Pasárgada

…Cheguei no momento da criação do mundo e resolvi não existir. Cheguei ao zero-espaço, ao nada-tempo, ao eu coincidente com vós-tudo, e conclui: No meio do nevoeiro é preciso conduzir o barco devagar.


Serei o que fui, logo que deixe de ser o que sou; porque quando fui forçado a ser o que sou, foi porque era o que fui.

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sábado, 26 de abril de 2014

3.3. Descobrindo o inconsciente
Introduzimos nas páginas precedentes formulações essenciais à psicanálise. No tocante à teoria estabelecemos a relação do inconsciente com o recalque. No tocante à técnica estabelecemos o seu ordenamento no campo da palavra. Contudo, essas são formulações que têm longo percurso histórico na psicanálise. Procederemos agora à abordagem do percurso histórico que conduziu Freud à descoberta fundamental da psicanálise – o inconsciente – abordando, na sequência, os desenvolvimentos a que esta descoberta deu lugar.
No período histórico relativo aos Estudos Sobre a Histeria a técnica presente na sugestão hipnótica consistia em tornar consciente o inconsciente. Contudo, não levará muito tempo para que Freud perceba que a sugestão hipnótica mais ocultava do que revelava o inconsciente. O objetivo técnico de tornar consciente o inconsciente faz parte, portanto, do período histórico da psicanálise.
Nos anos de 1893-1900, primórdios da psicanálise, o método da sugestão hipnótica, que objetivava a catarse através da ab-reação, “[...] consistia em focalizar diretamente o momento em que o sintoma se formava [...]” (Freud, 1980 [1914b], p. 193). O manejo técnico, neste período, consistia em “[...] colocar em foco um momento ou problema específico” (p. 193). O objetivo técnico consistia, portanto, essencialmente em se descobrir a causa desencadeante dos sintomas. Freud percebe, neste mesmo período, que havia uma resistência no paciente que se opunha a que as idéias inconscientes se tornassem conscientes, isto é, que havia uma resistência a ser superada e que tornava necessário o recurso à sugestão hipnótica.


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De fato, nestes anos iniciais, a técnica psicanalítica consistia em tornar consciente o inconsciente, compreendido, neste mesmo período, como um estado de segunda consciência onde as lembranças não ab-reagidas se alojavam. Sabemos que essa noção de inconsciente compreendido como estado de dupla consciência ou estado de consciência dividida sofrerá, posteriormente, da parte do próprio Freud severas críticas, ocorrendo o mesmo com o método da sugestão hipnótica. Sublinhemos, portanto, que o método da sugestão hipnótica utilizada na origem da história da psicanálise se apoiava nas elaborações teóricas produzidas naquele período, e que tornar consciente o inconsciente significava, nestes tempos idos, tornar manifesto, conhecido à consciência o fator traumático causal que se encontrava subjacente aos sintomas histéricos. Neste período Freud (1980 [1893-1895a]) relata que “[...] cada sintoma histérico individual desaparecia imediatamente e permanentemente quando conseguíamos evocar, nitidamente, a lembrança do fato que o provocou e despertar a emoção que o acompanhava, e quando o paciente havia descrito aquele fato com maiores detalhes possíveis e traduzirá a emoção em palavras” (p. 47).
Freud observava que os sintomas histéricos desapareciam quando ab-reagidos, isto é, que os sintomas desapareciam quando ocorria a descarga das emoções que estavam ligadas aos acontecimentos traumáticos através do recurso à palavra. Os acontecimentos traumáticos deveriam receber expressão verbal por parte do sujeito, meio através do qual haveria uma catarse. Lacan, no Seminário Livro 7 (1991), assinala que na antiga Grécia, com Hipócrates, o termo catarse traduzia-se habitualmente como “purgação” e estava relacionado à noção de eliminação das tensões, aludindo também a idéia de uma “purificação” (p. 297). No ponto de elaboração teórica em que nos encontramos hoje sabemos que a ab-reação consistia essencialmente em dar nome, simbolizar, pelo recurso à linguagem, um real vivido não integrado ao sistema simbólico do sujeito.
No período em que Freud utilizava-se do método da sugestão hipnótica o objetivo da psicoterapia era o de percorrer os caminhos que haviam conduzido à formação dos sintomas, isto é, partia-se dos sintomas manifestos até chegar-se à localização das causas que o haviam determinado. Encontrar a causa que estava na origem dos sintomas era de capital importância neste período, posto que a lembrança do trauma que não havia sido ab-reagido permanecia no

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aparelho psíquico funcionando como um “corpo estranho”. Nesta época Freud relatou ficar deveras impressionado com o fato de que a lembrança do trauma permanecia, muito tempo após a sua ocorrência, eficaz, vivo enquanto agente etiológico dos sintomas atuais do sujeito.
Freud observava ainda que havia uma desproporção no tempo entre o surgimento dos sintomas e o evento traumático desencadeante, constatando que, por um lado, o sintoma não aparecia logo após a ocorrência do fator traumático e que, por outro, este permanecia presente no psíquico como se fosse uma força atual e em constante atividade. Devemos ainda acrescentar que, neste mesmo período, Freud elabora que uma cena só se torna traumática quando transformada em lembrança a partir de sua evocação por meio da repetição de uma cena análoga. “Neste sentido, o caso Katharina é típico. Em todo caso de análise de histeria baseada em traumas sexuais, verificamos que as impressões do período pré-sexual que não produziram nenhum efeito na criança atingem seu poder traumático num dado posterior como lembrança” (Freud, 1980 [1983-1895c], p. 182).
Alguns pontos de elaboração efetuados por Freud no período de 1893 a 1900 são dignos de nota e merecem, portanto, destaque, posto constituírem-se nos germens da futura teoria do inconsciente e do método da livre associação a ele intimamente relacionado. Neste mesmo período Freud destacava, como fato marcante, que nas neuroses traumáticas não havia um trauma principal isolado, mas, sim, uma série de traumas parciais agrupados, formando um grupo de causas desencadeantes. Freud observou que a conexão entre esses grupos causais e os sintomas dele decorrente obedecia, no mais das vezes, a uma conexão causal de ordem simbólica e não cronológica ou factual. A conexão simbólica determinava que o evento traumático, ou grupos de eventos traumáticos, que despertavam uma emoção penosa, do tipo náusea moral, poderia manifestar-se sob a forma de um sintoma histérico de vômito, por exemplo. Freud observou, portanto, que se estabelecia uma associação por laços de semelhança simbólica entre o sintoma e o que funciona como sua causa precipitante (Freud, 1980 [1893-1895a], p. 45). A noção de conexão simbólica elaborada por Freud neste período evoca a noção lacaniana da metáfora, elaborada com base na lei de condensação, como mecanismo constitutivo dos sintomas neuróticos.

