Pasárgada

…Cheguei no momento da criação do mundo e resolvi não existir. Cheguei ao zero-espaço, ao nada-tempo, ao eu coincidente com vós-tudo, e conclui: No meio do nevoeiro é preciso conduzir o barco devagar.


Serei o que fui, logo que deixe de ser o que sou; porque quando fui forçado a ser o que sou, foi porque era o que fui.

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terça-feira, 20 de março de 2012



O QUE NÓS SONHAMOS
(Continuação)
6 – A Análise dos Sonhos

Acima acentuámos a diferença entre um sinal e um símbolo. O sinal é sempre menos do que o conceito que ele representa, enquanto o símbolo significa sempre mais do que o seu significado imediato e óbvio. Os símbolos, no entanto, são produtos naturais e espontâneos. Génio algum já se sentou com uma caneta ou um pincel na mão, dizendo: “Agora vou inventar um símbolo.” Ninguém pode tomar um pensamento mais ou menos racional, a que chegou por conclusão lógica ou por intenção deliberada, e dar-lhe forma simbólica. Não importa de que adornos extravagantes se ornamenta uma tal ideia – ela vai manter-se apenas um sinal associado ao pensamento consciente que significa, e nunca um símbolo a sugerir coisas ainda desconhecidas. Nos sonhos, os símbolos ocorrem espontaneamente, pois os sonhos acontecem, não são inventados; eles constituem, assim, a fonte principal de todo o nosso conhecimento a respeito do simbolismo.
Devo fazer notar, no entanto, que os símbolos não ocorrem apenas nos sonhos; aparecem em todos os tipos de manifestações psíquicas. Existem pensamentos e sentimentos simbólicos, situações e actos simbólicos. Parece mesmo que, muitas vezes, objetos inanimados cooperam com o inconsciente, criando formas simbólicas. Há numerosas histórias autênticas de relógios que param no momento em que o seu dono morre, como aconteceu com o relógio de pêndulo do palácio de Frederico, o Grande, em Sans Souci, que parou na hora da morte do rei. Outro exemplo comum é o de um espelho que se quebra ou de um quadro que cai quando alguém morre. Ou também pequenos, mas inexplicáveis, acidentes de objectos que se quebram numa casa onde alguém sofre uma crise emocional. Mesmo que os cépticos se recusem a acreditar nessas histórias, a verdade é que elas estão sempre acontecendo, e só isto basta como prova da sua importância psicológica.
Há muitos símbolos, no entanto, (e entre eles alguns de maior valor), cuja natureza e origem não é individual mas sim coletiva. Sobretudo as imagens religiosas: o fanático atribui- lhes origem divina e considera-as revelações feitas ao homem. O céptico garante que foram inventadas. Ambos estão errados. É verdade, como diz o céptico, que símbolos e conceitos religiosos foram, durante séculos, objeto de uma elaboração cuidadosa e consciente. É também certo, como julga o crente, que a sua origem está tão soterrada nos mistérios do passado que parece não ter qualquer procedência humana. Mas são, efetivamente, representações coletivas – que procedem de sonhos primitivos e de fecundas fantasias.

6.1 – O Sonho na Clínica Psicanalítica

“O tempo do sonho pode ser comparado ao da chuva. Vem por estações durante uma análise, fertiliza-a, e segue um movimento ternário mas contínuo de concentração, precipitação, disseminação. O momento do sonho e o de seu relato na sessão não são o sonho inteiro para o analista. Como a concentração de água que se evapora e forma nuvens, temas psíquicos, dotados de tensão emocional, vão-se acumulando e começam a ser sonhados silenciosamente, na vigília, através de pequenos atos de significação ambígua e da concatenação mais ou menos frouxa de séries de idéias a respeito do tema, ou de lembranças e idéias soltas que não se definem, a não ser a posteriori. Ocorrem chuviscos de quando em quando: atos falhos, devaneios, fragmentos oníricos indicativos do tema vindouro. Até que o sonho que já está sendo sonhado alcança um estado de saturação que lhe permite precipitar-se abertamente num episódio noturno recordável, feito tempestade de verão. Depois, o relato, o trabalho interpretativo e a elaboração disseminam o sonho na superfície psíquica, permitem-lhe infiltrar-se nas camadas gerativas de associações, ampliam seu sentido e fertilizam a análise. Por fim, evapora-se esse sonho, o campo do sonho parece secar, mas é só o recomeço do ciclo: já estamos noutro sonho. Há análises onde chove mais, outras onde chove menos, sem que essa variação equivalha necessariamente a produtividade ou estagnação. Surge o sonho, via de regra, numa zona congestionada do entrelaçamento dos campos, donde resulta que seu conteúdo exprima regras atinentes a distintos temas psíquicos simultaneamente; por isso não possui um só sentido latente, mas uma rede de significações emocionais, cuja análise “completa” levaria em princípio a cobrir quase toda a análise; o sonho é um momento diagnóstico por excelência, identifica o sujeito. Deve ser aproveitado. Com o sonhador, o analista sonha simpaticamente, deixando-se levar pela iluminação que o sonho propicia, sem pressa, esperando que a precipitação insemine-lhe as idéias, para poder operar no mesmo ritmo do campo onírico. Como existe uma forte tendência a se esquecer um sonho, por obra da resistência, e quase todos assim se perdem, a função do analista é aqui também comemorativa ou de recordação; ele pugna por manter o sonho à tona por um tempo mais largo do que espontaneamente se daria e por acompanhar seu movimento de disseminação e nova concentração; pôr-se em fase com o campo do sonho é nossa tarefa principal e nada fácil, pois em nós também operam resistências. Por fim, é o sonho uma defesa do sono, como Freud mostrou. A isso pode acrescentar-se que o sonho aberto, essa história visual que se vive de noite e se conta de dia, é a oportunidade para sair de um sonho, da surda corrente subterrânea dos temas de que o sonho trata, cuja lógica preside ocultamente a vigília, até que se possa manifestar num episódio constituído, ganhando estatuto de consciência: o sonho é o despertar de um sonho.

6.2 – Neurociência e Psicanálise

Concepções difíceis de serem amalgamadas, as defendidas pela psicanálise e as defendidas pelas neurociências, no que diz respeito aos sonhos. Em sendo caso, resta-nos confrontar as duas concepções.
Para a Psicanálise os sonhos são construtos psíquicos e é uma das pedras angulares de sua teoria, pois estão baseados na história do indivíduo, idéia esta que a Psicanálise tanto presa. Segundo a psicanálise a função principal do sonho é guardar o sono do sonhador, ao permitir a realização alucinatória dos desejos inconscientes, e desta forma, criar condições psíquicas para que o indivíduo continue dormindo. Os sonhos se expressam através de cenários pictóricos, numa linguagem arcaica, primitiva e carregada de simbolismo. Quando interpretados corretamente adquirem sentido para o sonhador. Este ponto é interessante porque no curso da história da humanidade, dependendo da cultura, o sonho tem sido interpretado de modo diferente pelas diversas culturas, muitas vezes confundindo uso com função.
Ao longo de sua história, a humanidade vem tentando entender o significado dos sonhos. Dele cuidaram filósofos, místicos e cientistas, chegando eles às mais diferentes interpretações. Diversas culturas antigas e mesmo muitas atuais interpretam os sonhos como inspirações, sinais divinos, visões proféticas, fantasias sexuais, realidade alternativa, e diversas outras crenças, dada a sua natureza intrigante e enigmática, muitas vezes perturbadora. Esta é uma questão relacionada ao uso, ou seja, dizer que os sonhos servem para predizer o futuro, ou diagnosticar doenças, como se pensava na Antigüidade, ou mesmo como defendem os psicanalistas hoje, ou como afirmava Freud, que os sonhos são uma via régia para o inconsciente e um instrumento para se compreender a personalidade dos pacientes, é também uma questão de uso, mas não de função. Agora quando se diz que os sonhos protegem o sono como defendia Freud, ou quando se fala de algumas teorias que se seguem nesse texto, levantadas por alguns neurocientistas, podemos estar falando de função.
Em 1900, em seu livro “A interpretação dos Sonhos”, Sigmund Freud defendia a idéia de que os sonhos refletiam a experiência inconsciente e era um guardião do sono. Ele teorizou que o pensamento durante o sono tende a ser primitivo ou regressivo e que os efeitos da repressão são reduzidos. Para ele, os desejos reprimidos são, particularmente, aqueles associados ao sexo e à hostilidade, os quais eram liberados nos sonhos quando a consciência era diminuída.
Entretanto, naquela época, a fisiologia do sono e sonhos era desconhecida, restando a Freud apenas a sua interpretação psicanalítica dos sonhos. Somente na década dos 50, com a descoberta de que os movimentos rápidos dos olhos (o chamado sono REM, ou Rapid Eyes Movement), eram frequentemente um indicativo de que o indivíduo estava sonhando, uma nova era de pesquisa sobre os sonhos emerge, e alguns elementos da psicanálise passaram a ser questionados, como de validade duvidosa, pelos neurocientistas. A partir dos estudos da neurobiologia do sono a neurociência vem se ocupando dos sonhos. Para ela o sonho é o resultado da ativação de certas estruturas cerebrais, como o tronco cerebral e não guarda relação com a história individual. Não expressa uma realização inconsciente de desejo, e é entendido como parte do ciclo do sono, determinado biologicamente.
“De natureza muitas vezes bizarra, irreal e confusa, os sonhos são especulados por alguns estudiosos do sono e sonhos como sendo um meio pelo qual o cérebro se livra de informações desnecessárias ou erradas durante o período em que o indivíduo está acordado – um processo de “desaprendizagem” ou aprendizagem reversa, proposta por Francis Crick e Graeme Mitchison, em 1983. Estes pesquisadores postularam que o neocórtex, uma complexa rede de associação neural, poderia se tornar carregado por grandes quantidades de informações recebidas. O neocórtex poderia desenvolver, então, pensamentos falsos ou “parasíticos”, pensamentos estes que comprometeriam o armazenamento verdadeiro e ordenado da memória” (Silvia Helena).
“Isto explicaria porque as crianças, cujo ritmo de aprendizagem é intenso, apresentam mais sono REM do que os adultos. Elas necessitariam, segundo esta idéia, esquecer as diversas associações erradas ou sem sentido que se formam durante a sua aprendizagem quando estão acordadas, favorecendo, desta forma, o armazenamento das associações ou informações que são verdadeiramente importantes” (Silvia Helena).
“Em linha semelhante de pensamento, outros estudiosos teorizaram que os sonhos consistem de associações e memórias eliciadas da parte frontal do cérebro, em resposta a sinais randômicos do tronco encefálico. Estes autores sugeriram que os sonhos são o melhor “ajuste” que o cérebro frontal poderia fornecer a este bombardeamento randômico do tronco cerebral. Nesta proposição, os neurônios da ponte, via tálamo, ativariam várias áreas do córtex cerebral eliciando imagens bem conhecidas ou mesmo emoções, e o córtex então, tentaria sintetizar as imagens disparadas. O sonho “sintetizado” pode ser completamente bizarro e mesmo sem sentido porque ele está sendo desencadeado por uma atividade semi-randômica da ponte” (Silvia Helena).
“William Dement nos chama a atenção para o fato de que cada um de nós somos “loucos”, ao sonhar, pois, manifestamos as mais bizarras situações. Outros pesquisadores predizem que falhas na habilidade em processar o sono REM, podem causar fantasias, alucinação e obsessão. Outros ainda, afirmam que a falta de sonhos (de sono REM) induz psicoses alucinatórias e outros distúrbios mentais”(Silvia Helena).

