Dia Mundial da Paz 2022: "Educação, trabalho,
diálogo entre as gerações"
Diálogo entre gerações,
educação e trabalho: instrumentos para construir uma paz duradoura
1. «Que formosos
são sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz» (Is 52, 7)!
Estas palavras
do profeta Isaías manifestam a consolação, o suspiro de alívio dum povo exilado,
extenuado pelas violências e os abusos, exposto à infâmia e à morte. Sobre esse
povo, assim se interrogava o profeta Baruc: «Por que estás tu em terra inimiga,
envelhecendo num país estrangeiro? Contaminaste-te com os mortos, foste contado
com os que descem ao Hades» (3,10-11). Para aquela gente, a chegada do mensageiro
de paz significava a esperança dum renascimento dos escombros da história,
o início dum futuro luminoso.
Ainda hoje o caminho
da paz – o novo nome desta, segundo São
Paulo VI, é desenvolvimento integral [1] – permanece, infelizmente, arredio da vida
real de tantos homens e mulheres e consequentemente da família humana, que nos aparece
agora totalmente interligada. Apesar dos múltiplos esforços visando um diálogo construtivo
entre as nações, aumenta o ruído ensurdecedor de guerras e conflitos, ao mesmo tempo
que ganham espaço doenças de proporções pandémicas, pioram os efeitos das alterações
climáticas e da degradação ambiental, agrava-se o drama da fome e da sede e continua
a predominar um modelo económico mais baseado no individualismo do que na partilha
solidária. Como nos tempos dos antigos profetas, continua também hoje a elevar-se o clamor dos pobres e da terra [2] para implorar justiça e paz.
Em cada época,
a paz é conjuntamente dádiva do Alto e fruto dum empenho compartilhado. De facto,
há uma «arquitectura» da paz, onde intervêm as várias instituições da sociedade,
e existe um «artesanato» da paz, que nos envolve pessoalmente a cada um de nós [3]. Todos podem colaborar para construir um mundo
mais pacífico partindo do próprio coração e das relações em família, passando pela
sociedade e o meio ambiente, até chegar às relações entre os povos e entre os Estados.
Quero propor, aqui,
três caminhos para a construção duma paz duradoura. Primeiro, o diálogo
entre as gerações, como base para a realização de projectos compartilhados.
Depois, a educação, como factor de liberdade, responsabilidade e desenvolvimento.
E, por fim, o trabalho, para uma
plena realização da dignidade humana. São três elementos imprescindíveis para tornar
«possível a criação dum pacto social» [4], sem o qual se revela inconsistente todo o
projecto de paz.
2. Dialogar
entre gerações para construir a paz
Num mundo ainda
fustigado pela pandemia, que tem causado tantos problemas, «alguns tentam fugir
da realidade, refugiando-se em mundos privados, enquanto outros a enfrentam com
violência destrutiva, mas, entre a indiferença egoísta e o protesto violento há
uma opção sempre possível: o diálogo, [concretamente] o diálogo entre as gerações»
[5].
Todo o diálogo
sincero, mesmo sem excluir uma justa e positiva dialética, exige sempre uma confiança
de base entre os interlocutores. Devemos voltar a recuperar esta confiança recíproca.
A crise sanitária atual fez crescer, em todos, o sentido da solidão e o isolar-se
em si mesmos. Às solidões dos idosos veio juntar-se, nos jovens, o sentido de impotência
e a falta duma noção compartilhada de futuro. Esta crise é sem dúvida aflitiva,
mas nela é possível expressar-se também o melhor das pessoas. De facto, precisamente
durante a pandemia, constatamos nos quatro cantos do mundo generosos testemunhos
de compaixão, partilha, solidariedade.
Dialogar significa
ouvir-se um ao outro, confrontar posições, pôr-se de acordo e caminhar juntos. Favorecer
tudo isto entre as gerações significa amanhar o terreno duro e estéril do conflito
e do descarte para nele se cultivar as sementes duma paz duradoura e compartilhada.
Enquanto o progresso
tecnológico e económico frequentemente dividiu as gerações, as crises contemporâneas
revelam a urgência da sua aliança. Se os jovens precisam da experiência existencial,
sapiencial e espiritual dos idosos, também estes precisam do apoio, carinho, criatividade
e dinamismo dos jovens.
Os grandes desafios
sociais e os processos de pacificação não podem prescindir do diálogo entre os guardiões
da memória – os idosos – e aqueles que fazem avançar a história – os jovens –; tal
como não é possível prescindir da disponibilidade de cada um dar espaço ao outro,
nem pretender ocupar inteiramente a cena preocupando-se com os seus interesses imediatos
como se não houvesse passado nem futuro. A crise global que vivemos mostra-nos,
no encontro e no diálogo entre as gerações, a força motora duma política sã, que
não se contenta em administrar o existente «com remendos ou soluções rápidas» [6], mas presta-se, como forma eminente de amor
pelo outro, [7] à busca de projectos compartilhados e sustentáveis.