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Evocamos a noção de relações causais simbólicas estabelecendo sua relação com a metáfora no intuito de apontarmos o quanto estava presente, nos primórdios da psicanálise e no espírito de Freud que a originou – ainda que de forma incipiente e embora haja toda uma distância de ordem conceptual e cronológica a ser percorrida –, a noção de relações analógicas de cunho simbólico e de como esta noção, ao longo da obra freudiana e lacaniana, foi ganhando em vigor conceptual.
Freud destaca, portanto, a possibilidade de relações causais de ordem simbólica na etiologia dos sintomas. Outro ponto destacado por Freud, e de não menor importância, refere-se ao fato de que havia, por parte do paciente, uma perda de memória no que concerne a estas relações simbólicas. A lembrança do evento traumático permanecia engramada no psíquico, mas, quanto à sua ação eficaz na produção dos sintomas, o paciente nada relacionava. É a este propósito que Freud chega à conclusão de que “os histéricos sofrem principalmente de reminiscências.” (p. 48). Sabemos hoje o quanto devemos a essa elaboração o conceito, elaborado posteriormente, de fantasma.
Freud observava que os eventos traumáticos, que não haviam sido ab-reagidos no momento oportuno, despertavam emoções penosas que permaneciam vinculadas à lembrança traumática. A cura requeria uma liberação da emoção “estrangulada” por meio da fala, na medida em que, para Freud “[...] a linguagem serve de substituto para a ação” (p. 49). “Cura pela palavra”, assim denominou Ana O, a mais famosa das histéricas, o tratamento pela psicanálise Verificamos, guardadas as devidas proporções, e que de fato não são poucas, de ordem tanto teóricas quanto técnicas, que a catarse em Freud consistia numa purificação pela via liberadora da palavra. De acordo com o que se elaborava neste período, tornar algo consciente consistia precisamente em restabelecer as conexões causais simbólicas perdidas, fato que se torna tão mais marcante quando lembramos que em A Psicoterapia da Histeria (1980 [1893-1895b]) o pressuposto teórico de estados de dupla consciência cede lugar à teoria da defesa implicada no mecanismo do recalque. Como vemos, o conceito de recalque, conceito chave da teoria do inconsciente, tem longo percurso histórico na psicanálise.
Com a introdução da teoria da defesa, Freud não estava recusando a teoria dos “estados hipnóides” presentes na histeria, mas, sim, afirmando-os como estados adquiridos
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por meio da defesa, e já não mais, portanto, como o resultado de uma pré-disposição constitucional herdada. Freud não recusava, neste período, a existência de “estados hipnóides”, mas afirmava que os mesmos dependiam inteiramente do mecanismo psíquico da defesa compreendido como “fator primário”. Freud desejava sustentar um achado: o mecanismo psíquico da defesa posta em jogo no recalque. O recalque foi definido neste período como o processo através do qual determinados grupos de idéias eram dissociados da cadeia consciente, vindo formar uma cadeia inconsciente. A “histeria hipnóide”, juntamente com a teoria que a sustentava, cedeu terreno à nova designação clínica – “a histeria da defesa”. Fato que, aliado a uma série de outros, fez com que Freud já não se mostrasse mais tão otimista quanto aos alcances terapêuticos obtidos através da utilização da técnica da sugestão hipnótica. De todos os modos, a prática da sugestão hipnótica, e a experiência obtida através da mesma por Freud, constituiu-se num valioso subsídio para a posterior elaboração do fenômeno da sugestão implicado na transferência, de tal forma que, em Freud, o manejo da transferência constitui-se no fundamento ético[1] da prática psicanalítica.
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Desenvolvíamos acima que a noção de fios de associações lógicas simbólicas, cuja relação fora esquecida pelo paciente, foi ganhando vulto em relação à noção de eventos traumáticos isolados como causa desencadeante de sintomas. Nesta mesma ocasião, Freud elabora que não havia uma única lembrança, uma única idéia patogênica, mas uma sucessão de “traumas parciais”, formando uma verdadeira concatenação de idéias patogênicas múltiplas.
O material psíquico patogênico, de acordo com Freud, encontrava-se organizado sob a forma de uma estrutura relacional estratificada segundo três ordens diversas. Dito de outra maneira, havia um certo número de lembranças ou de “sequência de pensamentos” (Freud, 1980 [1893-1895b], p. 345) que se dispunha a partir de um núcleo traumático até sua manifestação nos sintomas, onde o núcleo traumático culminava. Em torno deste núcleo, como que envelopando-o, encontrava-se um abundante material disposto de acordo com três ordens de organização.
Havia, em primeiro lugar, uma disposição cronológica sequencial, um ordenamento linear do material mnêmico; uma espécie de arquivo bem ordenado de lembranças dispostas segundo uma ordem cronológica invertida, onde as lembranças mais recentes eram as que surgiam em primeiro lugar, e, no fina,l encontrava-se a lembrança traumática em torno da qual as demais lembranças se encontravam ligadas. Havia, portanto, um arquivo mnêmico que conduzia dos sintomas manifestos até o núcleo traumático Em segundo lugar, havia um arranjo temático, já não mais cronológico. Neste, uma série de temas encontravam-se ligados entre si e ordenados em torno do tema principal numa ordem de estratificação temática na qual em cada estrato encontrava-se uma resistência que aumentava a medida em que se aproximava do núcleo patogênico.
Por fim, a terceira e mais importante forma de organização do material psíquico, uma forma de arranjo que não obedecia à cronologia e nem à semelhança temática. A terceira

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forma de organização do material psíquico ordenava-se de acordo com o “conteúdo do pensamento”, no qual a concatenação das idéias ocorre de acordo com certos fios lógicos que as ligavam entre si. Essa forma de organização, diversamente da ordem temática, não era concêntrica, mas sim em forma de “ziguezague”. Uma forma de associação segundo uma certa ordem lógica que evoca a imagem de uma ramificação arbórea.
Essas formas de estratificações do material psíquico conduziram Freud a conclusão de que “[...] é notável como muitas vezes um sintoma é determinado de várias maneiras, é ‘superdeterminado’” (p. 347).
Na Psicologia do Ego o conceito de sobredeterminação foi compreendido como constituindo a multiplicidade de fatores implicados no processo de maturação e de desenvolvimento dos comportamentos rumo à adaptação. A sobredeterminação, nesta teoria, refere-se ao fato de que cada conduta levada a cabo pelo ego é “multideterminada”, isto é, ao fato de que são vários os fatores determinantes que participam das ações efetuadas pelo ego, de modo que o comportamento humano pode ser explicado à luz de seus fatores de determinações múltiplas: a determinação dos instintos, o papel do meio ambiente físico e social; as leis que determinam os processos de funcionamento básico do organismo, o papel desempenhado pelas “experiências acumuladas” (Rapaport, 1982, p. 31).
Hartmann (1969), referindo-se ao fato de que a experiência analítica demonstrou que a conduta humana é superdeterminada, foi levado a identificar o conceito de sobredeterminação freudiana ao conceito de “princípio de função múltipla” (Hartmann, 1969, p. 48). Com o princípio de função múltipla, Hartmann desenvolve a teoria de que cada função ativada no ego é o resultado de complexos processos desenvolvidos em diferentes estratos da personalidade e que fornecem como resultado final uma variedade de tipos de ações levadas a efeito pelo ego.
Dizendo de outro modo, de acordo com Hartmann, a diversidade de ações de que é capaz o ego deve-se ao princípio de função múltipla. Para Hartmann, toda ação é conduzida e dirigida voluntariamente pelo ego consciente, isto é, toda ação obedece ao comando do ego, contudo, as características imprimidas às ações são co-determinadas por fatores que se