6.3 – As teorias mais atuais apresentadas pelos neurocientistas sobre sonhos são:

Teoria restaurativa: o sono ajuda nosso corpo a salvar e restaurar energia por diminuir nosso metabolismo, o que leva a uma conservação de energia. Ele também ajuda a recompor nossos depósitos de neurotransmissores, uma vez que a maioria dos neurônios diminui sua atividade durante o sono. As ondas lentas do sono têm efeitos restaurativos. Elas fornecem um período de repouso para o cérebro. Sem o repouso, nosso cérebro não funciona apropriadamente.
Teoria da aprendizagem: durante o sono, nós podemos armazenar e reorganizar informações. Os neurônios que estão envolvidos na aprendizagem e memória repousam durante o sono, principalmente durante o sono REM (Rapid Eye Moviment ou Movimento Rápido dos Olhos, estágio em que estamos sonhando). Talvez esta seja a razão pela qual nos sentimos mentalmente ativos e descansados quando temos uma boa noite de sono, comparado ao que sentimos após ficar longas horas da noite acordados. Muitos estudos sustentam que o sono REM exibe um papel importante na retenção e consolidação da memória. Um deles mostra que um grupo de pessoas que foi privado do sono REM durante a noite apresentou maior dificuldade de retenção de material de estudo, comparado a outro grupo que teve um sono sem interrupções.
Além disso, outras teorias da aprendizagem dizem que o sono, particularmente o sono REM é designado para remover informações inúteis da memória. Esta teoria sugere que é de igual importância remover informações não desejadas e manter armazenados dados importantes. Nossa memória tem que trabalhar de duas formas, uma para armazenar informações importantes e outra para remover informações desnecessárias. Um importante neurocientista de sono e sonhos, já afirmou que: “nós sonhamos para esquecer”. É sugerido que os sonhos podem refletir um mecanismo de processamento da memória herdado de espécies inferiores, no qual a informação importante para a sobrevivência é necessariamente sensorial, e seria reprocessada durante o sono REM. De acordo com nossos ancestrais mamíferos, os sonhos em humanos são sensoriais, principalmente visuais.
Teoria do desenvolvimento: esta teoria diz que o sono exibe um papel no desenvolvimento do cérebro. O sono REM é um importante componente do sono para fetos ainda no útero e para as crianças. Acredita-se que o sono REM ativa áreas visuais, motoras e sensoriais no cérebro e isto aumenta a habilidade dos neurônios de funcionar apropriadamente e fazer as conexões corretas. “Com base em tais achados e teorias, podemos pensar que sonhos são mecanismos de defesa e adaptação, e a “loucura” manifesta durante este estado silencioso e inconsciente, parece ser necessária para que nos mantenhamos “são” durante o nosso agitado estado de consciência” (Silvia Helena).
A questão central para a psicanálise é como os sonhos, apesar desses vários questionamentos dos neurocientistas, podem ainda ser mantidos como um paradigma para a sessão de análise, ou ainda, serem utilizados como modelo para a compreensão das doenças mentais, na atualidade, como afirmou Freud (1915-1916). O sentido dos sonhos como forma de preparação para o estudo das neuroses se justifica, uma vez que o estudo dos sonhos não apenas é a melhor preparação para o estudo das neuroses, como também porque os sonhos, por si mesmos, são um sintoma neurótico que nos oferece, ademais, a inestimável vantagem de ocorrer em todas as pessoas sadias. Na verdade, supondo-se que todos os seres humanos fossem normais contanto que sonhassem, nós, partindo dos seus sonhos, poderíamos chegar a quase todas as descobertas a que nos levou a investigação das neuroses”. Freud afirma ainda: “o sonho é uma loucura de curta duração, enquanto a loucura é um sonho de longa duração” (Freud, 1938-1940). “uma psicose controlada”. “Um produto patológico, o primeiro membro da classe que inclui os sintomas histéricos, as obsessões e os delírios, sendo, contudo diferenciado dos outros por sua transitoriedade e por sua ocorrência sob condições que fazem parte da vida normal” (Freud, 1940 1938, 1932-1936).
Sabe-se que os sonhos possuem uma espécie de moldura que é o conteúdo manifesto, resultado da elaboração onírica que transforma os pensamentos oníricos no sonho manifesto, ou seja, nessa moldura. A elaboração onírica ao realizar essa transformação faz uso de figuras de linguagem, de simbolismo e de mecanismos como o de condensação e de deslocamento, num cenário pictográfico (imagens predominantemente visuais), não somente porque seja um tipo de linguagem arcaica, primitiva, apropriada aos sonhos e oriunda do processo primário, sede latente da vida psíquica primitiva, pulsional e emotiva, mas também porque os conteúdos latentes dos sonhos, ou seja, os seus pensamentos oníricos carregados de motivações inconscientes e de desejos somente podem se expressar na consciência se disfarçando, isto é, driblando a censura que o ego, mesmo em estado de sono a mantém ativa, evidentemente, em menor proporção do que a que existe na vigília.
A psicanálise vem se defrontando com certos impasses em suas teorias e também vem recebendo, na atualidade, ataques dos mais diversos setores, particularmente de psiquiatras e neurocientistas identificados com o modelo de pesquisa neurobiológica. Há alguns artigos recentes, de psicanalistas, enfocando a questão dos sonhos e as neurociências. Dois deles (Soussumi, 2001) e (Doin, 2001) foram apresentados no Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado, em são Paulo, em 2001. Eles trazem o debate que está atualmente sendo travado, entre neurocientistas de linha cognitivista e neuropsicanalistas identificados com o modelo psicanalítico, no que diz respeito a sonhos. Para os cognitivistas, principalmente para J. Allan Hobson, na sua proposta radical o sonho não tem significado psíquico como defende os psicanalistas, sendo, apenas, um epifenômeno do sono REM, e decorria da ativação de certas estruturas cerebrais, como por exemplo: o tronco cerebral que ativado por determinados neurotransmissores, tipo a acetilcolina geraria o sonho cujo substrato neurobiológico é o sono REM. Ele ressalta ainda nessa hipótese (Soussumi apud Hobson) “o papel do sistema límbico na seleção e na elaboração das tramas dos sonhos e que os psicanalistas não aceitam essas hipóteses neurobiológicas a respeito de sonhos porque isso significaria ter que reformular toda a psicanálise, já que a teoria dos sonhos é tão fundamental para a mesma” (o que é verdadeiro).
Noutro artigo, Mancia (2001) pelo lado dos neuropsicanalistas contesta as posições radicais defendidas por Hobson e argumenta, juntamente, com Mark Solm que, novas pesquisas sobre a neurobiologia dos sonhos mostram que os mesmos ocorrem também (em torno de 5 a 30 por cento) durante o sono não-REM e que, provavelmente, há muitos outros mecanismos envolvidos nos sonhos, além do sono REM.
Apesar de parecerem existir diferenças fundamentais entre um tipo de sonho e outro (o que ocorre no sono REM e no NREM) e que a neurofisiologia do sono REM seja o suporte principal à psicologia do sonho, “há atividade mental do tipo sonho em todas as fases do sono, do início ao despertar” (Mancia, 2001). “No entanto, há diferenças qualitativas entre a atividade mental das várias fases do sono. Por exemplo, a estruturação espacial dos sonhos, o nível de participação pessoal do sonhador, o número de palavras utilizadas para contar o sonho, e certas características do sonho em si, tais como o aspecto fantástico, são determinadas como sendo maiores na fase REM do que na não-REM. Além do mais, o sono REM parece propiciar as melhores condições de ativação cortical para a recuperação da memória, suficiente para permitir relatos de certa extensão” (Mancia apud Antrobus, 1983).
Segundo ainda Mancia (2001) “a diferença fundamental entre a visão psicanalítica e a neurocientífica dos sonhos é que a psicanálise vê o sonho como expressão de uma teologia da mente (Mancia, 1988), no sentido de que ela refere-se às figuras ou representações que assumiram uma dimensão sagrada dentro de nós, os sonhadores, porque estão relacionadas com nossos objetos internos. A diferença, portanto, encontra-se na história afetiva do sujeito, que a psicanálise, diversamente das neurociências, considera central para o significado do sonho”.

6.4 – Análise Behaveorista dos sonhos

Na análise behaviorista radical, considera-se que os sonhos são apenas comportamentos, mais especificamente, comportamentos privados. Enquanto comportamentos privados, os sonhos fazem parte da subjetividade do homem. Os eventos privados referem-se tanto a estímulos como a comportamentos que ocorrem encobertamente. Usa-se o termo encoberto para enfatizar que não são acessíveis à observação direta. Em relação aos comportamentos encobertos, Skinner (1974/1993) não os considera como de natureza especial, estar-se-ia apenas “descrevendo comportamento em miniatura” (p. 27), pois, os comportamentos privados nada mais são do que ações do organismo que foram adquiridas de forma pública, passando a se manifestar privadamente após a sua aquisição. (…)
Em relação aos estímulos privados, Skinner (1974/1993) afirma: “o que é sentido ou introspectivamente observado não é nenhum mundo imaterial da consciência, da mente ou da vida mental, mas o próprio corpo do observador…” (p.19). (…)
Enquanto condições corporais, os estímulos privados seriam objeto de estudo da fisiologia; para a Análise do Comportamento, no entanto, tais estímulos passam a fazer parte de um fenômeno psicológico e precisam ser analisados quando entram no controle de certos comportamentos. Ressalta-se, contudo, que para o behaviorista radical, a explicação dos comportamentos deve ser sempre encontrada no ambiente externo ao indivíduo: “agredimos e sentimos raiva, ambos pela mesma razão, e esta razão está no ambiente (…) (…)
(…) Enquanto comportamentos privados, os sonhos são entendidos pelos behavioristas como o comportamento de ver, porém, na ausência da coisa vista, ou seja, os sonhos são analisados como um comportamento perceptual encoberto (Skinner, 1974/1993, 1968/1972). (…)

6.4.1 - Percepção e o Comportamento de Ver

Segundo Skinner (1974/1993), a própria etimologia da palavra perceber refere-se a capturar, tomar e possuir o mundo. Como não seria possível a posse do mundo real nesses termos, de acordo com o que Skinner denomina de teoria da cópia, a pessoa poderia fazer “cópias mentais” do mundo, armazenando-as na memória e, assim, poderia recuperá-las quando necessário. (…)
O comportamento perceptual seria controlado tanto por estímulos discriminativos quanto por estímulos reforçadores que estão presentes no ambiente em que a pessoa está inserida. Assim sendo, nota-se que a percepção tem relação direta com o controle de estímulos. Por exemplo, suponha que eu seja um filatelista e, na casa de um amigo, vejo um selo raro, que seria jogado fora. Eu, então, peço o selo a ele, que me é oferecido sem qualquer hesitação, apesar de seu valor. Por que meu amigo não percebeu o quanto o selo era valioso? Presumivelmente, Skinner diria que isso ocorreu porque meu amigo não compartilhou as mesmas contingências com as quais eu interagi durante minha história de vida, como: um tio que colecionava selos; minha afeição por ele e o prazer que sentia em sua companhia; as ocasiões em que meu tio contava a história de cada selo, cada qual relacionado com diferentes períodos e assim por diante até que meu interesse por selos crescesse e eu próprio começasse a estudá-los e colecioná-los. (…)
(…) Assim sendo, ver é um comportamento e deve ser analisado a partir da história ambiental do indivíduo, a qual é responsável pelos estímulos que controlam o ver, seja público ou privado. Para Skinner (1969/1980) se uma pessoa não vê o mesmo que você, isso significa que ambos foram expostos a diferentes histórias de condicionamento. (…) Ou seja, o comportamento de ver é considerado pelos behavioristas radicais, como um comportamento privado. O que faz com que o ver na ausência da coisa vista seja mais complexo é que apenas a pessoa que se comporta pode ver o estímulo. De qualquer forma, o ver é um comportamento que diz respeito ao controle de estímulos; inicialmente, a comunidade condiciona o indivíduo a discriminar a presença de determinado objeto através de um estímulo aparente, posteriormente, o indivíduo pode ver mesmo na ausência deste estímulo.