Se soubermos, nas
dificuldades, praticar este diálogo intergeracional, «poderemos estar bem enraizados
no presente e, daqui, visitar o passado e o futuro: visitar o passado, para aprender
da história e curar as feridas que às vezes nos condicionam; visitar o futuro, para
alimentar o entusiasmo, fazer germinar os sonhos, suscitar profecias, fazer florescer
as esperanças. Assim unidos, poderemos aprender uns com os outros» [8]. Sem as raízes, como poderiam as árvores crescer
e dar fruto?
É suficiente pensar
no cuidado da nossa casa comum, já que o próprio meio ambiente «é um empréstimo
que cada geração recebe e deve transmitir à geração seguinte» [9]. Por isso, devem ser apreciados e encorajados
os numerosos jovens que se empenham por um mundo mais justo e atento à tutela da
criação, confiada à nossa custódia. Fazem-no num misto de inquietude e entusiasmo,
mas sobretudo com sentido de responsabilidade perante a urgente mudança de rumo
[10], que nos é imposta pelas dificuldades surgidas
da atual crise ética e sócio-ambiental [11].
Por outro lado,
a oportunidade de construir, juntos, percursos de paz não pode prescindir da educação
e do trabalho, lugares e contextos privilegiados do diálogo intergeracional: enquanto
a educação fornece a gramática do diálogo entre as gerações, na experiência do trabalho
encontram-se a colaborar homens e mulheres de diferentes gerações, trocando entre
si conhecimentos, experiências e competências em vista do bem comum.
3. A instrução
e a educação como motores da paz
Nos últimos anos,
diminuiu sensivelmente a nível mundial o orçamento para a instrução e a educação,
vistas mais como despesas do que como investimentos; e, todavia, constituem os vetores
primários dum desenvolvimento humano integral: tornam a pessoa mais livre e responsável,
sendo indispensáveis para a defesa e promoção da paz. Por outras palavras, instrução
e educação são os alicerces duma sociedade coesa, civil, capaz de gerar esperança,
riqueza e progresso.
Ao contrário, aumentaram
as despesas militares, ultrapassando o nível registado no termo da «guerra fria»,
e parecem destinadas a crescer de maneira exorbitante [12].
Por conseguinte
é oportuno e urgente que os detentores das responsabilidades governamentais elaborem
políticas económicas que prevejam uma inversão na correlação entre os investimentos
públicos na educação e os fundos para armamentos. Aliás a busca dum real processo
de desarmamento internacional só pode trazer grandes benefícios ao desenvolvimento
dos povos e nações, libertando recursos financeiros para ser utilizados de forma
mais apropriada na saúde, na escola, nas infra-estruturas, no cuidado do território,
etc.
Faço votos de que
o investimento na educação seja acompanhado por um empenho mais consistente na promoção
da cultura do cuidado [13]. Perante a fragmentação da sociedade e a inércia
das instituições, esta cultura do cuidado pode-se tornar a linguagem comum que abate
as barreiras e constrói pontes. «Um país cresce quando dialogam de modo construtivo
as suas diversas riquezas culturais: a cultura popular, a cultura universitária,
a cultura juvenil, a cultura artística e a cultura tecnológica, a cultura económica
e a cultura da família, e a cultura dos meios de comunicação» [14]. É necessário, portanto, forjar um novo paradigma
cultural, através de «um pacto educativo global para e com as gerações jovens, que
empenhe as famílias, as comunidades, as escolas e universidades, as instituições,
as religiões, os governantes, a humanidade inteira na formação de pessoas maduras»
[15]. Um pacto que promova a educação para a ecologia
integral, segundo um modelo cultural de paz, desenvolvimento e sustentabilidade,
centrado na fraternidade e na aliança entre os seres humanos e o meio ambiente [16].
Investir na instrução
e educação das novas gerações é a estrada mestra que as leva, mediante uma específica
preparação, a ocupar com proveito um justo lugar no mundo do trabalho [17].
4. Promover
e assegurar o trabalho constrói a paz
O trabalho é um
factor indispensável para construir e preservar a paz. Aquele constitui expressão
da pessoa e dos seus dotes, mas também compromisso, esforço, colaboração com outros,
porque se trabalha sempre com ou para alguém. Nesta perspectiva acentuadamente social,
o trabalho é o lugar onde aprendemos a dar a nossa contribuição para um mundo mais
habitável e belo.
A pandemia Covid-19
agravou a situação do mundo do trabalho, que já antes se defrontava com variados
desafios. Faliram milhões de actividades económicas e produtivas; os trabalhadores
precários estão cada vez mais vulneráveis; muitos daqueles que desempenham serviços
essenciais são ainda menos visíveis à consciência pública e política; a instrução
à distância gerou, em muitos casos, um retrocesso na aprendizagem e nos percursos
escolásticos. Além disso, os jovens que assomam ao mercado profissional e os adultos
precipitados no desemprego enfrentam hoje perspectivas dramáticas.
