculdade de Julgar". Kant faleceu em 1804, de uma doença degenerativa, dois meses antes de completar 80 anos.

 

[2] Um paralogismo é um raciocínio falso, feito de boa fé por falta de consciência de sua falsidade. Paralogismo (do grego antigo παραλογισμός, "reflexão", "raciocínio") é um raciocínio falaz, ou seja, falso mas que tem aparência de verdade. Para alguns, o paralogismo é diferente do sofisma, pois não é produzido de má-fé, isto é, não é intencionalmente produzido para enganar. Para Aristóteles, qualquer falso silogismo era considerado um paralogismo, pois contém obrigatoriamente uma premissa ambígua.

 

[3] A esse respeito, Graham Bird em ‘O Revolucionário Kant: Um comentário à Crítica da Razão Pura’ , admite que existem duas interpretações acerca da obra de Kant, uma tradicionalista e outra revolucionária que se originam principalmente consideradas as ambiguidades entre as duas edições da Crítica da Razão Pura.

 

[4] Walsh, (1983), p.169.

 

[5] Bennett, (1974) p .66

 

[6] Brook, (1994) p.154

 

[7] Landim, (1998) p.289

 

[8] No presente artigo só são apresentadas as primeiras duas partes aqui referidas, faltando as últimas duas e a conclusão (a apresentar proximamente) de todo um trabalho.

[9] Isso significa que é uma ilusão que diz respeito às nossas condições de possibilidade de conhecimento.

 

[10] Para Kant um conceito (Begriff) é síntese das representações da intuição, e por meio deles é que se tem experiência e conhecimento.

 

[11] Kant toma emprestado de Platão a palavra ideia para designar os conceitos puros da razão. E, na primeira parte da dialéctica transcendental, que trata “dos conceitos da razão pura”, ele insiste longamente na diferença entre conceitos e ideias.

 

[12] Categorias são as formas do nosso entendimento pelas quais os objectos da experiência são estruturados e ordenados.

 

[13] As doze categorias ou conceitos puros do entendimento que se classificam quanto à Quantidade: unidade, pluralidade, totalidade; Qualidade: realidade, negação, limitação; da Relação: Da inerência e subsistência, da causalidade e dependência, da reciprocidade; Modalidade: possibilidade -impossibilidade, existência-inexistência, necessidade-contingência (A80-1) são modos de unificação do múltiplo, modos de funcionamento do pensamento. As categorias são as formas pelas quais nosso pensamento organiza a multiplicidade caótica que nos é dada a partir da experiência sensível.

Nota-se, então a aplicação indevida das categorias à alma, uma vez que esta por não fazer parte da experiência humana não pode ser descrita ou definida como tal.

 

[14] Na Crítica da Razão Pura, o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) tinha um problema a resolver, que dizia respeito à seguinte questão: como posso obter um conhecimento seguro e verdadeiro sobre as coisas do mundo? A resposta de Kant iria mudar o rumo da Filosofia Ocidental. Duas escolas filosóficas, tradicionalmente, respondiam de formas diversas ao problema do conhecimento. Para os filósofos racionalistas (Platão, Descartes, Leibniz e Espinosa), todo conhecimento provém da razão, enquanto que, para os empiristas (Aristóteles, Hobbes, Locke, Berkeley e Hume), ao contrário, somente os dados da experiência sensível forneceriam as bases para o conhecimento humano. Tanto em um como em outro caso, surgem obstáculos. A razão especulativa, na medida em que deixa de validar suas investigações em testes práticos, torna-se dogmática. Já o empirismo encontra oposição no cepticismo, que argumenta que a Natureza é o reino do contingente e, por esta razão, não pode ser fonte de conhecimento universal.

O filósofo inglês David Hume (1711-1776), cuja obra Kant afirma tê-lo acordado do "sono dogmático", colocou sob suspeita o princípio de causalidade, que determina que, dado uma causa x, tem-se um efeito y. Por exemplo, tenho uma pedra em minha mão e a solto de certa altura (causa), tendo como consequência sua queda no chão (efeito). Segundo Hume, não existe nada na causa (solto a pedra da mão) que contenha a relação objectiva de seu efeito (a queda no solo). Por mais vezes que eu repita a experiência, nada no mundo me dará a certeza de que a pedra cairá e não levitará, por exemplo. Portanto, conclui o filósofo inglês, a causalidade não está no mundo, mas é produto de nossos hábitos, ou seja, de tantas vezes ver a pedra cair ao ser solta, acreditamos que haja uma relação causal nos objectos, quando não passa de uma espécie de condicionamento psicológico.