6.4.2 – A Análise Skinneriana dos Sonhos

Já que se considera os sonhos como o comportamento de ver, pode-se dizer que aquilo com que sonhamos é uma relação entre estímulos condicionados, discriminativos e reforçadores que estão presentes na história ambiental da pessoa.
Skinner (1974/1993) valoriza, sobremaneira, o papel da privação e das emoções no comportamento de sonhar: “a estimulação visual exerce controle mínimo, e a história da pessoa e os dados resultantes da privação e emoção têm sua oportunidade” (p.74). Com relação à privação, o sonhador pode se empenhar fortemente no comportamento de ver o objeto do qual está privado, já que a frequência de uma resposta que resulta em reforço é diretamente proporcional ao grau de privação (Skinner, 1974/1993). (…) Por exemplo, se alguém se encontra privado da pessoa que ama, ele poderá se empenhar em comportamentos como ir a lugares onde esteve com a pessoa, ver fotografias, falar com amigos em comum, telefonar para a pessoa e, assim por diante, podendo chegar a visualizar essa pessoa com os olhos fechados. Todos esses comportamentos podem servir de estímulos que participam dos sonhos da pessoa.
Em relação à emoção, o que se sente são condições corporais, as quais são indiferenciadas até que a comunidade verbal estabeleça contingências que nos permitam falar sobre nossos eventos privados. Assim, pode-se concluir que, quando dizemos Estou deprimida hoje ou Estou me sentindo ansiosa, estamos descrevendo condições corporais que têm sido relacionadas com verbalizações da comunidade verbal diante de nossos comportamento públicos.
(…). Dessa forma, se em sonhos pode-se ver, então, é verdadeiro que, em sonhos, também se pode sentir os estímulos privados. Por exemplo, durante o dia, eu fui atacada por um cachorro na rua e, à noite, quando estou dormindo, ouço um barulho, talvez o choro de uma criança. Na minha história, sei que a filha do vizinho chora muito; não obstante, quando em sonho, este choro lembrou-me o latido do cachorro e, assim, aumentou a probabilidade de que eu não só ouvisse e visse o cachorro que me atacou, mas também fez com que eu reagisse aos meus estímulos privados como uma resposta emocional de medo.
(…). Por outro lado, assim como o ver privado, as emoções também podem ser reforçadoras quando envolvem algum tipo de prazer, como já explicado anteriormente com relação aos efeitos do reforçamento. Logo, o comportamento perceptual encoberto relacionado com esse tipo de emoção no sonho pode se tornar mais provável de acontecer.

6.4.3 – Sobre a Dificuldade de se aceitar a Análise Skinneriana

Talvez o maior problema para a aceitação de uma análise dos sonhos fundamentada na análise de contingências, principalmente com relação ao papel de estímulos discriminativos, condicionados e reforçadores, como o modelo apresentado por Skinner acerca da percepção e do comportamento de ver, se refira ao fato de que a sua análise, em geral, foi feita com relação aos comportamentos (públicos e privados) que ocorrem no estado de vigília, enquanto os sonhos ocorrem quando se está dormindo.
Afirma-se, então, que mesmo em sonhos, quando o organismo como um todo está relaxado e os órgãos dos sentidos se tornam cada vez menos receptivos aos estímulos externos, ainda assim o organismo se comporta. Skinner (1974/1993) falava que os comportamentos privados são comportamentos executados em escalas muito pequenas, são comportamentos em miniatura. Kantor (1975), por sua vez, afirmou que “os sonhos são as evidências de que as pessoas nunca estão inativas, mesmo quando adormecidas” (p.11). A própria neurofisiologia indica que as pessoas se comportam mesmo quando estão dormindo. Cardoso (1997) declara: “No estado de vigília, o córtex analisa com precisão os impulsos que chegam dos vários órgãos receptores do sistema sensorial (…) e gerando uma resposta integrada como, por exemplo, o movimento do braço (ação do órgão efetor) pegando uma faca (…) Sabe-se ainda que o sono REM, “o sono dos sonhos”, é a fase do sono em que os olhos se movimentam com maior rapidez, sugerindo que o corpo em repouso não está totalmente inativo. (…)
Cegos de nascença relatam que seus sonhos envolvem o comportamento perceptual auditivo com grande frequência, uma vez que nunca tiveram a oportunidade de ver algum objeto. Até mesmo aquelas pessoas que se tornaram cegas, gradualmente vão perdendo a habilidade de sonhar com estímulos visuais (Cardoso, 1997, p. 3). Uma pesquisa acerca dos relatos dos sonhos de sujeitos cegos congênitos, realizada por Kerr, Foulkes e Schmit (1982), sugere que pessoas com esse tipo de problema, embora realmente não relatem sonhos com percepção visual, seus sonhos envolvem, muitas vezes, relações espaciais, o que levou os pesquisadores a afirmar que aqueles indivíduos que possuíam algum resquício mínimo de visão poderiam ver em sonhos apenas na extensão do que eles podiam ver durante a vigília, como sombras ou vultos por exemplo.(… )

6.4.4 – O Modelo de Seleção pelas Consequências e os Sonhos

A partir da explanação feita anteriormente, alguém poderia perguntar: então, nós aprendemos a sonhar? Bem, já que o sonho é considerado comportamento, a única conclusão plausível é que sim, nós aprendemos a sonhar. Ressalta-se, contudo, que ao falar sobre aprendizagem dos sonhos, refere-se, especificamente, ao seu conteúdo. O comportamento de sonhar é, presumivelmente, um comportamento selecionado com o processo evolucionário das espécies.

6.4.5 – Filogênese

(…) A maior parte da pesquisa com relação à necessidade dos sonhos tem sido realizada no âmbito das neurociências, com o estudo do sono REM. Embora sono REM e sonho não sejam sinônimos, até o momento, o primeiro é a única evidência que se tem para se dizer que uma pessoa está sonhando (…). Dessa forma, as alterações orgânicas verificadas durante o sono REM têm sido estendidas para os sonhos. (…) Como tem sido verificado que durante o sono REM a atividade muscular é praticamente zero, Foulkes e Cartwright (1999) sugerem que o sono REM evoluiu devido à necessidade de que os homens, enquanto caçadores, ficassem imóveis durante a noite, evitando assim o ataque de predadores. (…).
Pode ser também que os sonhos estejam ligados a algum tipo de necessidade bioquímica de ativação cerebral periódica, haja vista que, durante a vigília, o cérebro está em constante atividade, enquanto que no torpor do sono tal atividade cerebral é muito escassa. Não obstante, durante o sono REM o cérebro apresenta ondas que indicam uma atividade muito parecida com a da vigília (…) Outra indicação da necessidade de sono REM tem advindo de pesquisas realizadas sobre a privação de sono REM, onde se verificou que, após longos períodos de privação de sono, os humanos tendem a apresentar uma quantidade muito maior de sono REM do que o normal. (…) Adicionalmente às pesquisas sobre privação de sono, encontra-se frequentemente que, na ausência de sono REM, a pessoa tem falta de concentração, ataxia, problemas de memória e linguagem, chegando até a experienciar alucinações (Schulze, 1997; Foulkes & Cartwright, 1999; Lindzey e cols., 1977). Por isso, Schulze (1997) afirmou que “o sono REM parece mais psicologicamente e menos fisicamente importante…” (p.1). Logo, parece haver indicações para se considerar que o argumento de que os sonhos seriam comportamentos filogeneticamente selecionados é legítimo.

6.4.6 – Ontogênese

(…) Pode-se afirmar que as pessoas só sonham com aquilo que lhes é conhecido, ou melhor, só sonham com aquelas partes do mundo às quais reagem discriminativamente. Logo, aprende-se a sonhar no sentido de que só vemos o que vemos de acordo com as contingências de reforçamento que fazem parte da nossa história ontogenética. Por exemplo, sabe-se que os esquimós podem diferenciar entre dezenas de tipo de neve e, embora possamos sonhar com a neve, dificilmente poderíamos identificar com que tipo de neve estamos sonhando, pois não tivemos um treino discriminativo com relação a esse estímulo ou, melhor, às suas propriedades. (…)

6.4.6 – Cultura

(…) Existem na literatura alguns exemplos que sugerem como o conteúdo dos sonhos pode ser também um produto social. Entre os índios norte-americanos, os sonhos eram considerados elementos integradores da religião (eram mensagens espirituais) e do sistema social, haja vista que os interpretadores de sonhos faziam parte da elite social. Como era exigido que os sonhos tivessem alguma informação importante para o grupo, esses índios parecem ter criado um “sonho padrão de cultura”, pois os sonhos, em geral, pareciam sempre envolver mensagens espirituais, premonições, e assim por diante; aquele indivíduo que sonhasse com mensagens que se provassem realmente positivas para o grupo eram recompensados (Pimentel-Souza e col., 2000). (…)
(…) Assim, pode-se afirmar que aquela prática considerada importante dentro de uma cultura e, mais estreitamente, dentro de certos grupos sociais, exerce forte controle sobre o comportamento dos membros que fazem parte dessa cultura. Os indivíduos, então, modificam e mantêm seus comportamentos de acordo com as contingências de reforçamento do grupo. Nossa cultura não tem o que se chamou (Pimentel-Souza e col., 2000) de um “sonho padrão de cultura”, no entanto, a prática de um grupo social pequeno pode também participar no controle do conteúdo dos sonhos. Por exemplo, uma pessoa que foi submetida a uma rígida educação religiosa, mas não tem honrado seus compromissos com a igreja pode sonhar com Deus a mandá-la ir à igreja. Ao relatar o sonho para a mãe, por exemplo, esta pode encaminhá-la para uma confissão. Fazendo isso, o sonhador pode ter seu comportamento reforçado pela mãe e a própria pessoa pode se “sentir aliviada” por tê-lo feito. Isto dificilmente ocorreria com alguém que não acreditasse em Deus, ou que, pelo menos, não tivesse sido exposto a contingências tão aversivas com relação à religião.