Particularmente
devastador foi o impacto da crise na economia informal, que muitas vezes envolve
os trabalhadores migrantes. Muitos deles – como se não existissem – não são reconhecidos
pelas leis nacionais; vivem em condições muito precárias para eles mesmos e suas
famílias, expostos a várias formas de escravidão e desprovidos dum sistema de previdência
que os proteja. Mais, atualmente apenas um terço da população mundial em idade laboral
goza dum sistema de protecção social ou usufrui dele apenas de forma limitada. Em
muitos países, crescem a violência e a criminalidade organizada, sufocando a liberdade
e a dignidade das pessoas, envenenando a economia e impedindo que se desenvolva
o bem comum. A resposta a esta situação só pode passar por uma ampliação das oportunidades
de trabalho digno.
Com efeito o trabalho
é a base sobre a qual se há-de construir a justiça e a solidariedade em cada comunidade.
Por isso, «não se deve procurar que o progresso tecnológico substitua cada vez mais
o trabalho humano: procedendo assim, a humanidade prejudicar-se-ia a si mesma. O
trabalho é uma necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é caminho
de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal» [18]. Temos de unir as ideias e os esforços para
criar as condições e inventar soluções a fim de que cada ser humano em idade produtiva
tenha a possibilidade, com o seu trabalho, de contribuir para a vida da família
e da sociedade.
Como é urgente
promover em todo o mundo condições laborais decentes e dignas, orientadas para o
bem comum e a salvaguarda da criação! É necessário garantir e apoiar a liberdade
das iniciativas empresariais e, ao mesmo tempo, fazer crescer uma renovada responsabilidade
social para que o lucro não seja o único critério-guia.
Nesta perspectiva,
devem ser estimuladas, acolhidas e sustentadas as iniciativas, a todos os níveis,
que solicitam as empresas a respeitar os direitos humanos fundamentais de trabalhadoras
e trabalhadores, sensibilizando nesse sentido não só as instituições, mas também
os consumidores, a sociedade civil e as realidades empresariais. Estas, quanto mais
cientes estão da sua função social, tanto mais se tornam lugares onde se cultiva
a dignidade humana, participando por sua vez na construção da paz. Sobre este aspecto,
é chamada a desempenhar um papel activo a política, promovendo um justo equilíbrio
entre a liberdade económica e a justiça social. E todos aqueles que intervêm neste
campo, a começar pelos trabalhadores e empresários católicos, podem encontrar orientações
seguras na doutrina social da Igreja.
Queridos irmãos
e irmãs! Enquanto procuramos unir os esforços para sair da pandemia, quero renovar
os meus agradecimentos a quantos se empenharam e continuam a dedicar-se, com generosidade
e responsabilidade, para garantir a instrução, a segurança e tutela dos direitos,
fornecer os cuidados médicos, facilitar o encontro entre familiares e doentes, garantir
apoio económico às pessoas necessitadas ou desempregadas. E asseguro, na minha oração,
a lembrança de todas as vítimas e suas famílias.
Aos governantes
e a quantos têm responsabilidades políticas e sociais, aos pastores e aos animadores
das comunidades eclesiais, bem como a todos os homens e mulheres de boa vontade,
faço apelo para caminharmos, juntos, por estas três estradas: o diálogo entre as
gerações, a educação e o trabalho. Com coragem e criatividade. Oxalá sejam cada
vez mais numerosas as pessoas que, sem fazer rumor, com humildade e tenacidade,
se tornam dia a dia artesãs de paz. E que sempre as preceda e acompanhe a bênção
do Deus da paz!
Vaticano, 8
de Dezembro de 2021.
[1] Cf.
Carta enc. Populorum
progressio (26/III/1967), 76-80.
[2] Cf.
Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24/V/2015),
49.
[3] Cf.
Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (03/X/2020),
231.
[8] Francisco,
Exort. ap. pós-sinodal Christus vivit (25/III/2019),
199.
[9] Francisco,
Carta enc. Laudato si’ (24/V/2015),
159.
[12] Cf.
Francisco, Mensagem aos
participantes no IV Fórum de Paris sobre a Paz (11-13/XI/2021).
[13] Cf.
Carta enc. Laudato si’ (24/V/2015),
231; Francisco, Mensagem para o
LIV Dia Mundial da Paz. A cultura do cuidado como percurso de paz (08/XII/2020).
[14] Carta
enc. Fratelli tutti (03/X/2020),
199.
[15] Francisco, Mensagem-vídeo
por ocasião do Encontro «Global Compact on Education. Together to look Beyond» (15/X/2020).
[16] Cf.
Francisco, Mensagem-vídeo
por ocasião do «High Level Virtual Climate Ambition Summit» (13/XII/2020).
[17] Cf.
São João Paulo II, Carta enc. Laborem exercens (14/IX/1981),
18.
[18] Carta
enc. Laudato si’ (24/V/2015),
128.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.