A priori, a posteriori, juízo analítico e juízo sintético - Kant também vai se voltar para o sujeito em sua réplica ao cepticismo humeano, mas revestido de um carácter lógico e transcendental (e não psicológico, como em Hume). Vamos ver como ele formula a questão nos conceitos de a priori, a posteriori, analítico e sintético. Um conhecimento que seja totalmente independente dos sentidos é chamado a priori. São, por exemplo, equações matemáticas, que posso fazer mentalmente sem me apoiar em qualquer evidência material. Um conhecimento que possui sua fonte na experiência é dado a posteriori, como as leis da física clássica, que necessitam de testes práticos para serem comprovadas. Quando emito um juízo em que o predicado está contido no sujeito, ele é chamado juízo analítico. Por exemplo, quando digo "Azul é uma cor", o predicado "cor" já é uma qualidade do sujeito "azul" e a informação, por isso, é redundante. Mas quando faço um juízo em que um predicado é acrescentado ao sujeito, ele é chamado sintético. Por exemplo, na frase "A cadeira de minha sala é azul", acrescento ao sujeito "cadeira de minha sala" o predicado "azul" (afinal, ela poderia ser verde, vermelha, etc.). É uma informação nova, pois você poderia imaginar que a cadeira fosse de qualquer outra cor. Todos os juízos da experiência são sintéticos, uma vez que, para obter um juízo analítico, não é preciso sair do próprio conceito, isto é, recorrer à experiência (não preciso sair de "azul" para saber que é uma cor, mas preciso ver a "cadeira" para saber de que cor ela é). Agora podemos entender a questão central da Crítica da Razão Pura, que é "Como são possíveis os juízos sintéticos a priori?". Ou seja, como podemos ter um conhecimento a priori de questões de facto, de coisas do mundo? Em outros termos, como posso, observando um facto A, dizer algo a respeito de um facto B, uma vez que somente tenho a experiência deste facto A? Para voltar ao exemplo de Hume, como, tendo uma pedra em minha mão (facto A), antes mesmo de soltá-la sei que, ao soltá-la, ela irá cair no solo (facto B)? (Lembrando que, para Hume, não há na Natureza nada que demonstre a relação causal entre A e B.) Formulado ainda de outra maneira: como posso, ao observar factos particulares (uma pedra que cai), tirar daí uma regra de carácter universal (a lei da gravidade), que seja aplicada a todos outros factos da mesma natureza?

Sujeito transcendental - Kant chamou de "revolução copernicana" sua resposta ao problema do conhecimento. O astrónomo Nicolau Copérnico (1473-1543) formulou a teoria heliocêntrica - a teoria de que os planetas giravam em torno do Sol - para substituir o modelo antigo, de Aristóteles e Ptolomeu, em que a Terra ocupava o centro do universo, o que era mais coerente com os dogmas da Igreja Católica. Como pode ser constatado pela observação directa, o Sol se "levanta" e se "põe" todos os dias, o que tornava óbvio, aos antigos, que a Terra estava fixa e que os astros giravam em torno dela. Copérnico demonstrou que este movimento é ilusório, porque, na verdade, a Terra é que gira em torno do Sol. Kant propôs inversão semelhante em filosofia. Até então, as teorias consistiam em adequar a razão humana aos objectos, que eram, por assim dizer, o "centro de gravidade" do conhecimento. Kant propôs o contrário: os objectos, a partir daí, teriam que se regular pelo sujeito, que seria o depositário das formas do conhecimento. As leis não estariam nas coisas do mundo, mas no próprio homem; seriam faculdades espontâneas de sua natureza transcendental. Como Kant afirma no prefácio da segunda edição da Crítica da Razão Pura: "Até agora se supôs que todo nosso conhecimento tinha que se regular pelos objectos; porém todas as tentativas devem, mediante conceitos, estabelecer algo a priori sobre os mesmos, através do que ampliaria o nosso conhecimento, fracassaram sob esta pressuposição. Por isso tente-se ver uma vez se não progredimos melhor nas tarefas da Metafísica admitindo que os objectos têm que se regular pelo nosso conhecimento, o que concorda melhor com a requerida possibilidade de um conhecimento a priori dos objectos que deve estabelecer algo sobre os mesmos antes de nos serem dados". O que Kant quer dizer é que o sujeito possui as condições de possibilidade de conhecer qualquer coisa. Ele possui as regras pelas quais os objectos podem ser reconhecidos. Não adianta buscar essas regras no mundo exterior, pois se cairia no problema de Hume. O mundo não tem sentido a não ser que o homem dê algum sentido a ele. O que conhecemos, então, é profundamente marcado pela maneira - humana - pela qual conhecemos. O computador no qual escrevo, a janela do escritório que me permite ver todas as coisas do mundo, tudo isso é matéria de conhecimento não porque exista um Deus que me faculte entender as leis dos objectos por meio da razão (como no caso de filósofos racionalistas) ou porque estes objectos sejam imprimidos em minha mente pela percepção (empirismo), mas porque eles são capturados por formas lógicas no sujeito.