6.4.7 – Considerações Finais

A partir das análises aqui descritas, então, pode-se afirmar que a interpretação de um sonho é, praticamente, impossível sem o conhecimento da história de vida da pessoa e, mais especificamente, se não se conhecem as contingências de reforço com as quais ela está interagindo.
Disso, segue-se que os famosos dicionários de sonhos não podem responder pela singularidade de cada pessoa, pois um símbolo significaria a mesma coisa para todos os sonhos, a despeito do sonhador. É notório que a interpretação de sonhos baseada em símbolos é muito popular, porém, acredita-se que esses símbolos não levam em consideração, nem as diferenças individuais, nem as diferenças culturais entre as pessoas. Diferentemente de teorias baseadas em símbolos, como a de Freud e Jung (Lindzey e cols., 1977), acredita-se que os sonhos não têm um significado, mas sim que o significado é resultado de interpretações que diferem de acordo com a abordagem teórica ou filosófica do interpretador, enquanto um psicanalista vai interpretar os sonhos como, por exemplo, constituído de natureza sexual, um behaviorista vai interpretar os sonhos a partir das contingências de reforçamento responsáveis por eles.
O sonho é único para a pessoa que sonha até que ela torne público o seu sonho. E é exatamente com esse objeto, o relato de sonho, que o analista do comportamento trabalha. No entanto, assim como o sonho, a autodescrição também é produto de contingências de reforço da comunidade verbal. Logo, a capacidade de descrever os sonhos está relacionada com a habilidade da pessoa em discriminar seus eventos privados enquanto uma resposta verbal condicionada pela ação do grupo social no qual está inserida, como descrito anteriormente.
(…) Nesse sentido, embora o próprio indivíduo seja a pessoa, digamos, mais capaz de conhecer sua história e, assim, analisar as condições que os levaram a se comportar de determinada maneira, pela análise aqui exposta, considera-se que um analista do comportamento esteja melhor preparado para interpretar o relato dos comportamentos (públicos ou privados e, neste caso, os sonhos), uma vez que poderá determinar qual o contexto em que o comportamento aconteceu através da análise das relações funcionais observadas a partir das descrições da pessoa e pelo conhecimento prévio da história de reforçamento da mesma. É nesse contexto que os sonhos podem se relacionar com o auto-conhecimento, ou seja, o relato dos sonhos pode servir como instrumento para que o analista do comportamento leve a pessoa a discriminar as contingências das quais o comportamento é função. Neste caso, o analista do comportamento “está presumivelmente salientando relações causais que este [indivíduo] ainda não havia tomado consciência” (Skinner, 1974/1993, p. 30)

Ao final de toda esta análise dos sonhos, podemos resumir a posição behaviorista radical da seguinte forma:
- Para Skinner (1974/1993, 1968/1972), os sonhos são comportamentos encobertos (ver na ausência da coisa vista), sendo estudados, então, no âmbito da subjetividade;
- Dizer que os sonhos são comportamentos equivale dizer que os mesmos são produtos das histórias de condicionamento respondente e operante que se desenvolveram a partir de três níveis diferenciados de seleção e variação que respondem pela determinação do comportamento: filogênese, ontogênese e cultura;
- Para entender os sonhos, pode-se verificar as análises skinnerianas sobre o comportamento perceptual, mais especificamente, o ver;
- O comportamento de ver está relacionado com o controle de estímulos. As histórias de condicionamento respondente e operante respondem pelo comportamento de ver tanto na presença quanto na ausência dos estímulos;
- Pode-se dizer que aquilo com que sonhamos é produto de estímulos condicionados, discriminativos e reforçadores que estão presentes na história ambiental da pessoa. Além disso, Skinner (1968/1972, 1974/1993) valoriza, sobremaneira, o papel da privação e das emoções no comportamento de sonhar;
- A natureza dos sonhos e a aprendizagem do seu conteúdo é defendida com base na análise das histórias filogenética, ontogenética e cultural;
- A interpretação dos conteúdos de um sonho, bem como a análise entre as circunstâncias nas quais o sonho ocorreu são, praticamente, impossíveis sem o conhecimento da história de vida da pessoa e, mais especificamente, se não se conhecem as contingências de reforço com as quais ela está interagindo, pois o sonho não tem um significado, mas seu significado é tão somente resultado de interpretações, as quais dependem da história de vida do interpretador, aí inclusa a abordagem teórica ou filosófica adotada pelo mesmo;
- O relato dos sonhos pode ser usado como um instrumento para que o indivíduo discrimine as relações entre o conteúdo do sonho e as circunstâncias a que está exposto durante a vigília. Ou seja, o relato dos sonhos pode ser utilizado para alcançar o auto-conhecimento.

7 – Instituições Noturnas e os sonhos 
(Achamos por bem transformar o conteúdo deste ítem em um outro artigo à parte que proximamente será postado neste blog).


8 – Abordagem psicológica

Segundo o psicólogo Walter Boechat, cada pessoa carrega um mito pessoal, um conto de fadas preferido que acompanha toda a sua vida consciente. Essa historinha (que de "inha" não tem nada) pode aparecer como um sonho recorrente para falar da vida que o sonhador está levando. Walter Boechat conta que teve uma paciente, certa vez, que sonhava muito com grandes cabelos sendo cortados, com a figura da mãe-bruxa e com um casamento que a livrava da maldade materna. Tempos depois ele descobriu que o conto de fadas favorito da sonhadora era o da Rapunzel, assim, ela reproduzia o simbolismo no sonho e via o casamento como salvação, tal como na história.
Os sonhos são cargas emocionais armazenadas no inconsciente, que projetam imagens e sons, e, de acordo com Freud, como sabemos que os objetos nos sonhos são derivados de cargas emocionais, podemos, através deles, chegar à raiz ou seja às emoções que geraram essa imagem ou som. Sendo estudados corretamente pode-se descrever, ou melhor, conhecer o momento psicológico do indivíduo. Fazendo uma analogia, poderíamos pensar numa espécie de "fotografia" do inconsciente naquele momento. Por isso, o sonho sempre demonstra aspectos da vida emocional. Nos sonhos sua linguagem são o que Freud denomina símbolos. Para entender seus variados conteúdos, temos que reconhecer o que os símbolos representam nesse sonho. semelhante ao que foi estudado por Stanislavski, a simbologia dos sonhos não só está dada pelo contato que o criador do sonho teve com o objeto mas também com o caráter, ou seja, a forma que ele lida relaciona sentimentalmente esse objeto a coisas de sua vida, um exemplo prático o mar pode apresentar distintas simbologias (que são importantes para a interpretação dos sonhos se trata de descobrir a raiz) variando de pessoa a pessoa (inclusive a época) para alguns o mar pode significar destruição (o mar destruindo estruturas deixadas na praia) mas para outros invasão (a água avançando e invadindo território) de acordo com Freud o que a pessoa sente quanto a esse objeto ou essa situação é fundamental para a interpretação de sonho[2]."Os sonhos são a estrada real para o conhecimento da mente"[2]. Portanto as terapias psicanalíticas usam interpretação dos sonhos como um recurso para "elaborar". Carl Gustav Jung passou a se dedicar profundamente aos meios pelos quais se expressa o inconsciente. Em sua teoria, enquanto o inconsciente pessoal consiste fundamentalmente de material reprimido e de complexos, o inconsciente coletivo é composto fundamentalmente de uma tendência para sensibilizar-se com certas imagens, ou melhor, símbolos que constelam sentimentos profundos de apelo universal, os arquétipos.

8.1 – Sonho e Freud

Foi em 1900, com a publicação de A Interpretação dos Sonhos, que Sigmund Freud(1856-1939) deu um caráter científico à matéria. Naquele polêmico livro, Freud aproveita o que já havia sido publicado anteriormente e faz investidas completamente novas, definindo o conteúdo do sonho, geralmente como a “realização de um desejo”. Para o pai da psicanálise, no enredo onírico há o sentido manifesto (a fachada) e o sentido latente (o significado), este último realmente importante. A fachada seria um despiste do superego (o censor da psique, que escolhe o que se torna consciente ou não dos conteúdos inconscientes), enquanto o sentido latente, por meio da interpretação simbólica, revelaria o desejo do sonhador por trás dos aparentes absurdos da narrativa.

8.2 – Sonho e Jung

O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, baseado na observação de seus pacientes e em experiências próprias, tornou mais abrangente o papel dos sonhos, que não seriam apenas reveladores de desejos ocultos, mas sim, uma ferramenta da psique que busca o equilíbrio por meio da compensação. Ou seja, alguém masculinizado pode sonhar com figuras femininas que tentam demonstrar ao sonhador a necessidade de uma mudança de atitude.
Na busca pelo equilíbrio, personagens arquetípicas interagem nos sonhos em um conflito que buscam levar ao consciente conteúdos do inconsciente. Entre essas personagens, estão a anima (força feminina na psique dos homens), o animus (força masculina na psique das mulheres) e a sombra (força que se alimenta dos aspectos não aceitos de nossa personalidade). Esta última, nos sonhos, são os vilões. Um aspecto muito importante em se atentar nos sonhos, segundo a linha junguiana, é saber como o sonhador, o protagonista no sonho (que representa o ego) lida com as forças malignas (a sombra), para se averiguar como, na vida desperta, a pessoa lida com as adversidades, a autoridade e a oposição de ideias. Jung aponta os sonhos como forças naturais que auxiliam o ser humano no processo de individualização.
Ao contrário de Freud, as situações absurdas dos sonhos para Jung não seriam uma fachada, mas a forma própria do inconsciente de se expressar. Para o mestre suíço, há os sonhos comuns e os arquetípicos, revestidos de grande poder revelador para quem sonha. A interpretação de sonhos é uma ferramenta crucial para a psicologia analítica, desenvolvida por Jung.

8.3 – Sonho e sono REM

Existem outras correntes, que vêem o sonho de modo diverso. Os neurocientistas, de modo geral, afirmam que o sonho é apenas uma espécie de tráfego de informação sem sentido que tem por função manter o cérebro em ordem. Essa teoria só não explica como esses enredos supostamente desconexos são responsáveis por grandes insights, como em Thomas Edison, por exemplo. Existem muitos outros casos de sonhos reveladores em várias áreas da ciência e da arte, que todavia não impedem que os sonhos sirvam também para recuperar a saúde do organismo e do cérebro.

8.4 – Sonhos e revelações

A oniromancia, previsão do futuro pela interpretação dos sonhos, tem grande credibilidade nas religiões judaico-cristãs: consta na torá e na bíblia que Jacó, José e Daniel receberam de Deus a habilidade de interpretar os sonhos. No Novo Testamento, São José é avisado em sonho pelo anjo Gabriel de que sua esposa traz no ventre uma criança divina, e depois da visita dos Reis Magos um anjo em sonho o avisa para fugir para o Egito e quando seria seguro retornar à Israel.
Na história de São Patrício, na Irlanda, também figura o sonho. Quando escravizado, Patrício em sonho é avisado de que um barco o espera para que retorne à sua terra natal.
No Islamismo, os sonhos bons são inspirados por Alah e podem trazer mensagens divinatórias, enquanto os pesadelos são considerados armadilhas de Satã.
Filósofos ocidentais eram céticos quanto ao tema religião e sonhos, por alegarem que não haveria controle consciente durante os sonhos, mas estudos recentes analisando movimentos dos olhos (REM) durante o sono mostram resultados cientificamente comprovados com sonhos lúcidos, que se contrapõem às teorias anteriores.
Pensadores e matemáticos como René Descartes e Friedrich August Kekulé von Stradonitz também tiveram em sonhos visões reveladoras. Descartes, em viagem à Alemanha, teve uma visão em sonho de um novo sistema matemático e científico. Kekulé propôs a fórmula hexagonal dobenzeno após sonhar com uma cobra que mordia sua própria cauda.
Kaquinda