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desenvolvem no id, no superego, na realidade externa, assim como também pelo número de funções mobilizadas pelo ego em cada ação. Esta multiplicidade de fatores envolvidos em cada ação levada a efeito pelo ego é responsável pela diversidade das condutas.
Para Lacan, a sobredeterminação concerne às múltiplas determinações simbólicas aos quais o sujeito está, enquanto sujeito do inconsciente, referido. A sobredeterminação responde, pois, em Lacan, ao princípio segundo o qual o sujeito é um efeito do significante e de que este é regido pelas leis da lógica combinatória da metonímia e da metáfora.
Retomemos o que vínhamos desenvolvendo a propósito da teoria da defesa elaborada por Freud no período dos Estudos Sobre a Histeria. Neste período, ao qual já fizemos referência, Freud não se encontrava muito entusiasmado com o método da sugestão hipnótica, passando a fazer uso de uma técnica denominada de “método coercitivo”. Esse método consistia em fazer pressão com as mãos sobre a cabeça do paciente, insistindo para que ele rememorasse os fatos traumáticos. Através deste método, Freud constata que com insistência surgia uma lembrança, e que, reforçando-se a insistência, surgia uma nova lembrança em estreita conexão com a primeira, e assim sucessivamente. Freud constatava ainda que o surgimento das lembranças dependia de uma certa quantidade de esforço terapêutico, constatando, deste modo, que havia uma força que se opunha à rememoração, Freud a denominou de resistência. A resistência era a força que se opunha aos esforços do tratamento, sendo a mesma força que de início se havia oposto à penetração da idéia patogênica na consciência, ou seja, que se encontrava na base do recalque e que, portanto, “devia ser a mesma força psíquica que desempenhava um papel na geração da histeria e que impedia na ocasião que a idéia patogênica se tornasse consciente” (Freud, 1980 [1893-1895b], p. 325).
O trabalho clínico com pacientes neuróticos conduziu Freud a desenvolver a teoria da divisão psíquica, descrita sob a forma de um conflito psíquico determinado pelo antagonismo do eu (moi) em relação ao grupo de idéias a ele “antitéticas”. As idéias “irreconciliáveis” com o eu, são, pelo processo de recalque, expulsas de seu campo, vindo a formar um grupo de idéias em relação as quais o eu experimenta estranhamento, razão pela qual ele defende-se contra as mesmas, recusando-se a assumi-las como lhe pertencendo. Freud constata que havia uma “aversão”, “repulsão” por parte do eu em relação às idéias contrárias a sua precária
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consistência imaginária. A incompatibilidade do eu em relação a tais idéias provoca uma força que se colocava contra a sua penetração na consciência. “O ego do paciente fora abordado por uma idéia que se mostrou incompatível, que provocou por parte do ego uma força de repulsão com a finalidade de defender-se da idéia incompatível” (Freud, 1980 [1893-1895b], p. 325).
O processo por meio do qual o eu se divorcia das idéias incompatíveis, expulsando-as de seu campo, conduz ao processo de divisão psíquica. As idéias de caráter aflitivo ao eu passam, desde então, a formar um grupo associativo separado da consciência. O material patogênico expulso passa a organizar-se segundo uma lógica associativa de coerência diversa da organização do eu, e dele independente. Com efeito, por meio do recalque “a idéia não é aniquilada por tal repúdio, mas simplesmente reprimida para o inconsciente. [...] o que se desejava era eliminar uma idéia, como se jamais ela tivesse surgido, mas tudo o que se conseguia fazer é isola-la psiquicamente” (Freud, 1980 [1892-1893], p. 171).
O abandono do método hipnótico conduziu à importante descoberta de forças resistenciais atuantes no paciente. A hipnose ocultava as resistências do eu, razão pela qual Freud se torna ainda mais cético quanto à eficácia terapêutica da sugestão hipnótica. Vemos, neste período inicial da psicanálise, a presença de muitas e de importantes idéias que se constituíram em ponto de partida para as futuras linhas de desenvolvimento da teoria do inconsciente e do método da livre associação. Encontramo-nos, neste período, diante de um momento incipiente do desenvolvimento da futura teoria do inconsciente, tal como se encontra elaborada na primeira tópica freudiana. Passo a passo, a noção de fatos reais traumáticos, como causa subjacente aos sintomas, cede lugar à teoria do fantasma inconsciente, permitindo a Freud elaborar que as associações que unem as representações inconscientes entre si ocorrem à revelia da vontade do eu e que as articulações estabelecidas pelo inconsciente não se perdem pela ação do recalcamento. Essas noções conceptuais são atuais e se encontram presentes em germe neste período histórico dos Estudos sobre a Histeria. Sabemos hoje, pautados pelos desenvolvimentos teóricos posteriores, o que a noção de lembranças traumáticas deve à noção de representações fantasmáticas. Dizendo de outro modo, sabemos hoje sobre o caráter fantasmático destas lembranças. Sabemos também que a

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noção de um trauma insuportável, a presença de um núcleo traumático primário, causa originária dos sintomas, responde à noção de pulsão e de sua inscrição no registro psíquico, isto é, à noção de “[...] ‘recalque primário’ da primeira tópica, ‘isso’ freudiano da segunda, ‘Real’ lacaniano” (Pommier, 1990, p. 25), o que nos conduz, por seu turno, à noção de uma causa primária vazia como núcleo no qual se enraíza toda manifestação sintomática. O que é irreconciliável, traumático ao “ego coerente”, e contra o qual ele se defende, é o desejo indeterminado do Outro e a montagem fantasmática que dele se deriva e que serve ao propósito de encobri-lo.
No inconsciente, onde está a causa? Sabemos onde ela está: um e outro pensamento não fazem senão aproximá-lo marcando seu caráter inatingível. A causa no inconsciente é o que é aproximado e falho. O que é que faz causar o inconsciente? É o que Freud chamava de seu famoso umbigo do sonho: isso quer dizer que é possível sempre tentar chegar ao âmago da análise de um sonho, mas jamais se chegará ao âmago, quaisquer que sejam as interpretações tremendamente notáveis que se faça (Melman, 1994, p. 31).
É verdade que num período imediatamente anterior à elaboração da teoria da defesa as noções teóricas avançadas a propósito da divisão psíquica eram colocadas em termos de “estados de cisão da consciência”, postulando-se que havia uma “consciência normal” e uma“segunda consciência”, onde se encontravam as lembranças de caráter penoso. É verdade também que a técnica consistia em torná-las conscientes, ou seja, integrá-las à cadeia de associações conscientes, daí o recurso à hipnose ou ao método coercitivo. De fato, isto conduz à noção de que o inconsciente, aqui entendido como um estado de cisão da própria consciência, deveria ser integrado à “consciência normal”. Entretanto, a noção de que a consciência poderia dividir-se a si própria, gerando como consequência dois estados de consciência, na qual uma consciência nada poderia saber sobre a outra, é de fato uma concepção filosófica à qual Freud não apenas não se detém por muito tempo, mas em relação a qual lançará severas críticas posteriormente. Assim é que, já em 1892-1893, no texto Um Caso de Cura Pelo Hipnotismo Freud propõe como modelo da divisão psíquica a noção de “vontade e contra-vontade”, apontando que para além da vontade consciente manifestada pelo paciente existe algo que não apenas se contrapõe a mesma mas que, de forma mais determinante, se apresenta como soberana sobre a vontade. A contra-vontade é, neste período, concebida por Freud como soberana no psíquico, impondo-se sob a forma de manifestações sintomáticas. Contra-vontade é o nome dado por Freud, em 1892, ao desejo inconsciente, tal

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como o compreendemos hoje. Logo em seguida ao modelo da divisão psíquica sob a forma de “vontade e contra-vontade”, Freud elabora e propõe um novo modelo sobre o processo de divisão psíquica: o modelo da incompatibilidade do eu com certas idéias de caráter penoso, ou seja, o modelo da dissociação psíquica presente entre o eu e um grupo de ideais incompatíveis e inaceitáveis por este eu.
Vimos como imediatamente após estas elaborações conceituais, ou mesmo a elas paralelas, tem lugar a noção de associações regidas por laços de coerência lógica simbólicos. O material esquecido vai sendo relacionado, de forma cada vez mais sistemática, à concepção de que o que de fato o paciente esquecia não eram os eventos penosos, mas, sim os fios de concatenação lógica que se estabeleciam entre os sintomas manifestos e o núcleo traumático, e que formavam uma verdadeira cadeia associativa de pensamentos.
Portanto, não se trata de rememoração de lembranças inconscientes por parte do analisando, mas sim deste abandonar-se, deixando-se conduzir por estes fios lógicos que ligam as representações inconscientes entre si. É do inconsciente concebido como um processo dinâmico articulatório que o método da livre associação se sustenta. A noção de cadeias de representações de desejo inconsciente retira o inconsciente freudiano do marco de uma concepção psicológica substancialista que conduz a identificá-lo a conteúdos afetivos, emoções e sentimentos. Retira igualmente o inconsciente da noção biológica de “tendências instintuais primitivas” (Hartmann, 1969, p 45) que, permanecendo à margem do processo de desenvolvimento, amadurecimento e aprendizagem, manifestar-se-iam como tendências antisociais que escapam ao processo de socialização, ajuste e adaptação do eu. Este foi o modo pelo qual o inconsciente, para os teóricos do ego, ficou identificado ao isso e este, por sua vez, identificado ao irracional desadaptado, e sobre o qual convém pôr as rédeas da via corretora do princípio da realidade.
Mas o que vem a ser o princípio da realidade para os psicólogos do ego? “Trata-se da realidade cotidiana, imediata, social? Do conformismo às categorias estabelecidas, aos costumes admitidos? Da realidade descoberta pela ciência?” (Lacan, 1991, p. 32). Na Psicologia do Ego todas estas questões convergem, recebendo formulação positiva. O princípio de realidade, definido como princípio de adaptação, deve ser aceito pelo indivíduo
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uma vez que se traduz como guia para todo bom comportamento. Quanto a nós, partícipes do ponto de vista freudiano, acreditamos que a vida em grupo, uma das fontes de mal-estar assinalada por Freud, pode cobrar ao sujeito um tributo alto demais: o de render-se aos “ideais de multidão” (Freud, 1980 [1930], p. [81]). Os ideais sociais coletivos impõem-se ao homem como um conjunto de valores, crenças e ordenamentos morais que, ao se apresentarem como portadores de um saber sobre a verdade, são colocados na posição de servir de guias para a vida, comandando, deste modo, processos e fenômenos específicos de alienação ao imaginário social dominante. O fascínio que estes ideais coletivos exercem sobre cada sujeito que a ele se submete deriva-se do fato de que “[...] sua aceitação da neurose universal poupa-lhes o trabalho de elaborar uma neurose pessoal” (Freud, 1980 [1927], p. 58), preço que o neurótico, pela sua “servidão mental”, parece nunca achar alto demais, na medida em que lhe permite permanecer no desconhecimento de seu próprio desejo, Ao nosso ver, para a Psicologia do Ego, uma ação é tida como adaptada na medida em que o sujeito abre mão de seu desejo inconsciente, em nome do guia de adaptação suposto presente no princípio de realidade, definido, pela referida escola, como princípio de adaptação. Contudo, onde o indivíduo encontra o modelo para conduzir-se adequadamente em relação à realidade? Onde encontra a certeza de que está processando a leitura correta da realidade circundante? De acordo com os teóricos do ego encontra-o no modelo identificatório presente na figura do analista, talhado como medida padrão de todo bom ajuste. Ao nosso ver, cabe aqui a advertência de Freud de que “por mais que um analista possa ficar tentado a transformar-se num professor, modelo e ideal para outras pessoas, e criar homens à sua própria imagem e semelhança, não deve esquecer que esta não é a sua tarefa no relacionamento analítico e que, na verdade, será desleal a essa tarefa se permitir ser levado por suas inclinações” (Freud 1980 [ 1940a], p. 202).
A questão: existe uma realidade idêntica para todos? recebe na Psicologia do Ego formulação afirmativa, conduzindo a conclusão de que a lei a qual convém seguir e pautar-se, tomando-a como guia mestre, são as leis das normas e regras morais sociais convencionais e não a Lei do desejo inconsciente. O que não deixa de eximir, na ocasião, o sujeito da dor de existir, ainda que ao preço de abrir mão daquilo que, por habitá-lo, encontra-se no fundamento que o sustenta enquanto sujeito – o desejo inconsciente. Foi justamente a sugestão, concebida