Coisa-em-si - Mas ao voltar o foco para o sujeito que conhece, que "constrói" o mundo, é bloqueado todo pretenso acesso à essência dos objectos do mundo. Só temos acesso às coisas enquanto fenómenos para uma consciência. O que a realidade é, em si mesma, o que Kant chama de coisa-em-si, não é matéria de conhecimento humano, sendo, portanto, incognoscível (aquilo que não pode ser conhecido). A coisa-em-si não pode ser conhecida mas pode ser pensada, desde que seja contraditório (conhecer, em Kant, diz respeito ao que é possível de ser objecto da experiência).

Três objectos de estudo da metafísica podem ser pensados mas não conhecidos: Deus, a imortalidade da alma e a liberdade. Deus e a alma não podem ser conhecidos porque não aparecem como fenômenos no espaço e no tempo. A liberdade, porque contraria o princípio de causalidade: liberdade é aquilo que não tem causa, e o que é absolutamente livre não pode ser matéria de conhecimento. São, no entanto, postulados para a ética de Kant.

A filosofia crítica de Kant consiste, desta forma, em impor à razão os limites da experiência possível. O filósofo alemão pretende, com isso, fornecer rigor metodológico à metafísica, livrando-a de seu carácter dogmático e trazendo-a para o rumo seguro da ciência. Este método que analisa as possibilidades do conhecimento a priori do sujeito, dentro dos limites da experiência, é chamado de transcendental.

 

[15] Vide especialmente Système de philosophie de Sylvain Régis e L´invention de la conscience de E. Balibar.

 

[16] Ideia é um termo que foi amplamente usado por diversos pensadores no decorrer da história da filosofia. De Platão a Kant, passando por Descartes, Leibniz, Locke e Reid, esse termo, embora tenha tido acepções específicas dentro de determinados sistemas foi usado na Grã-Bretanha como descrição de percepções e conhecimento. Em Locke, o termo é adoptado pelo autor por ser “a mais indicada para significar seja o que for que consista no objecto do entendimento quando um homem pensa” (Ensaio Sobre o Entendimento Humano 1.1.8). Uma ideia que está na mente é, para Locke ou uma percepção real ou fora uma que assim está na mente pela memória e que por esta pode voltar a ser uma percepção real (1.4.20).

 

[17] Apercepção é um vocábulo que Kant toma de Leibniz (vide especialmente Novos ensaios sobre o entendimento humano de 1765 e seu uso na Monadologia de 1714). Que do francês quer dizer aperceber-se, dar-se conta de. A apercepção para Leibniz tal como vemos n´Os Princípios de natureza e graça seria o “estado interno da mônada representando coisas externas (...), é consciência ou conhecimento reflexivo desse estado interior, e que não é dada a todas as almas ou a quaisquer almas o tempo todo”. (p. 637).

 

[18] Designa-se por figura cada uma das formas que o silogismo pode tomar derivado da posição do termo médio como sujeito ou predicado das proposições. Existem apenas 4 figuras possíveis para o silogismo categórico.

1ª. Figura - O termo médio é sujeito da primeira premissa e predicado da segunda premissa.

Ex. Todo o homem é mortal

Ora, António é homem

Logo, António é mortal.