Referências
ALTMAN, Leon L. O Sonho em Psicanálise. trad. Alvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, 231 p.
BRENNER, Charles. Noções Básicas de Psicanálise. 3a. ed. trad. Ana M. Spira. Rio de Janeiro: Imago. 1975, 262 p.
da SILVA, Gastão Pereira. Enciclopédia de Psicologia e Psicanálise. 2a. ed. vol. II, Belo Horizonte: Itatiaia, 1970, 235 p.
FREUD, Sigmund. Obras Completas de Sigmund Freud. volumes II e III. trad. Odilon Gallotti. Rio de Janeiro: Delta, s/d.

segunda-feira, 19 de março de 2012


O QUE NÓS SONHAMOS

1 - Conceito
Os sonhos são produtos da própria atividade mental e processam-se, predominantemente, por imagens visuais, mas também recorrem a impressões auditivas; seu conteúdo é derivado da experiência, mostrando conhecimentos e impressões que o indivíduo acordado muitas vezes não percebe (FREUD, 1900).
Não pretendemos aqui abordar qualquer coisa referente à interpretação dos sonhos, mas apenas tentar responder a questões sobre seu processamento, veracidade, em que consistem e sua implicância na vida e na história da pessoa. Assim como se toda pessoa sonha e quando sonha e se os sonhos anunciam algo. E, ainda, lembrar-se ou não dos próprios sonhos.
Há pessoas que, para evitar uma abordagem mais profunda sobre situações pontuais, preferem dizer que “os sonhos não significam absolutamente nada”, “dexa para lá”, “não se aflija com isso”…
Lembremos que os verdadeiros sonhos acontecem durante o sono. O fenômeno do sono é de interesse tanto para a Psicologia como para a Psicanálise, no que tange à compreensão dos mecanismos que regem o sonhar. Mais especificamente, a Psicologia se dedica em desvendar o funcionamento do sono, deixando de lado o sonho que, para a Psicanálise é de suma importância. Pensamos que para retratarmos bem os mecanismos que envolvem o sonho, devemos mencionar algumas das principais descobertas da Psicologia quanto ao fenômeno do sono.
Dormir é sonhar e sonhar é uma necessidade neurofisiológica. Estudos do campo da Psicologia têm determinado que a privação do sono acarreta sérias consequências mentais e físicas. O primeiro aspecto importante que a Psicologia desvendou sobre o sono é que existem tipos de sono: NREM (No Rapid Eye Movements) e REM (Rapid Eye Movements). A distinção encontra-se na observação de que durante o sono REM os olhos saltam de um lado para o outro, como se observassem uma cena. Neste, observa-se também uma variação no Sistema Nervoso Autônomo, com a respiração e o ritmo cardíaco tornando-se mais rápidos e irregulares, a pressão arterial mais elevada e um aumento da secreção dos hormônios supra-renais.
Dentro das distinções presentes no sono REM, há também a ocorrência nos indivíduos masculinos (de todas as idades), a ereção peniana. Ocorre também nos indivíduos femininos uma reação correspondente no tecido vaginal. Os estudos que decifraram este movimento dos olhos no sono foram realizados em 1953 pelo Dr. Nathaniel Kleitman. Tais pesquisas de laboratório mediram as ondas cerebrais de pessoas durante o sono através do eletroencefalograma, as variações musculares, através do eletromiograma, e a movimentação específica dos olhos, através do eletrooculograma.
Sabe-se também que há quatro estágios no sono REM, onde cada um caracteriza-se por um padrão de onda cerebral. O primeiro estágio é o sono leve, que marca o iniciar do sono, tem a duração de alguns minutos, quando o indivíduo fica relaxado, com os pensamentos mais ou menos descoordenados, podendo já neste estágio ocorrer sonhos. O segundo estágio é o sono intermediário, ocorrendo um relaxamento maior, podendo ocorrer experiências sensoriais sem base real (alucinações) e crispações súbitas e desordenadas do corpo, seguidas de sensações de queda. O terceiro estágio é o do sono profundo, quando o indivíduo se torna insensível aos sons e oferecerá resistência em ser acordado. No quarto estágio, o sono mais profundo, há uma total relaxação, com o mais completo desligamento do mundo exterior. É nesta fase que podem ocorrer irregularidades como o sonambulismo. Em seu livro sobre o sonho, Leon L. Altman explica que as mudanças neurofisiológicas que têm lugar durante os períodos REM sugerem que a ativação da área límbica do cérebro - uma área associada ao funcionamento primitivo de impulsos e afetos – está em jogo. O autor vê essa retrogressão como uma corroboração à teoria de Freud, de que o sonho é um fenômeno regressivo, o qual nos devolve aos estados primitivos da infância.
É bom lembrar de antemão a situação do recordar ou não dos nossos sonhos. Nós, durante o sono, estamos sempre sonhando. Mas quanto mais profundo for o estágio onírico em que nos encontramos menor possibilidade de lembrança do nosso sonho temos. Por isso nós, em condições normais, só nos lembramos dos sonhos que temos num momento em que estamos prestes a acordar. O que normalmente coincide com os últimos momentos do sono intermediário e com o sono leve, tendo em conta que o conteúdo de um sonho (mesmo mostrando um longo período de tempo) pode ser condensado em poucos segundos do tempo real.
Evocando a faculdade potenciadora do imaginário e da fantasia, o sonho apresenta-se como um processo psico-fisiológico em que uma sequência de imagens e vivências, que ocorrem durante o sono, se articulam numa estrutura de associações figurativas, assumindo pois a forma de uma linguagem simbólica. Enquanto linguagem simbólica, não há uma associação direta entre os elementos desta estrutura e seus significados, ou seja, as imagens presentes e concretas remetem para imagens ausentes e abstratas. Como tal, assemelha-se a uma alegoria em que a linguagem imagética se faz por conteúdos simbólicos (manifestos), cujo sentido profundo (latente) é passível de ser decodificado.
Já Freud, consciente da significação oculta das imagens do subconsciente, havia distinguido duas funções inerentes ao processo onírico: a identificação e displacement (deslocação ou transferência) – que se assemelham à metáfora e à metonímia. Freud considerou o sonho como expressão do subconsciente, i.e., uma projeção da interioridade para a exterioridade, que manifesta desejos reprimidos os quais, segundo Freud, têm uma função retrospetiva. Assim, rejeitou a visão profética da Antiguidade e da Idade Média. No entanto, Carl Gustav Jung, atribuiu ao sonho uma função prospetiva.
Embora as perspectivas psicológicas e filosóficas nem sempre tenham sido consensuais e tenham sofrido alterações e adaptações perante as ideologias e o pensamento vigente em cada período da história, assistiu-se sempre a uma tentativa de compreender e interpretar o processo onírico, estabelecendo a sua importância e a sua especificidade.

2 - Percorrendo pela história
Sendo o sonho universal no tempo e no espaço, encontramos já especulações filosóficas e referências às experiências oníricas em vários textos antigos: Atharaveda, documento com origem na Índia datado do século V A.C., Chester Beatty Papyrus da XII Dinastia Egípcia (1991 – 1786 A.C.); De somno et vigilia e De somnis e De divinatione per somnum de Aristóteles, Odisseia de Homero, entre outros. A própria Bíblia contém frequentes registros soniais como a interpretação do sonho do Faraó que sonha com sete vacas gordas e sete vacas magras. José explica este sonho como sendo uma previsão de sete anos de fartura seguidos de sete anos de fome (Gen 41,1-13).
Na Antiguidade, o sonho era considerado um espaço de contato com o sobrenatural e com os deuses que aconselhavam e orientavam o homem, revelando acontecimentos futuros. As profecias envoltas em ambiguidade e aparentemente desprovidas de sentido eram decifradas por onirocritas e oniromantes que interpretavam os sonhos de faraós, chefes de estado ou de heróis.
Influenciada pela tradição antiga e pelos textos bíblicos, surgiu na Idade Média uma literatura visionária em que o sonho geralmente assumia a forma de uma alegoria (alegoria de sonho), porque envolvia conflitos morais e espirituais. Alguns exemplos conhecidos de alegoria do sonho incluem: Le Roman de la Rose (c.1227), Divina Comédia de Dante, Piers Plowman atribuído a Langland, The Book of the Duchess de Chaucer. Embora a alegoria de sonho tenha sido popular sobretudo na época medieval, é possível encontrarmos ainda alguns exemplos em épocas posteriores: The Piligrim’s Progress de John Bunyan (1678), The Fall of the Hyperion (1819) de John Keats, Alice’s Adventures in Wonderland (1865) de Lewis Caroll e Finnegans Wake (1939) de James Joyce.
Rejeitando as experiências oníricas ligadas a entidades demoníacas e ao mundo dos mortos, os textos medievais deram continuidade à interpretação dos sonhos e das visões como uma manifestação divina, um diálogo com Deus em que a Verdade e a Sabedoria são reveladas. Assim, a elite de sonhadores da Antiguidade foi substituída por santos, mártires e ermitas ¾ apenas estes eram considerados sonhadores verdadeiros que, devido às suas virtudes e condutas, se aproximam da esfera divina. Paralelamente ao sonho surgiu a experiência visionária que segundo Alberto Magno (1200-1280) é o grau mais elevado da classificação dos sonhos. A experiência visionária, que ocorre em estado de vigília ou de êxtase, implica um processo de purificação que geralmente se realiza através de viagens extraordinárias a lugares transcendentes, onde se acede ao conhecimento e ao contato divino. O sujeito liberta-se do seu corpo e dos seus sentidos, elevando-se em espírito às esferas do sagrado – ao Paraíso. Destas viagens poderá resultar a divinização do sujeito, como se comprova em A Vida e Milagre da Bem aventurada Virgem Sancta Catherina de Sena, da Ordem dos Pregadores, tirada da sua principal estorea. O carácter profético das visões predomina nas viagens em que primeiro se assiste à descida ao inferno por onde começará a viagem iniciática e só depois a elevação ao mundo celestial. Só assim sendo possível a redenção do sujeito que terá a missão de transmitir aos outros tudo aquilo que lhe foi revelado. Este tipo de experiência visionária pode ser incluída na literatura apocalíptica, da qual faz parte A Visão de Túndalo.
Durante a Idade Média privilegiou-se as perspectivas de teólogos e filósofos em concordância com as teorias neoplatónicas em que o sonho é classificado tendo em conta etapas intermédias entre o mundano e o revelador . O último grau mais elevado e verdadeiro do sonho teria sempre um carácter divino. Contudo, a teoria aristotélica, não reconheceu o carácter divino e profético dos sonhos; pois, segundo Aristóteles, os sonhos tinham origem em processos somáticos e psicológicos, podendo ser influenciados pelas nossas ações e pensamentos – parecia antever já aquilo que seria confirmado mais tarde. A negação do sagrado era sentido como um desafio à ideologia teocêntrica vigente neste período. Como tal, o pensamento de Aristóteles, não deixando de influenciar a interpretação da experiência onírica durante os séculos XIII e XIV, foi adaptado à ideologia cristã da época. Boosco Deleitoso deixa transparecer a perspetiva da somatização do sonho.
No Renascimento o fenómeno onírico continuou a revelar um carácter profético, como o sonho de D. Manuel n’Os Lusíadas (IV, 67-75). Contudo, alterações se fazem sentir: o sonho passou a revelar os desejos e ambições dos homens. A viagem de Vasco da Gama n’Os Lusíadas não é mais que o próprio sonho dos homens em encontrar o Paraíso Terrestre. De resto, tal como na tragédia clássica, o sonho apresentou-se como uma prolepse, servindo para adensar e precipitar os acontecimentos inerentes à fatalidade. Veja-se o sonho de Inês de Castro na tragédia Castro de António Ferreira (III,950-971) e o sonho de Brutus, bem como as aparições fantasmagóricas em Julius Caesar de Shakespeare. Paralelamente ao sonho surgem alucinações que pretendem acentuar ainda mais o clima de fatalidade presente nas tragédias clássicas. Outro exemplo ainda deste tipo de visão onírica em obras literárias que seguem os preceitos da tragédia clássica, embora posterior, é o sonho de Madalena em Frei Luís de Sousa (1843) de Almeida Garrett.
Para os românticos o sonho deixou de ser um artifício para passar a ser considerado como um tema literário autónomo, propício aos devaneios da imaginação e à sensibilidade poética, revelando os sentimentos e pensamentos mais íntimos do homem. De acordo com Samuel Coleridge a Verdade encontrava-se na poesia e a poesia, por sua vez, era a expressão do poder criativo da imaginação, decorrente da evasão do espírito e de experiências oníricas – o que se concretiza no poema “Kubla Klan: or, A Vision in a Dream”, em que o autor, adormecido, é acometido por um sonho onde as imagens que se lhe apresentam são depois traduzidas em duzentos a trezentos versos que viriam a ser escritos ao despertar.
As referências e as especulações sobre o sonho continuaram a aparecer em outros autores e épocas posteriores. Veja-se o caso de Antero de Quental, no seu poema “No Turbilhão” (Sonetos Completos, 1886), “Pedra Filosofal” de António Gedeão, Fernando Pessoa, as short-stories de D.H. Lawrence, para quem o sonho, expressão dos nossos receios e desejos, é a libertação do idealismo e da restrição.