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como fenômeno amoroso que dispõe o analisando a uma posição de servidão a um lugar suposto saber, passível de vir encarnar-se na pessoa do analista, que Freud apontou os riscos implicados em todo tratamento que se paute no recurso à sugestão, definida como técnica de convencimento. Ocasião propícia para lembrarmos que a idéia, o conceito que um analista faz do que seja o inconsciente, a direção do tratamento, a ética no qual ele deve pautar-se e, por fim, o que ele entende por finitude de uma análise, dirigirá seus atos analíticos.
Já nos referimos anteriormente à problemática de tornar consciente o inconsciente. Que devemos entender por tornar consciente o inconsciente? Quais são os limites e os alcances que podemos depreender desta expressão frequente na obra freudiana? Tratar-se-ia de fazer uma compreensão psicológica da mesma, e que consistiria em tornar sabido à consciência o saber-insabido do inconsciente? Seria o caso de supor como possível, viável e até mesmo desejável um progressivo apossamento, e consequente conhecimento, pela consciência do que é inconsciente?
A questão de como algo inconsciente se torna consciente não nos parece de modo algum banal, não somente devido ao fato de que está sujeita a equívocos e mal entendidos, mas, sobretudo, porque no texto metapsicológico O Inconsciente (1915a), texto canônico sobre o tema do inconsciente, o próprio Freud dedica uma particular atenção a este tema. A questão levantada por Freud nesse texto é quanto ao modo em que se dá a transposição, isto é, a passagem das idéias do sistema inconsciente para o sistema consciente. Questão levantada a propósito de razões de ordem tópica. Nesta ocasião Freud aventa três hipóteses.
A primeira hipótese, dita tópica, aventa sobre a possibilidade de um duplo registro dos materiais mnêmicos inconscientes. Essa hipótese é proposta nos seguintes termos por Freud: quando uma idéia (no sentido de uma representação) passa de um registro inconsciente para um registro consciente, com a mudança de localização tópica aí operada, a idéia passa a existir em dois lugares diversos, isto é, a idéia continua a ter existência psíquica inconsciente, acrescida agora de uma existência paralela no sistema consciente? (Freud, 1989, [1915a], p. 200). Com relação a esta hipótese Freud levanta a objeção de que quando comunicamos ao paciente o conteúdo de um material submetido ao processo de recalcamento podemos dizer que este material passa a ter existência em dois lugares psíquicos diversos. Contudo, o que se
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constata clinicamente é que com este procedimento não produzimos qualquer espécie de alteração psíquica, não removemos o recalque e nem anulamos os seus efeitos. A este propósito Freud (1980 [1910b]) assevera que
Se o conhecimento acerca do inconsciente fosse tão importante para o paciente, como as pessoas sem experiência de psicanálise imaginam, ouvir conferências ou ler livros seria suficiente para curá-los. Tais medidas, porém, têm tanta influência sobre os sintomas da doença nervosa, como a distribuição de cardápios numa época de escassez de víveres tem sobre a fome. A analogia vai mesmo além de sua aplicação imediata; pois, informar ao paciente sobre seu inconsciente redunda, em regra, numa intensificação do conflito nele e numa exacerbação de seus distúrbios” ( p. 211).
Estamos devidamente advertidos do fato de que revelar ao paciente sobre o seu inconsciente recalcado resulta, no melhor dos casos, numa medida inócua, no pior e no mais frequente, no fortalecimento da barreira levantada pela resistência. Tornar consciente o inconsciente, por meio de uma técnica que consista em comunicar o recalcado, tornando-o conhecido à consciência, não faz parte pois do manejo técnico psicanalítico, que conduz ao cumprimento da regra fundamental da livre associação. Sabemos, pelo legado de ensinamentos que Freud deixou, que um manejo técnico assim conduzido não é senão manifestação de “uma ambição terapêutica” (Freud, 1980 [1912a], p.153) por parte do analista, e que Freud não vacila em considerar como o “[...] sentimento mais perigoso para um psicanalista” (p. 153). Ao proceder deste modo, o analista não estará fazendo nada mais do que inculcar no paciente as suas próprias aspirações e desejos, fazendo um uso abusivo do laço transferencial e colocando-o ao serviço da sugestão. A via técnica de tornar consciente o inconsciente, pautando-se no pressuposto da transmissão de um conhecimento está, por razões de eficácia técnica e de ordem ética, fechada.
A segunda hipótese, denominada por Freud de funcional, aventa a possibilidade de que a passagem de uma idéia inconsciente para o consciente implicaria numa mudança de estado da mesma. Essa hipótese é abandona por Freud que a considerou a mais grosseira das três. A terceira hipótese formulada por Freud põe um ponto de basta em torno das celeumas travadas em torno da questão de como algo inconsciente se faz consciente. Ela consiste, primeiramente, numa recusa das duas hipóteses anteriores. A passagem do inconsciente para o consciente não se dá por meio de uma mudança de registro, tampouco por diferenças produzidas no estado funcional. A terceira hipótese formulada por Freud introduz a distinção
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entre “representação de coisa” (Sachvorstellung) e “representação de palavra” (Wortvorstellung). Hipótese segundo a qual no inconsciente subsistem as “representações de coisa” sem a “representação de palavra” que lhe corresponde. Doravante, ligar a “representação de coisa” a uma “representação de palavra” não é garantia, mas, possibilidade de que o inconsciente alcance à consciência. “Como uma coisa se torna consciente? Seria assim mais vantajosamente enunciada: Como uma coisa se torna pré-consciente? E a resposta seria: Vinculando-se às representações verbais que lhe são correspondentes” (Freud, 1980 [1923], p. 33).
No Seminário livro 7 (1991), Lacan adianta que a oposição Wortvorstellung e Sachvorstellung responde em Freud às dificuldades e impasses por ele encontradas no tocante ao estado da linguística de sua época, e de que esta oposição, introduzida por Freud, mostra admiravelmente o quanto ele compreendeu bem a distinção entre a linguagem como função, isto é, do papel que a linguagem cumpre no nível do pré-consciente, da linguagem enquanto estrutura. Lacan sublinha ainda que Freud fala de Sachvorstellung e não de Dingvorstellung e de que, portanto não é em vão que “[...] as Sachvorstellung estejam ligadas a Wortvorstellung, mostrando-nos assim que há uma relação entre coisa e palavra” (p. 60).
A tradução em palavras é o recurso onde repousa a possibilidade de tornar o inconsciente acessível à consciência. Freud, quando distingue no inconsciente a representação de coisa e de palavra, está nos assinalando uma dimensão da representação inconsciente - a de coisa - que jamais chega à consciência, a não ser pelo seu enlace a uma representação de palavra. Se quiséssemos precisar de modo rigoroso o que está contido no inconsciente diríamos então: as representações simbólicas de coisas (Sachvorstellung) produzidas no campo da palavra. E, se quiséssemos, também de modo rigoroso, definir em que consiste tornar consciente o inconsciente, diríamos, de acordo com Kehl, (2002), que “a passagem do inconsciente à consciência só é possível por intermédio das palavras, podemos deduzir que nessa passagem algo se perde, algo da verdade das representações de coisa as ‘primeiras e verdadeiras cargas de objeto’” (p. 123). “[...] estamos em condições de declarar precisamente o que é que a repressão nega à apresentação rejeitada nas neuroses de transferência: o que ela nega à apresentação é a tradução em palavras que permanece ligada ao objeto” (Freud, 1980