M - P

S - M

S - P

 

S- Sujeito de predicado

P- Predicado da conclusão

M - Termo médio do silogismo

2ª. Figura

O termo médio é predicado nas duas premissas

Ex. Todo o homem é racional

O cão não é racional

Logo, o cão não é homem

P - M

S -M

S - P

3ª. Figura

O termo médio é sujeito nas duas premissas

Ex. Todos os carbonos são corpos simples

Todos os carbonos são condutores eléctricos

Logo, alguns condutores de electricidade são corpos simples

M - P

M -S

S - P

4ª. Figura

O termo médio é predicado na primeira premissa e sujeito na segunda

Ex. Os portugueses são homens

Os homens são mortais

Logo, alguns mortais são portugueses

 

P - M

M - S

S - P

 

[19] A apercepção para Leibniz, conforme já mencionamos, de quem Kant a adapta, era definida como “consciência ou conhecimento reflexivo desse estado interior, e que não é dada a todas as almas ou quaisquer almas o tempo todo”(Os princípios de natureza e graça,1976,p.637). A apercepção do eu penso, não é do tipo transcendental, mas parece estar mais próxima da noção de apercepção no sentido leibniziano, dado que para Kant, a apercepção transcendental está disposta de acordo com as categorias do entendimento e permite que as intuições pertençam a mim, de acordo com as categorias, além de servir de base para a unidade de conceitos e intuições em juízos, conforme nota anterior.

 

[20] Apesar de que na segunda edição da Crítica, teremos uma reformulação do quarto paralogismo e o acréscimo da discussão a que o quarto paralogismo leva contida na Refutação do Idealismo.

 

[21] Cabe aqui uma pequena elucidação sobre o que sejam juízos sintéticos e analíticos. Juízos analíticos são aqueles em que o predicado nada acrescenta ao sujeito, ou seja, uma proposição do tipo “Os solteiros são não casados” seria um exemplo de proposição analítica, uma vez que a ideia de não casado já está contida no conceito de solteiro. Esse é um tipo de juízo explicativo e nada acrescenta ao conteúdo do conhecimento. Um juízo sintético, ao contrário, é aquele que me oferece uma informação que não se sabia antes e que o próprio sujeito do juízo por si só não nos fornece, ou seja, um juízo sintético estende e amplia o conhecimento dado. Um exemplo seria: “A água ferve a 100° centígrados”. Esse predicado não está contido no conceito dado, por isso a proposição é sintética.

 

[22] Kant e a Crítica da Razão Pura, 1999.

 

[23] Aquilo que pertence aos sentidos internos e é imediatamente percebido.

 

[24] A 373

 

[25] vide A 374-5.

 

[26] Kant também descreve a filosofia de Berkeley como “ idealismo místico e visionário” nos “Prolegômenos a toda Metafísica Futura, 293 e 374.

 

[27] Devo apontar que aqui é relevante para a exclusão kantiana de um permanente puramente temporal em sua presente doutrina porque o tempo por si só não pode ser percebido, nós podemos fazer juízos temporais somente através da pressuposição do espaço: “nós somos incapazes de perceber qualquer determinação do tempo salvo através de mudanças nas relações externas” (B277 e também B291-3).

 

[28] Contudo, isso não significa que toda representação intuitiva de coisas externas seja verídica. Sobre como distinguimos entre percepções verídicas e não verídicas ver A376, Bxli, B279, A492/B520-1.

 

[29] Sobre esse ponto, Guido Antonio de Almeida em seu artigo “A Dedução Transcendental: o cartesianismo posto em questão” esclarece que, desta forma, não é o eu da consciência transcendental, mas o eu da consciência empírica que é e está em contacto com o mundo exterior.

 

[30] Na primeira edição, Kant afirma que a psicologia racional está comprometida com uma visão do auto- conhecimento como uma espécie de conhecimento privilegiado em relação aos objectos externos, o que faz do cepticismo algo quase que inevitável: a proximidade epistémica do eu afirmada na psicologia racional empurraria os objectos externos para longe de nosso alcance. Teríamos então uma implicação de cunho solipsista presente tanto na primeira quanto também na segunda edição. Mas, além disso, Kant substitui essa questão mais epistemológica pela doutrina cartesiana na segunda edição.