3 - Processamento e significado dos sonhos
O sonho é uma experiência que possui significados distintos se for ampliado um debate que envolva religião, ciência e cultura. Para a ciência, é uma experiência de imaginação do inconsciente durante nosso período de sono. Recentemente, descobriu-se que até os bebês no útero têm sono REM (movimentos rápidos dos olhos) e sonham, mas não se sabe com o quê. Em diversas tradições culturais e religiosas, o sonho aparece revestido de poderes premonitórios ou até mesmo de uma expansão da consciência.
Além do estado desperto normal, o sono, é naturalmente, o outro estado de consciência cujo reconhecimento é mais comum. As pessoas passam boa parte da vida dormindo, como a maioria dos mamíferos. O desenvolvimento do eletroencefalógrafo (EEG) foi decisivo para o progresso das pesquisas sobre o sono e o sonho. Berger, um psiquiatra alemão, em 1924, foi a primeira pessoa a registrar o EEG de um homem. Berger só publicou os seus primeiros registros em 1929. Suas descobertas abriram caminho a uma intensa atividade de pesquisa. Muitas pesquisas foram realizadas posteriormente para ampliar e aprofundar as descobertas de Berger, colocando ao alcance de todos uma considerável soma de informações sobre a atividade elétrica do cérebro humano (KIMBLE, 1975).
Segundo MAGNIN (1992), os movimentos lentos dos olhos que apareciam logo antes do sono, também ocorriam durante a noite e estavam diretamente relacionados à profundidade do sono. Seu principal foco de pesquisa era por que motivo, quando uma pessoa deveria estar relaxada, seus globos oculares se comportavam como se ela estivesse acordada assistindo a um filme. E a partir daí veio a confirmação de que o sono não é um estado tranquilo.
Um colaborador muito importante em tais descobertas foi o Dr. William Dement, que em 1952 era aluno do segundo ano da Faculdade de Medicina na Universidade de Chicago e hoje em dia é o atual chefe do Centro de Pesquisa do Sono na Universidade de Stanford também em Chicago. Ele deu a este estranho estágio do sono o nome de REM (rapid eye movementes, ou seja, movimento ocular rápido) e a seu oposto o nome de NÃO-REM. O experimento consistia em acordar as pessoas tanto no estágio REM como no NÃO-REM para verificar se havia alguma diferença. Então em 1957, o Dr. Kleitman que foi de fato quem estava interessado em estudar estes estágios do sono, publicou os primeiros resultados de um estudo no qual as pessoas foram despertadas cento e noventa e uma vezes durante o sono REM. Em 80% dessas ocasiões os pacientes podiam lembrar-se com nitidez de estar sonhando na hora em que foram despertados (MAGNIN 1992).
Inversamente, em cento e sessenta vezes em que foram despertados pacientes cujas ondas cerebrais e globos oculares imóveis mostravam que estavam no sono NÃO-REM, houve apenas onze casos (6,9%) em que os pacientes puderam lembrar de estar sonhando. Os pesquisadores ficaram eufóricos e o jovem William Dement não podia esperar para demonstrar a ligação entre o sono REM e os sonhos. Assim, aprendeu a afixar eletrodos em seu próprio couro cabeludo e conseguiu que outro estudante de medicina monitorasse as leituras, com instruções para acordá-lo cada vez que estivesse no sono REM. Ao chegar a hora, o aluno acordou Dement ele não se lembrou de nenhum vestígio de sonho, apenas uma vaga curiosidade para saber que horas eram. Desde então, muito se aprendeu sobre os dois tipos de sono. Os pesquisadores concordaram que existem dois tipos de sono, que se entra e sai de maneira cíclica ( o ciclo médio tem a duração de noventa minutos), que todos sonham mesmo que, pelo fato de poder acordar durante um período NÃO-REM não lembre-se de tê-lo feito (USHER, 1991).
REIMÃO, 1999 (apud SNYDER,1983) relata que em estudos feitos em humanos e, de um modo mais ou menos paralelo, em todos os mamíferos que têm sido estudados, existem uma alternação rítmica de dois estados fisiológicos distintos. Um estado, a que se deu o nome de período de movimento ocular rápido (REM), por causa de seu atributo mais impressionante, é caracterizado pelo alto grau de atividade do sistema nervoso central (SNC), uma supressão da atividade motora periférica e uma associação temporal com as experiências vividas e alucinatórias denominada sonhos. As provas favoráveis a esta última associação, compõem-se de uma elevada porcentagem de recordações oníricas, quando se faz o sujeito despertar durante o período de sono REM; de uma correlação entre a duração subjetiva da experiência onírica e a duração do período REM associado; e de uma estreita correspondência entre os padrões espaço-temporais dos REM’s e os eventos específicos do sonho.
Ao outro estado deu-se o nome de sono não REM e é o estado durante o qual os padrões de onda cerebral mostram sincronização com a presença de ondas lentas e/ou fusos de sono. Não há REM’s, o SNC parece estar em relativo repouso e não há provas de uma supressão ativa. As provas parecem sugerir que uma atividade psíquica de baixo grau pode ocorrer neste período, mas não justifica a suposição de que os sonhos estejam, em qualquer momento, associados ao sono NÃO-REM (REIMÃO,1999 apud SNYDER,1983).
Para o autor, uma consideração interessante é que pessoas com hipoplasia ou anormalidades no corpo caloso cerebral, cessaram seus sonhos ou perderam a capacidade de sonhar por imagens mas sonhavam com palavras.
A medicina psicossomática, considera importante em relação ao sonho, aspectos ambientais tais como, estímulos sonoros e luminosos que são muito constantes e perturbam o sono das pessoas. A psicossomática também cita um exemplo trazido por Jung de que uma paciente sua, no decorrer de seu processo psicoterápico, traz o sonho com uma amiga que havia morrido de câncer. Jung, recomendou naquele caso, que ela fizesse em exame completo, que detectou um processo canceroso. Neste pensamento, a psicossomática acredita que o inconsciente manda mensagens por meio de sonhos (REIMÃO, 1999).
A Fisiologia e a Biologia sabem situar o sonho no tempo e descrever os fenômenos nervosos e funcionais que o acompanham. Mas não dizem o que é. O sonho parece depender da existência de um córtex cerebral no indivíduo, mesmo se sua indução e realização resulte da organização biológica do sono, nos limites da fisiologia (MAGNIN, 1992).
Dentro do contexto Psicanalítico, o terapeuta ajuda o paciente a interpretar os sonhos para facilitar a recuperação do material do inconsciente. FREUD (1900), também fez algumas generalizações sobre alguns tipos especiais de sonhos como por exemplo sonhos em que se cai, se voa, se nada e sonhos sobre fogo, mas ele também deixa claro que para cada caso em particular as regras podem deixar de ter valia e que as associações de uma pessoa em seu próprio sonho são mais importantes do que qualquer conjunto de regras de interpretação para os mesmos.
Mais importante que o valor biológico dos sonhos são os efeitos psicológicos da elaboração onírica. Esta é o conjunto das operações que transformam os materiais do sonho num produto: o sonho manifesto (LAPLANCHE e PONTALIS, 1990).
Quase todo sonho pode ser compreendido como a realização de um desejo. O sonho é um caminho alternativo para satisfazer os desejos do id. Quando em estado de vigília, o ego esforça-se para proporcionar prazer e reduzir o desprazer. Durante o sono, as necessidades não satisfeitas são escolhidas, combinadas e arranjadas de modo que as sequências do sonho permitam uma satisfação adicional ou redução de tensão. Para o id, não é importante o fato da satisfação ocorrer na realidade fisico-sensorial ou na imaginada realidade interna do sonho. Em ambos os casos, energias acumuladas são descarregadas (FREUD, 1900).
FREUD (1900), relata que muitos sonhos parecem não ser satisfatórios; alguns são deprimentes, alguns perturbadores, assustadores ou simplesmente obscuros. Outros sonhos parecem reviver o passado enquanto outros se mostram proféticos. Ao analisar os sonhos, e fatos da vida do sonhador, o autor conseguiu mostrar que a elaboração onírica é um processo de seleção, distorção, transformação, inversão, deslocamento e outras modificações em um desejo original. Relata a seus pacientes quanto a permissividade dos sonhos, em que são toleradas ações que estão claramente além das restrições morais da vida de vigília. O sonho é uma forma de satisfazer desejos que não foram ou não podem ser realizados durante o dia. O sonho realiza, em pelo menos dois níveis, incidentes comuns que não foram resolvidos ou que fazem parte de padrões mais amplos e antigos que nunca foram solucionados. Mostra que o sonho é uma forma de satisfazer desejos que não foram ou não podem ser realizados durante o dia. Os resíduos diurnos que formam os conteúdos manifestos do sonho servem como estrutura do conteúdo latente ou dos desejos disfarçados. Os sonhos repetidos podem ocorrer quando um acontecimento diurno provoca o mesmo tipo de ansiedade que levou ao sonho original.
Tomemos um exemplo para podermos compreender melhor o que acima ficou dito. O caso singular de Eça de Queirós em O Crime do Padre Amaro. A iniciação sexual de Amaro é feita de forma alienatória, produzindo, através de uma fuga ultrajante à realidade, a dessacralização da Virgem. A primeira mulher que Amaro torna objecto da sua libido é a primeira Mulher: a Virgem. Nenhum ser humano pode aspirar a experiência sexual mais sublimada e mais sonial. Hegel terá dito que os sonhos são desprovidos de qualquer coerência razoável e objetiva. Freud, recordando-o em A Interpretação dos Sonhos, conclui que os sonhos são uma massa desconexa por definição, aceitando as mais violentas contradições. Por isso não estranhamos que só alguém a quem o sentimento libidinoso está proibido por lei, só alguém assexuado por dever espiritual, podia trazer para a experiência sonial o desejo mais impenetrável. Amaro diz isso mesmo no momento em que se conforta a si mesmo por ter sido triunfalmente escolhido pela “moça mais bonita da cidade”: “E escolhera-o a ele, a ele padre, o eterno excluído dos sonhos femininos, o ser melancólico e neutro que ronda como um ser suspeito à beira do sentimento!” (O Crime do Padre Amaro, Obras Completas de Eça de Queiroz, vol.4, Círculo de Leitores, Lisboa, 1980, p.130). O sonho mais importante de Amaro surge num momento em que o pároco procura desviar do caminho do seu desejo o adversário João Eduardo. Amaro prepara uma intriga para tirar de cena o pobre rapaz e assim ficar com a iniquitas via (assim metaforiza Eça em relação à mulher – p.30) livre para a satisfação do mais libidinoso dos desejos. O sonho sugeriu a Eça uma longa e magnífica descrição, da qual damos aqui o essencial:
… toda a noite sonhou com Amélia. Tinha fugido com ela: e ia-se levando por uma estrada que conduzia ao Céu! O Diabo perseguia-o; ele via-o, com as feições de João Eduardo, soprando e rasgando com os cornos os delicados seios das nuvens. E ele escondia Amélia no seu capote de padre, devorando-a por baixo de beijos! (…) Caminhando, vieram a encontrar uma figura branca, que tinha na mão uma palma verde. «Onde está Deus, nosso pai?», perguntou-lhe Amaro, com Amélia conchegada ao peito. A figura disse: «Eu fui um confessor, e sou um santo (…). Oh! Pudesse eu caminhar a passos largos nas torpezas diferentes da Terra – ou bracejar, sob as variedades da dor, nas chamas do Purgatório!»
Amaro murmurou: «Bem fazemos nós em pecar!» – Mas Amélia desfalecia fatigada. «Durmamos, meu amor!» (…) Amaro pousou a sua mão sobre o peito de Amélia: um enleio muito doce enervava-os: enlaçaram-se, os seus lábios pegavam-se húmidos e quentes (…). – Mas de repente as nuvens afastaram-se como os cortinados de um leito; e Amaro viu diante o Diabo que os alcançara, e que, com as garras na cinta, esgaçava a boca numa risada muda. Com ele estava outra personagem: era velho como a substância (…) «Aqui estão os dois sujeitos», dizia-lhe o Diabo retorcendo a cauda. – E por trás Amaro via aglomerarem-se legiões de santos e de santas. (…) «Então a personagem esfregando as mãos, donde se esfarelavam universos, disse grave: «Fico inteirado, meu caro amigo, fico inteirado! Com que, senhor pároco, vai-se à Rua da Misericórdia, arruina-se a felicidade do Sr.João Eduardo (um cavalheiro), arranca-se a Ameliazinha à mamã, e vem-se saciar concupiscências reprimidas a um cantinho da Eternidade? (…)» E voltando-se para dois anjos armados de espadas e lanças, a personagem bradou: «Chumbem uma grilheta aos pés do padre, e levem-no ao abismo número sete!» E o Diabo gania: «Aí estão as consequências, senhor padre Amaro!» Ele sentiu-se arrebatado de sobre o seio de Amélia por mãos de brasa; ia lutar, bradar contra o juiz que o julgava – quando um sol prodigioso que vinha nascendo do Oriente bateu no rosto da personagem, e Amaro, com um grito, reconheceu o Padre Eterno! (pp.184-186)
Se o tema do romance é o crime, espera-se que o criminoso tenha que ser julgado. O julgamento do réu Amaro é feito pelo seu próprio inconsciente. Quer dizer, a auto-análise de Amaro é suficientemente legítima para concluir a sentença do seu processo. E que sentença mais incisiva pode o homem proferir do que aquela que é ditada pelo seu próprio inconsciente? Lá se invoca a presença do mal e do bem, do Diabo e de Deus ou Padre Eterno. A metáfora do velho Padre serve na perfeição para condensar todos os anseios de Amaro num só: a jouissance de Deus censura afinal a jouissance da Mulher. Freud já nos havia demonstrado que o sonho sofre a intervenção deformadora da censura. O Padre Eterno funciona como Autoridade censória: é o superego de Amaro que funciona como guarda, a fim de impedir que o material recalcado surja na consciência. Estabelece-se um jogo decisivo: a pulsão da morte contra a pulsão da vida, por outras palavras, a possibilidade de aniquilamento do desejo contra a possibilidade de o satisfazer. Era fundamental que o mecanismo de censura fosse accionado no inconsciente de Amaro, pois a consciência sabe que o desejo libidinoso vai de encontro às regras sociais e morais que trazem castrado o falo dos clérigos. A censura do Padre Eterno envia para o inconsciente a tendência inconfessada da jouissance da Mulher. Amaro vai acordar “banhado em suor”, quando “um raio de sol entrava pela janela”, deixando cumprida a missão da formação do sonho que consiste em primeiro lugar em ultrapassar a inibição da censura. Repare-se na retórica do sonho de Amaro e veja-se como o essencial do trabalho do sonho conduzido por Eça se esclarece nas leis da linguística: o inconsciente de Amaro está estruturado segundo a linguagem do desejo. É através da linguagem que se deve sempre explorar o inconsciente e não tratá-lo como se fosse um “lugar”. Não interessa onde ou o que é que seja em si mesmo, mas como se manifesta. E sabemos que ele é o discurso do Outro. Repete-se a história: o ubíquo Outro que já conhecemos regressa ao inconsciente de Amaro. Ele nos ajudará a desconstruir a significante deste sonho. A chave significante do sonho de Amaro é a expressão “era velho como uma substância”. O significado que se liberta desta frase é o de Deus identificado com “velho” e com “substância” (termo aristotélico para Deus, considerado como o que existe por si mesmo, sem supor outro ser de que seja atributo). Ora, até sermos “informados” (o sonho é precisamente o momento em que o desejo se forma ou in-forma, o instante em que, mais do que satisfazer o desejo de alguma coisa, se trabalha na realização do desejo como tal) da verdadeira identidade desse “velho”, o que acontece no final quando Amaro reconhece o Padre Eterno, nenhuma parte da frase ou do que nos é descrito até aí nos autoriza a deduzir tal significado. Este liberta-se pelo arranjo dos termos, pela sua contextualização. É, pois, na cadeia do significante que o significado existe e este é o processo estilístico em que se forma o sonho de Amaro. Palavra a palavra não descortinaríamos qualquer interpretação ou signifiance. Se aceitarmos o princípio lacaniano de que o significante actua separadamente da significação e na ignorância do sujeito, podemos dizer que esse “velho” já habitava o homem Amaro e impôs-se-lhe tanto no sentido linguístico como no sentido psicanalítico. A verdade da relação amorosa proibida já está escrita no inconsciente do padre Amaro mesmo antes de ele estar verdadeiramente consciente do seu pecado. Deus é a sua máxima censura; a Mulher, o máximo significante em torno do qual se ordenam as leis do desejo.
(USHER) 1991, relata que Freud foi muito criticado por basear toda a interpretação dos sonhos no sexo, mas considera injusto toda essa crítica. Para o autor, Freud argumentou que os sonhos de ansiedade costumam ter um trampolim sexual, mas para defender-se, Freud apenas negou que algum dia tivesse afirmado que todos os conteúdos dos sonhos tivessem como base, conteúdos sexuais.
No livro Interpretação dos Sonhos, Freud descreve os modos de trabalho, no que chama o trabalho do sonho: condensação, deslocamento, figuração. O sonho utiliza como material as lembranças da véspera. É a ocasião de realização de uma intenção inconsciente. O sonho constitui, assim, uma das formas de retorno do recalcado e, segundo a expressão de Freud, é a vida real de acesso ao conhecimento do Inconsciente. O recalcamento é conservador para o aparelho psíquico (FREUD, 1900).
DEJOURS (1988) menciona que especialistas em psicossomática mostram que certos sujeitos só sonham excepcionalmente, enquanto outros são grandes sonhadores. Os que sonham pouco seriam os caracteropatas, os grandes sonhadores seriam os neuróticos. Na verdade, essa distinção é esquemática e não diz nada a respeito dos psicóticos entre os quais alguns sonham e outros não. Eles consideram as seguintes possibilidades:
• Sujeitos que sonham e se lembram dos sonhos;
• Sujeitos que sonham, mas não se lembram de ter sonhado.
A segunda categoria é a mais problemática. Para um psicanalista, todo material tem potencialmente um sentido, e é difícil admitir que se lembrar ou não se lembrar de ter sonhado possa ser isento de significado. Segundo alguns biólogos, para se lembrar dos sonhos é preciso memorizá-lo. Se um sonho é esquecido é porque não houve transferência da memória a curto prazo para a memória a longo prazo, e eles definem as condições favoráveis para essa transferência, especialmente o respeito deste estado de tranqüilidade intermediário entre os dois regimes de ativação cortical .
De acordo com PERLS (1976), em Gestalt-terapia os sonhos não são interpretados. O que se faz dentro da Gestalt-terapia, é trazer o sonho de volta à vida e isto só é possível se o sonho for revivido como se estivesse ocorrendo agora. O sonho é encenado no presente de forma que se torne uma parte do sonhador e não é apenas narrado como uma história passada. O sonho, segundo o autor, é uma excelente oportunidade de se descobrir os furos de personalidade. Encontra – se tudo o que é necessário em um sonho: a dificuldade existencial e mesmo a parte da personalidade que está faltando.
O mesmo autor sugere que os sonhos são mensagens existenciais que podem ajudar a compreender quais as situações inacabadas (gestalts) que as pessoas carregam consigo, o que falta em suas vidas. Ele diz que se as pessoas compreenderam o que se pode fazer com os sonhos, poderão inclusive fazer muitas coisas sozinhas apenas analisando e dando significado a cada fragmento do sonho que ainda está acessível e contém uma situação inacabada, não assimilada.
O trabalho sugerido para que se faça com os sonhos, começa com o ato de escrever tudo aquilo que se lembra do sonho. Todos os detalhes, objetos, personagens e sensações. Após esta etapa, a pessoa deve colocar – se como sendo cada um dos itens citados, ou seja, o sonho não deve ser relatado como algo passado mas sim encenado, e a pessoa deverá tornar – se naquele momento cada parte de seu próprio sonho experimentando cada sensação. Cada pedaço é visto como uma peça de um quebra cabeça que juntas formarão um todo, uma personalidade mais completamente real. Após ter experimentado todas estas sensações, a pessoa deverá criar um diálogo entre estas coisas fazendo com que elas se encontrem. Todas as diferentes partes do sonho, são o próprio indivíduo, uma projeção dele mesmo. A partir daí a pessoa verá seus próprios lados opostos e conflitantes e à medida que este encontro se desenvolve, há um aprendizado mútuo até chegar – se a uma compreensão apreciação das diferenças (PERLS, 1976).
Para USHER (1991), o enfoque de JUNG à interpretação dos sonhos, depois que rompeu com Freud, era mais místico, menos estereotipado, cheio de sombras e mitos. Ele escreveu, aos oitenta e três anos de idade que o que o homem parece ser só pode ser expressado por meio do mito. O mito é mais individual e expressa a vida com mais precisão que a ciência. Esta trabalha com conceitos de médias que são gerais demais para fazer justiça à variedade subjetiva de uma vida individual.
Conforme JUNG (1987), os sonhos desempenham, na psique, um importante papel compensatório. Ajudam a equilibrar as influências dispersadoras e variadas a que as pessoas estão expostas em sua vida consciente; tais influências tendem a moldar o pensamento de diversas maneiras que são freqüentemente inadequadas à personalidade e individualidade de cada um. Os sonhos são realidades vivas que precisam ser experimentadas e observadas com cuidado para serem compreendidas. Ele tentou descobrir o significado dos símbolos oníricos prestando muita atenção à forma e ao conteúdo do sonho e, com relação a análise dos sonhos, Jung comenta a respeito da livre associação defendida por FREUD. “A livre associação vai trazer à tona todos os meus complexos, mas dificilmente o significado de um sonho” (p.149).
JUNG, 1967 (apud HALL,1995) acrescenta que pelo fato do sonho tratar-se de símbolos que possui mais de um significado, não pode haver um sistema simples ou mecânico para sua interpretação. Qualquer análise de um sonho precisa levar em conta as atitudes, a experiência e a formação do sonhador. Também leva-se em conta as condições históricas do homem, formulando assim o conceito de inconsciente coletivo. Portanto o sonho para Jung, é uma expressão espontânea, normal e criativa do inconsciente, que ocorre sob a forma de símbolos e imagens. A interpretação do sonho é o esforço de decifrar esses símbolos e imagens, ligando-os e ampliando-os com o material contíguo. Cada sonho deve ser encarado como uma expressão direta do inconsciente do sonhador. A consciência capta uma parte da realidade objetiva, enquanto o inconsciente tem acesso a uma realidade mais ampla e desse modo os sonhos apresentam a função compensatória, ou seja, eles mostram que a psique funciona como um sistema auto-regulador em três aspectos: a) o sonho pode compensar distorções temporárias da estrutura da consciência, dirigindo o indivíduo a um entendimento mais abrangente das atitudes e ações; b) o sonho pode ser visto como auto-representação da psique à medida que pode colocar a estrutura do ego em funcionamento face a face com a necessidade mais rigorosa ao processo de individuação; c) o sonho pode ser visto como uma tentativa para alterar diretamente a estrutura de complexos sobre os quais o ego arquetípico se apoia, para a identidade em níveis mais conscientes.
Ainda sobre a Psicologia Junguiana, FRANZ (1988), cita a técnica para descobrir o significado do sonho: compara–se o sonho a um drama e se examina–o sobre três aspectos culturais. O primeiro, a introdução ou exposição – o cenário do sonho e a colocação do problema; segundo, a peripécia – o desenrolar da história; e finalmente, a lysis – a solução final. A primeira sentença de um sonho em geral descreve a cena da ação e apresenta os protagonistas. Há também dentro da abordagem Junguiana, os sonhos arquetípicos, que têm um significado mitológico e os quais em geral as pessoas não associam a nada. Como por exemplo, se alguém sonha com o planeta Júpiter e é questionado sobre o que pensa a respeito de Júpiter, certamente responderá que se trata de um planeta. Não se sabe o que associar e nada de pessoal vem à mente. Nesse caso, o que acontece é que recorrem–se às associações da humanidade. Que fantasias a humanidade tem a respeito de Júpiter, e a partir daí, coloca–se a resposta no contexto do sonho. A visão Junguiana também fala a respeito da dificuldade em se interpretar os próprios sonhos, porque o sonho nunca diz o que você já sabe. Ele sempre indica algo desconhecido, um ponto cego. O próprio Jung, não tinha quem interpretasse seus sonhos mas relatava–os a um homem que nada entendia do assunto o que o ajudava a encontrar suas próprias respostas.