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[1915a], p. 230). De acordo com elaborações efetuadas por Freud, tornar consciente o inconsciente consiste num ato de reconhecimento e elaboração do material submetido ao processo de recalcamento, e de que isso ocorre através do ato da fala. Falando o sujeito encontra recursos na palavra para elaborar o material psíquico inconsciente, integrando-o ao seu sistema simbólico. Cremos ter respondido a questão de como se faz possível o inconsciente tornar-se consciente: pelo recurso à tradução em palavras. As palavras, e somente elas, permitem a simbolização de um real vivido, causa permanente de angústia. Daí que o desejo eticamente legítimo do analista é de que o analisante fale. De que ele associe livremente. Mas, poderíamos perguntar, livre de quê? “Livre da pregnâcia imaginária do excesso de sentido. Livre do subjugamento do sujeito ao saber imaginário, dos excessos de certeza nos quais o sujeito se sustenta como ser e que o fazem adoecer” (Baratto, 1988, p. 77).



[1] Podemos dar como definição geral que a ética consiste no conjunto de princípios que regem as ações humanas. Neste sentido, pode-se afirmar que a ética encontra-se presente num vasto número de campos teóricos, epistemológicos e de práticas. Entretanto, pode-se afirmar também que a questão relativa à ética tem na psicanálise uma abordagem específica. Na psicanálise encontramos uma concepção particular sobre a ética  que ligaremos à especificidade de sua concepção de sujeito. A “ética tradicional” (Lacan, 1998, p. 776) se fundamenta e se dirige ao ser, preconizando uma série de princípios e de leis que, ao serem colocadas como referências para as ações humanas, fazem com que esta se dirija ao bem. Para a psicanálise, contudo, a ética não se endereça ao ser, mas a falta a ser fundada no desejo e na castração A obra freudiana inaugura uma ética própria da psicanálise e que se encontra intimamente ligada à noção de sujeito do inconsciente. O sujeito do inconsciente é determinado e, como tal, assujeitado à lei do desejo inconsciente. Tal concepção de sujeito coloca-se nas antípodas de uma concepção que defende a autonomia do indivíduo. Com efeito, a “[...] a marca do significante sobre o falante” (Larousse, s.d., p. 42) faz dele um sujeito submetido às determinações do desejo inconsciente e a castração a qual ele dá lugar. Deste modo, no percurso de uma análise o sujeito é conduzido a confrontar-se com a lei do desejo e com a castração que ele porta. De acordo com Birman (1955), “[...] a análise é a possibilidade de produção de um estilo que se calca na lei da proibição do incesto e na experiência de castração...” (p. 29). Para a psicanálise freudiana não se trata, tal como na Psicologia do Ego, de harmonizar o sujeito com as leis morais sociais, mas, sim de ordenar o sujeito na lei do desejo. Goldemberg (1944), aponta que “[...] a moral seria relativa aos ideais que constituem o eu, enquanto que a ética diria respeito às relações do sujeito com seu desejo inconsciente” (p. 11).
Por outro lado, a ética da psicanálise, no que tange ao analista, consiste em dar voz e escuta ao sujeito do inconsciente. Os princípios técnicos postos em curso na direção do tratamento são princípios éticos que “[...] visam dar lugar à palavra do sujeito do inconsciente e, como não há inconsciente fora do laço transferencial, o manejo da transferência situa-se no âmbito da ética, visando a livre associação” (Baratto, 201, p. 52). Deste modo, a ética do psicanalista consiste em implicar, pelo recurso à palavra, o sujeito com seu desejo, fazendo tombar a ilusão de autonomia do eu. Há, portanto, “[..] uma ética da psicanálise, no sentido de uma ética profissional [..]. Esta abordagem diz respeito à proteção dos ‘clientes’ submetidos ao tratamento psicanalítico contra eventuais abusos cometidos pelos analistas em sua posição privilegiada em função do amor de transferência” ( Kehl, 202, p. 7), e há uma ética que se deriva do percurso de uma análise por parte do analisando. A sustentação de uma posição ética , fundada no desejo, tanto por parte do analista quanto por parte do analisando passa, por seu turno, pelas vicissitudes particulares de uma análise.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

3.2. O encobrimento da descoberta freudiana

Inconsciente é o nome da ferida introduzida no narcisismo do homem. É o nome dado ao sujeito, tal como formulado no campo psicanalítico originado em Freud. O inconsciente é o lugar onde o pensamento se formula e se institui como pensamento organizado e organizador do mundo e da subjetividade. Entretanto, um desconhecimento completo da concepção freudiana sobre o inconsciente conduziu a uma verdadeira “vulgarização” (Lacan, 1978c, p. 192) e, até mesmo, a mais feroz e completa “deteriorização do discurso analítico” (Lacan,
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1978a, p. 109)”. Lacan não transige quanto aos termos que evoca para designar aqueles que, num repúdio ao dizer de Freud e ao que sua descoberta representa, vieram, em nome de uma nova teoria, “escamotear” (Lacan, 1985, p. 23) o campo fundado por Freud. A Psicologia do Ego produziu um escamoteamento da importância conferida por Freud aos processos inconscientes. O inconsciente foi desalojado em favor de um reducionismo que tomou a forma de supremacia conferida ao ego consciente. Os psicólogos do ego distanciaram-se do campo propriamente psicanalítico, introduzindo versões sobre o inconsciente que de modo algum se encontram presentes no pensamento de Freud. O termo inconsciente tem uma elaboração específica em Freud, que o diferencia de outras formulações a respeito do mesmo tema. Os psicólogos do ego apossaram-se dos termos técnicos psicanalíticos com a ilusão de estarem, deste modo, convergindo, sendo rigorosos e coerentes conceitualmente com os mesmos. Contudo, “[...] se a psicanálise não for os conceitos nos quais ela se formula e se transmite, ela não é a psicanálise, é outra coisa, mas então é preciso dizê-lo” (Lacan, 1985, p. 23).
O distanciamento produzido com relação ao conceito freudiano de inconsciente pelos teóricos da Psicologia do Ego redundou numa regressão a definições envelhecidas sobre o mesmo. Paralela e consequentemente, retrocederam a concepções pré-psicanalíticas sobre a subjetividade, aquelas que faziam da consciência o eixo ordenador central da personalidade, e que Freud veio justamente romper. De fato, a descoberta freudiana consistiu em colocar-se à contramão em relação à ordem vigente que fazia da consciência o centro totalizador do psíquico. A Psicologia do Ego apropriou-se da psicanálise tão somente para “[...] tornar a fusionar a psicanálise na psicologia geral” (id). Com efeito, para Rapaport (1982), “[...] no início da década de trinta, a influência da psicanálise sob o novo prumo que lhe deu a Psicologia Psicanalítica do Ego se expandiu para abranger toda a psicologia” (p. 21).
Por não poderem efetuar uma compreensão efetiva sobre o inconsciente freudiano os psicólogos do ego fizeram circular falsas noções. O modo mais corrente (posto que não único) que tomou forma o inconsciente no interior das teses da Psicologia do Ego consistiu em assimilá-lo as ditas tendências arcaicas primitivas. “[...] A idéia de que o inconsciente não passa de sede dos instintos” (Lacan, 1978b, p. 225) os conduziu a enraizar o inconsciente no