4 - Importância dos sonhos
Aquilo a que chamamos símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais para além do seu significado evidente e convencional. Implica algo de vago, desconhecido ou oculto para nós. Assim, uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem tem um aspeto mais amplo, que nunca é definido de uma única forma ou explicado totalmente, nem podemos ter esperanças de a definir ou explicar. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida em direção a ideias que estão fora do alcance da nossa razão.
Por existirem inúmeras coisas fora do alcance da compreensão humana é que utilizamos frequentemente termos simbólicos como representação de conceitos que não podemos definir ou compreender integralmente. Esta é uma das razões por que todas as religiões empregam uma linguagem simbólica e se exprimem através de imagens. Mas este uso consciente que fazemos dos símbolos é apenas um aspeto de um fato psicológico de grande importância: o homem também produz símbolos, inconsciente e espontaneamente, em forma de sonhos. Há ainda certos acontecimentos de que não tomamos consciência. Permanecem, por assim dizer, abaixo do limiar da consciência. Aconteceram, mas foram absorvidos subliminarmente, sem o nosso conhecimento consciente. Só podemos percebê-los em algum momento de intuição ou por um processo de intensa reflexão que nos levem à subsequente compreensão de que devem ter acontecido. E, apesar de termos ignorado originalmente a sua importância emocional e vital, mais tarde brotam do inconsciente como uma espécie de segundo pensamento.
Este segundo pensamento pode aparecer, por exemplo, sob a forma de um sonho. O aspeto inconsciente de um acontecimento é-nos revelado, geralmente, através de sonhos, onde se manifesta, não como um pensamento racional, mas como uma imagem simbólica. Do ponto de vista histórico, foi o estudo dos sonhos que permitiu, inicialmente, aos psicólogos, a investigação do aspeto inconsciente de ocorrências psíquicas conscientes. Fundamentados nestas observações é que os psicólogos admitem a existência de uma psique inconsciente, apesar de muitos cientistas e filósofos lhe negarem existência. Argumentam ingenuamente que uma tal pressuposição implica a existência de dois “sujeitos” ou, em linguagem comum, de duas personalidades dentro do mesmo indivíduo. E estão inteiramente certos: é exatamente isto o que ela implica. Esta divisão de personalidades é, com efeito, uma das maldições do homem moderno. Não é, de forma alguma, um sintoma patológico: é um fato normal, que pode ser observado em qualquer época e em quaisquer lugares. O neurótico cuja mão direita não sabe o que faz a sua mão esquerda não é caso único. Esta situação é um sintoma de inconsciência geral, que é, inegavelmente, herança comum de toda a humanidade.
Aquele que nega a existência do inconsciente está, de fato, admitindo que, hoje em dia, temos um conhecimento total da psique. É uma suposição evidentemente tão falsa quanto a pretensão de que sabemos tudo a respeito do universo físico. A nossa psique faz parte da natureza e o seu enigma é, igualmente, sem limites. Assim, não podemos definir a psique nem a natureza. Podemos, simplesmente, constatar o que acreditamos que elas sejam e descrever, da melhor maneira possível, como funcionam. No entanto, fora das observações acumuladas em pesquisas médicas, temos argumentos lógicos de bastante peso para rejeitarmos afirmações como “não existe inconsciente”, etc. Aqueles que fazem este tipo de declaração estão a expressar um velho misoneísmo – o medo do que é novo e desconhecido.
Sigmund Freud foi o pioneiro, o primeiro cientista a tentar explorar empiricamente o segundo plano inconsciente da consciência. Trabalhou baseado na hipótese de que os sonhos não são produto do acaso, mas que estão associados a pensamentos e problemas conscientes. Esta hipótese nada apresentava de arbitrário.