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real orgânico, assimilando-o às ditas tendências irracionais caóticas. Entreviram que em Freud o isso é uma instância inconsciente (e para eles a sua totalidade), para logo em seguida reduzirem-no a tendências biológicas primitivas. Para Hartmann (1969), o inconsciente corresponde aos “impulsos instintivos irracionais” (p. 54) não submetidos ainda ao processo de adaptação. Ainda aqui devendo ser compreendido, segundo o sentido conferido ao Wo es War, soll ich Werden freudiano por esta corrente psicológica, de um futuro domínio que as funções egóicas de adaptação devem vir exercer sobre o irracional. O isso, concebido como primitivo e sede dos impulsos irracionais, no decurso do desenvolvimento deverá ser dominado pela fortaleza egóica – tarefa adaptacionista. O ego deve desalojar o isso e ocupar O seu lugar, transformando-se em senhor absoluto no reino do psíquico. Em Freud, (1980 [1933]), “onde estava o id, ali estará o eu é uma obra de cultura – não diferente da drenagem do Zuidezee” (p. 102). Lacan (1978c), procedendo à crítica a estes adoradores do ego sustentou que “[...] a teoria do ego não passa de um enorme contra-senso: o retorno ao que a própria psicologia intuitiva vomitou” (p. 203).
Para os teóricos do ego foi absolutamente inalcançável supor um lugar de ordem e de organização diferente da consciência. Isto os conduziu a lançar o inconsciente no abismo do real orgânico que, a nosso ver, carece de predicação. O real orgânico, estando aquém do psíquico, nele só ingressando por delegação, carece do atributo de ser, quer consciente, quer inconsciente. Foi igualmente no marco de uma concepção biológica que a função do pensar foi elaborada pela escola norte-americana de psicanálise. Para Hartmann (1969), o pensamento é uma função biológica (p. 65). Procederemos à elaboração de uma breve síntese sobre esse tema no intuito de apontar a versão cognitivista que os psicólogos do ego imprimiram aos processos de pensamento, permitindo ao leitor parâmetros para o estabelecimento da distância conceptual que a mesma guarda em relação à psicanálise.
De acordo com Hartmann (1962), “aprender a pensar e aprender em geral são funções biológicas independentes que existem paralelas, e, em parte, independentes dos impulsos instintivos e das defesas” (p. 25). A atividade inteligente consciente é uma das funções mais precoces e mais necessárias ao ego em sua tentativa de controlar as atividades “impulsivas instintivas”, constituindo-se num componente indispensável ao processo de adaptação do

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indivíduo. O pensamento é considerado por ele como uma atividade intelectual, um fator de inteligência e uma função primária do ego, cuja significação de utilidade biológica, no sentido de conservação do indivíduo, é inegável. Razão pela qual há “[...] estreita relação da função do pensamento mais elevado com as tarefas de adaptação, síntese e diferenciação” (p. 86).
O pensamento humano se especifica, para a referida escola, por ser pensamento inteligente, constituindo-se num processo altamente especializado no estabelecimento de relações causais e “[...] no estabelecimento de relações entre os meios e os fins” (p. 87). É esta bem equacionada proporção entre os meios disponíveis e as metas a serem atingidas o que permitiria às ações humanas o seu quinhão de ação racionalmente planejada. A ação, planejada e dirigida, é uma especialidade do ego na sua tarefa de adaptação, sendo no terreno da relação do pensamento com a ação que se esclarece “a função biológica do pensamento” (p. 89).
Na medida em que pensar racionalmente “[...] significa logicamente pensar de modo correto” (Hartmann, 1969, p. 55), e pensar de modo correto significa efetuar corretamente o conhecimento do mundo externo real, o que por sua vez implica na possibilidade de seu controle, para Hartmann, o protótipo do pensamento organizado é aquele que se produz no pensamento científico. O pensamento científico racional, produto do conhecimento, é aquele que se formula com base na apreensão da realidade (Hartmann, 1962, p. 92). Por um lado, a função intelectual do pensamento é o recurso de que dispõe o homem, dotado potencialmente de juízo, razão, compreensão e discernimento, para realizar o conhecimento objetivo sobre o real. Por outro, e não de menor importância, a função intelectual é o recurso que possibilita a transparência e a apreensão espontânea do eu pela consciência. O pensamento reflete na consciência o eu, de modo que para Hartmann (1962) “o objeto predominante do pensamento é o sujeito mesmo” (p. 91). Fica assim firmado, com a Psicologia do Ego, que “a psicologia do pensar é principalmente psicologia do ego” (Rapaport, 1962, p. 97), e que, portanto, o homem pensa com seu eu. Entretanto, “Freud nos diz – o sujeito não é a sua inteligência, não está no mesmo eixo, é excêntrico” (Lacan, 1985, p. 16).
Acreditamos que a diferença de posicionamento entre uma teoria empirista da associação e a teoria freudiana salta aos olhos. Em Freud a ênfase recai na estrutura simbólica
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que caracteriza o inconsciente e no aspecto formal pelo qual seus elementos se combinam. No empirismo a ênfase é posta no conhecimento contínuo e crescente que se produz com base na experiência sensível.
O empirismo é uma teoria epistemológica que tem por princípio que o conhecimento depende da experiência que o indivíduo tem com o mundo exterior. Para os empiristas “o conhecimento é obtido por soma e associação das sensações na percepção e tal soma e associação dependem da frequência, da repetição e da sucessão dos estímulos externos e de nossos hábitos.” (Chaui, 1996, p. 120). Acreditamos também, de acordo com Lacan, que neste particular, como em outros tantos, “encontra-se aí a união onde a psicanálise se dobra em direção a um behaviorismo cada vez mais dominante em suas ‘tendências atuais’” (1978b, p 221). A diferença que vai de um a outro posicionamento – a psicanálise e a Psicologia do Ego –, é a de um que se fundamenta nos pensamentos inconsciente, de outro, que se fundamenta nos pensamentos conscientes. Como era de se esperar as alterações produzidas no campo teórico da psicanálise pela Psicologia do Ego conduziram a que sua técnica fosse profunda e gravemente alterada, uma vez que é verdade que teoria e técnica são inseparáveis. Em Função e Campo da Fala e da Linguagem, Lacan (1978c) se propôs a “[...] tarefa de falar da fala” (p. 102). Seu objetivo era de (re)assentar os princípios sob os quais Freud havia, desde sempre, ordenado a experiência psicanalítica em torno da fala do sujeito, uma vez que “a técnica da livre associação aponta ao fato de que a psicanálise só tem um meio – a fala do paciente” (p. 112). Lacan avança a tese fundamental, e que se constituirá no traço distintivo de sua obra, da importância da função da palavra (dimensão subjetiva singular) e da linguagem em psicanálise (determinação simbólica universal), apontando que o desvio praticado na psicanálise, pela segunda e terceira geração de analistas, com relação ao inconsciente conduziu ao desvio de sua prática, no que esta se ordena em torno da função da fala e da linguagem.
A obra de Lacan consistiu no esforço em sistematizar e estabelecer a íntima e estreita relação do inconsciente com a estrutura da linguagem, demonstrando que em Freud não se trata de outra coisa no que concerne ao inconsciente: linguagem pictórica do sonho, linguagem simbólica do sintoma. O sintoma é uma formação do inconsciente produzida por

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deslocamento e condensação, constituindo-se essencialmente em palavra amordaçada pela ação do recalque e que conduz à conclusão de que “somos doentes de palavras, partimos daí e não de afetos protopáticos. e eu não posso deixar de lembrar [...] que o desafio da psicanálise é desfazer pela palavra o que foi feito pela palavra” (Czemak, 1991, p. 43). Afirmar que o inconsciente é estruturado como uma linguagem é afirmar que ele está submetido a determinadas leis que ordenam sua estrutura e sua organização, e de que o inconsciente forma, portanto, um texto lógico e coerente, do mesmo modo que a linguagem. Razão pela qual Lacan pode chegar a dizer que as leis da metáfora e da metonímia, presentes na linguagem, são homólogas às leis do deslocamento e da condensação. O inconsciente tem, em sua estrutura e modo de funcionamento, uma estrutura comparável à da linguagem. A homologação do eu à consciência por toda uma geração de analistas que sucedeu Freud foi o maior equívoco efetuado em relação à psicanálise, convertendo-se numa rota de desvio cujos rumores se fazem ainda ouvir em nossos dias através das correntes psicanalíticas derivadas da Psicologia do Ego. Como consequência inevitável dessa homologação o conceito e mesmo a menção do termo inconsciente foi, a pouco e pouco, sendo abolido do arcabouço conceptual e técnico da Psicologia do Ego. Quando o inconsciente é mencionado nessa teoria é para fazer referência aos processos mentais ditos irracionais, opostos aos racionais da consciência. Esta virada teórica praticada na psicanálise pela Psicologia do Ego veio refletir-se de modo pontual no manejo técnico, posto a íntima relação que os une. A promoção do ego como centro de controle de todo comportamento adaptado, sua elevação a sistema central da personalidade, determinou uma técnica centrada na função da consciência, objetivando o fortalecimento do ego contra as forças “instintivas do id”, motivando assim as vias por onde a psicanálise se rendeu às novas finalidades, as ortopédicas propriamente. No dizer de Hartmann (1962), “[..].a missão básica do homem é adaptar-se a estrutura social e colaborar em sua construção [...]. A submissão social é uma forma especial de obediência ao ambiente e implica no conceito de adaptação” (p. 47-48).
Lacan alertará que a direção da cura é coisa completamente diversa. Na prática da psicanálise, eticamente orientada e pautada no inconsciente, trata-se de outra coisa que de orientação de consciência, de outra coisa que promoção de adaptação. Contrariamente ao que se postulou na Psicologia do Ego, partimos do pressuposto de que no ponto de entificação

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egóica do indivíduo jaz o que faz obstáculo à pegada da verdade do desejo inconsciente, e que jamais foi realmente apreendida pelos psicólogos do ego a ética freudiana no tratamento analítico, “[...] ainda que nesse plano seja clara a intenção freudiana, que nunca é a de conformidade às normas sociais ou morais, mas sempre a de confrontação do sujeito com a verdade de seu desejo” (Juranville, 1987, p. 28).
A função da fala e da linguagem em psicanálise foi abandonada. Na Psicologia do Ego a linguagem converteu-se em sistema de sinais linguísticos postos ao serviço da função de comunicação. Desconhecendo-se a função da linguagem, esta foi transformada em sistema de comunicação posta ao serviço dos interesses do ego. Negligenciou-se o valor da linguagem como condição do inconsciente, em sua estrutura bem como em suas manifestações.
Desprezou-se a primazia dada à palavra na técnica da psicanálise em favor de um privilégio concedido a linguagem concebida como conjunto de sinais dos quais o sujeito pode servir-se com a intenção de comunicar ao receptor sua mensagem. Essa é a teoria clássica da comunicação que assenta a escuta na cadeia cronológica linear dos enunciados. O eixo do enunciado é o eixo privilegiado no qual o desejo inconsciente, presente na enunciação, permanecendo não reconhecido, aliena o sujeito de sua relação e responsabilidade com a sua verdade. No enunciado, o sujeito é joguete de sua fala vazia; é servo de sentidos postos, já dados e que funcionam como álibi que lhe permite permanecer na mais fundamental ignorância do desejo que, por habitá-lo, o move. Convém ao analista ser rigoroso na escolha do eixo sobre o qual incide sua escuta.
A escuta do analista, endereçada ao sujeito da enunciação, estabelece o sujeito que aí fala. “[...] o ouvinte, sua resposta, seu aval, sua interpretação decide do sentido do que é dito, e ainda mais, a própria identidade de quem fala” (Miller, 1988, p. 72). O que, aliás, nos lembra, se preciso fosse, que o conceito de inconsciente não pode ser separado da presença do analista (Lacan, 1988a, p. 122-123), nisto em que é na e pela transferência que o inconsciente vem à luz enquanto “atualização da realidade do inconsciente.” (p. 130).
No segundo Encontro de Psicanálise do Vale do Itajaí (1994), a propósito da função da fala na direção do tratamento psicanalítico, Norberto C. Irusta evocava que “falar é já

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automaticamente submeter-se ao risco de ter que ser compreendido. E aí onde estou arriscado a ser compreendido, compreendido...mal! Por isso em psicanálise a questão não é de compreensão, senão de escuta.” De fato, com compreensão e explicações razoáveis do porque das condutas de um sujeito nós “[...] aumentamos o seu conhecimento, mas nada mais alteramos nele” (Freud, 1937a, p 266).

quarta-feira, 23 de abril de 2014

A psicanálise Freudiana e o Equívoco da Psicologia do Ego

3.1 - A revolução freudiana

Nos primórdios da elaboração de sua teoria sobre o inconsciente, no período relativo aos Estudos sobre a Histeria, Freud falava metaforicamente de uma “inteligência inconsciente”. Nos anos posteriores falará de “pensamentos inconscientes”. A teoria da associação em Freud resulta no princípio segundo o qual o inconsciente pensa. Efetivamente, se “[...] pensar é estabelecer equivalência” (Juranville, 1987, p. 24), estabelecer relações associativas, e isso é tarefa deste trabalhador incansável que é o inconsciente, então o inconsciente pensa, posto que associa. As representações recalcadas constituem a matéria prima com a qual o inconsciente trabalha, fornecendo como produto manufaturado os pensamentos, eles mesmos produto de associações. “Para a psicanálise o sujeito é também sujeito do pensamento – pensamento inconsciente. Pois o que Freud descobriu é que o inconsciente é feito de pensamento” (Quinet, 2000, p. 12).

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A descoberta de que o inconsciente é o lugar onde o pensamento se formula e se institui de forma elaborada é solidário com o método analítico da livre associação. Freud faz o método da psicanálise balizar-se inteiramente no que é, de qualquer modo, o método de funcionamento do inconsciente. Contudo, o inconsciente pensa regido por leis lógicas que diferem daquelas que regem os processos de pensamentos conscientes. O deslocamento e condensação são as leis propostas por Freud como leis que regem o modo pelo qual as representações se associam no inconsciente. Esta noção de representações ligadas umas com as outras, formando uma verdadeira cadeia de acordo com leis que ordenam o modo de estabelecimento destas ligações, quer dizer, que elas não estão sujeitas ao acaso, é a noção mesma de dinâmica inconsciente. “O pensamento inconsciente se caracteriza, para Freud, justamente como abandonando o plano de referência ‘objetiva’: esse pensar funciona, não de acordo com o princípio de realidade, que impõe ligações objetivas entre as representações, mas segundo o princípio do prazer” (Juranvile, 1987, p. 25).
O inconsciente é definido como um sistema relacional, como lugar referido a uma pura ordem de sintaxe; puro jogo combinatório entre representações recalcadas. Sublinhamos que a ênfase recai sobre o modo pelo qual as representações se combinam entre si de acordo com as leis que operam no inconsciente, tratando-se, portanto, de compreender que o que Freud denomina de conteúdo inconsciente diz exclusivamente respeito às representações, e de que elas se submetem ao processo de sintaxe próprio do inconsciente.
A noção segundo a qual o inconsciente freudiano é um sistema ordenado e organizado de acordo com as leis do deslocamento e da condensação, leis universais operando sobre representações singulares, conduziu Lacan (1988a) a propor que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” (p. 25), ou seja, no dizer de Lacan, o inconsciente freudiano é inteiramente constituído pela articulação dos significantes entre si, formando as cadeias inconscientes.
Com a descoberta do inconsciente Freud opera uma revolução denominada por Lacan (1985) de “copernicana” (p. 14). Ao afirmar que o inconsciente pensa, Freud desaloja a consciência como o único lugar de pensamentos organizados, alterando assim o privilégio