5 - A Função dos Sonhos
Na nossa vida do dia a dia, despojamos tanto as ideias da sua energia emocional que já não reagimos a elas. Usamos estas ideias nos nossos discursos, reagimos convencionalmente quando outros também as utilizam, mas elas não nos causam uma impressão profunda. É necessário haver alguma coisa mais eficaz para que mudemos de atitude ou de comportamento. E é isto que a linguagem do sonho faz: o seu simbolismo tem tanta energia psíquica que somos obrigados a prestar-lhe atenção.
As mensagens do inconsciente têm uma importância bem maior do que se pensa. Na nossa vida consciente, estamos expostos a todos os tipos de influência. As pessoas estimulam-nos ou deprimem-nos, ocorrências da nossa vida profissional ou social desviam a nossa atenção. Todas estas influências podem levar-nos para caminhos opostos à nossa individualidade; e quer percebamos quer não o seu efeito, a nossa consciência é perturbada e exposta, quase sem defesas, a estes incidentes. Isto ocorre em especial com pessoas de atitude mental extrovertida, que dão muita importância a objectos exteriores, ou com as que abrigam sentimentos de inferioridade e de dúvida, envolvendo o mais íntimo da sua personalidade.
Quanto mais a consciência foi influenciada por estes preconceitos, erros, fantasias e anseios infantis, mais se dilata a fenda já existente, até se chegar a uma dissociação neurótica e a uma vida mais ou menos artificial, em tudo distanciada dos instintos normais, da natureza e da verdade. A função geral dos sonhos é tentar restabelecer a nossa balança psicológica, produzindo um material onírico que reconstitui, de maneira subtil, o equilíbrio psíquico total.
É aquilo a que chamo função complementar (ou compensatória) dos sonhos na nossa constituição psíquica. Explica por que motivo pessoas com ideias pouco realistas, ou que têm um alto conceito de si mesmas, ou ainda que constroem planos grandiosos em desacordo com a sua verdadeira capacidade, sonham que voam ou caem. O sonho compensa as deficiências das suas personalidades e, ao mesmo tempo, previne-as dos perigos dos seus rumos atuais. Para bem do equilíbrio mental e mesmo da saúde fisiológica, o consciente e o inconsciente devem estar completamente interligados, a fim de que possam mover-se em linhas paralelas. Se se separam um do outro ou se dissociam, ocorrem distúrbios psicológicos. Neste caso particular, os símbolos oníricos são os mensageiros indispensáveis da parte instintiva da mente humana para a sua parte racional, e a sua interpretação enriquece a pobreza da nossa consciência, fazendo-a compreender, novamente, a esquecida linguagem dos instintos.
As pessoas, é claro, tendem a pôr em dúvida esta função, já que os seus símbolos, muitas vezes, passam despercebidos ou são incompreendidos. Na vida normal, a compreensão dos sonhos é até, por vezes, considerada supérflua. De um modo geral, é uma tolice acreditar-se em guias pré-fabricados e sistematizados para a interpretação dos sonhos, como se pudéssemos comprar um livro de consultas para nele encontrarmos a tradução de um determinado símbolo. Nenhum símbolo onírico pode ser separado da pessoa que o sonhou, assim como não existem interpretações definidas e específicas para qualquer sonho. A maneira pela qual o inconsciente completa ou compensa o consciente varia tanto de indivíduo para indivíduo que é impossível saber até que ponto pode, na verdade, haver uma classificação dos sonhos e dos seus símbolos. O sonho recorrente é um fenómeno digno de apreciação. Há casos em que as pessoas sonham o mesmo sonho, desde a infância até à idade adulta. Este tipo de sonho é em geral uma tentativa de compensação para algum defeito particular que existe na atitude do sonhador em relação à vida; ou pode datar de um traumatismo que tenha deixado alguma marca. Pode também ser a antecipação de algum acontecimento importante que está para acontecer.
Kaquinda
Referências
ALTMAN, Leon L. O Sonho em Psicanálise. trad. Alvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1971, 231 p.
BRENNER, Charles. Noções Básicas de Psicanálise. 3a. ed. trad. Ana M. Spira. Rio de Janeiro: Imago. 1975, 262 p.
da SILVA, Gastão Pereira. Enciclopédia de Psicologia e Psicanálise. 2a. ed. vol. II, Belo Horizonte: Itatiaia, 1970, 235 p.
FREUD, Sigmund. Obras Completas de Sigmund Freud. volumes II e III. trad. Odilon Gallotti. Rio de Janeiro: Delta, s/d.