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concedido aos pensamentos conscientes, e, portanto, à noção presente no cogito “penso logo sou” no qual Descartes assevera reflexão do ser no ato de pensar.
Descartes (1987-1988), partindo da premissa de que “[...] todos os erros procedem dos sentidos” (p.13) e de que, portanto, todo conhecimento pautado nas percepções é enganoso, e, como tal, passível de ser posto em dúvida, foi conduzido a estabelecer que somente o pensamento racional pode oferecer uma base segura e objetiva de conhecimento, estabelecendo deste modo os próprios alicerces da ciência moderna. O estabelecimento da razão, definida como atributo essencial próprio e característico do homem, conduziu Descartes a estabelecer a distinção entre “natureza corpórea” e “natureza pensante”. Sabemos que esta distinção dá lugar à separação entre mente (alma) e corpo.
Pelo método da “dúvida hiperbólica”, que consiste em pôr metodicamente em dúvida tudo o que os órgãos dos sentidos estabelecem como verdade, e que, em realidade, não passam de “sonhos” e “quimeras”, Descartes chegou a uma certeza: a de que se ele duvida, ele pensa. Esse é o viés pelo qual Descartes chega a formulação da existência do ser no ato de pensar assim expressa: “Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que penso. [...] Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa” (p. 26).
Com Descartes tem início a idade de ouro da razão e da certeza da presença do ser no ato de pensar. A filosofia cartesiana contempla em suas indagações a noção de sujeito da razão, de um sujeito que por pensar “[...] é um espírito, um entendimento ou uma razão” (p. 26), inaugurando assim a idéia, presente até nossos dias, de um sujeito que se reflete a si próprio na superfície cristalina da consciência no momento em que pensa. A concepção de que o pensar é eminentemente racional e de que através da atividade de pensamento o eu apreendese a si próprio, conduziu a rigorosa equivalência, por um lado, do ser com o pensamento e, por outro, do pensamento com a consciência. Contemporaneamente, para muitas concepções psicológicas, se tornou consumado o fato de que ao nos referirmos à atividade de pensamento estamos, necessariamente, referindo-nos a uma atividade que só pode ser efetuada no plano da consciência, e, portanto, no plano do eu, na medida em que se formula “a equivalência do eu = consciência” (Lacan, 1985).
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Vallejo & Magalhães (1981), analisando o cogito cartesiano, sublinham que Descartes não propõe, por um lado, o ato de pensar, e, por outro, como dedução lógica implícita deste pensar, a inferência do ser. No cogito cartesiano tem-se, de acordo com esses autores, uma proposição que assevera a presença eminente do ser no próprio ato do pensamento. Ser é pensar, pensar é ser. Não se inferem mutuamente, não se justapõem, não se duplicam, se equivalem (p. 13-19).
Lacan (1985) afirma que o cogito cartesiano é “absolutamente fundamental no que diz respeito à nova subjetividade...” (p. 13). Descartes formulou, colocando pela primeira vez no centro do debate das teorias do conhecimento, a noção de ser definido como substância pensante, introduzindo a noção de categoria racional dos pensamentos conscientes. Freud, diversamente, introduz a idéia de uma ordem, de um sistema inconsciente perfeitamente organizado, capaz de subsistir fora da consciência, fazendo desta mero efeito de superfície.
Freud “está seguro de que um pensamento está lá, pensamento que é inconsciente, o que quer dizer que se revela como ausente. É a esse lugar que ele chama, uma vez que lida com outros, o eu penso pelo qual vai revelar-se o sujeito.” (Lacan, 1988a, p. 39).
Descartes homologa o ser com o pensamento, postulando ainda que ambos se situam no mesmo lugar. Neste sentido, podemos dizer que, com a descoberta do inconsciente, Freud opera uma segunda revolução, na medida em que postula que o ser e o pensar não se situam no mesmo lugar. O que Freud descobre e Lacan formaliza é que há uma ruptura tópica do pensar com o ser, assinalando assim a não convergência entre ambos. O sujeito não pode refletir-se a si mesmo, não pode apreender-se a si próprio no momento em que pensa, assim, “penso onde não existo, portanto existo onde não penso” (Lacan, 1978b, p. 248). O inconsciente é puro pensamento. Os pensamentos inconscientes operam sem intervenção da entidade egóica. Não há um sujeito agente que comande os pensamentos inconscientes, “[...] o pensamento inconsciente se define simplesmente por ser um pensamento sem sujeito” (Pommier, 1989, p. 41). Para Lacan (1978b), Freud designa pelo termo pensamento os elementos significantes postos em jogo no inconsciente e os encadeamentos sucessivos de que eles são capazes (p. 247).

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O inconsciente, compreendido como um sistema submetido à pura dinâmica relacional posta em jogo no encadeamento entre representações recalcadas, não requer a presença de nenhum eu substância pensante. “[...] O pensamento é possível sem que nenhum ‘eu penso’ intervenha...” (Safouan, s.d., p. 16). A primeira tópica freudiana consiste no estabelecimento da noção de um sujeito definido pela ruptura, pelo estiramento, e, como tal, profundamente marcado por uma cisão. Na primeira tópica freudiana os sistemas inconsciente, consciente e pré-consciente assinalam o lugar desta divisão (Spaltung). A noção de sujeito fendido remete simplesmente a impossibilidade do sujeito definir-se a si próprio no momento em que pensa.
No inconsciente não há um sujeito agente que regule a combinatória associativa das representações entre si. O sujeito é aprisionado por uma cadeia significante que o determina. O sujeito é inteiramente determinado a partir desta “outra cena” onde se localiza o desejo inconsciente. Ele é assujeitado a um movimento de pura dinâmica articulatória que, opera à sua revelia, descentrando-o. O sujeito freudiano é marcado pela divisão e, como tal, é o que está posto à margem de um centro ordenador central. É este descentramento radical do sujeito, implicado no conceito de inconsciente freudiano, que faz obstáculo a qualquer forma de síntese integrativa na consciência. A sintaxe inconsciente se contrapõe a síntese consciente. O sujeito não comanda a sintaxe formadora das cadeias de pensamentos inconscientes, é por elas comandado, na medida em que o inconsciente é uma ordem autônoma em relação ao sistema consciente.
Estas elaborações freudianas a propósito do inconsciente conduziram Lacan (1985) a afirmação de que com “Freud faz irrupção uma nova perspectiva que revoluciona o estudo da subjetividade e que mostra justamente que o sujeito não se confunde com o indivíduo [...].
Freud nos diz – o sujeito não é a sua inteligência, não está no mesmo eixo, é excêntrico. O sujeito como tal, funcionamento como sujeito, é algo diferente de um organismo que se adapta. O sujeito está descentrado com relação ao indivíduo” (p. 126).
Na elaboração freudiana o eu (moi) não está referido à função de conhecimento objetivo, não é sede de conhecimento imediato da realidade do mundo exterior, tampouco pode refletir-se de modo imediato na consciência. O eu é caracterizado por uma ignorância

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profunda. Nada sabe sobre os processos de pensamentos que o agitam. Ignora tudo sobre o universo simbólico do desejo que, por habitá-lo, o determina no menor de seus atos. O eu é pensado quando pensa pensar. A psicanálise surge com a descoberta do inconsciente e pela formalização conceptual específica que Freud lhe confere, juntamente com os conceitos fundamentais que lhes são derivados e correlatos. A descoberta do inconsciente constitui-se numa ferida narcísica infligida ao homem (Freud, 1980 [1925], p. 274), colocando em pauta que embora a consciência participe do psíquico não o totaliza e nem a ele se identifica. Freud descobre a existência de processos psíquicos que não podem ser identificados à consciência. A psicanálise vem, pois, colocar em pauta a existência de uma ordem psíquica de estatuto inconsciente.
A descoberta da existência de pensamentos inconscientes efetuada por Freud constituise numa ruptura com o modo tradicional de pensar a subjetividade. Freud descobre que o eixo da subjetividade não se ordena em torno da consciência e que se “[...] incorre em petição de principio asseverar que ‘consciente’ é um termo idêntico a ‘psíquico’” (Freud, 1980 [1912b], p. 327).
Observemos, portanto, em consequência, como esta inclinação de julgamento pode, segundo Freud, manifestar-se entre os filósofos. De um lado, estes imaginam o inconsciente como algo místico, inapreensível e inatingível, o que torna obscura a relação ao psíquico; de outra, obstáculo epistemológico, eles assimilam a priori, por hipótese de trabalho, o psíquico ao consciente, e assim excluem dele, portanto, o inconsciente. Trata-se antes de um erro bem conhecido de raciocínio denominado de ‘petição de princípio’, que consiste em responder por antecipação a uma questão – o que poderia esclarecer o fato de que, para alguns filósofos, a expressão ‘fenômenos psíquicos inconscientes’ lhes pareceria um absurdo e uma contradição nos termos (Aguiar, p. 20)[1].
Descartes, aventurando-se na investigação dos processos de conhecimento, chegou à proposição do cogito “penso logo sou”, asseverando que o pensamento é eminentemente racional e que reflete em ato o ser. Entretanto, para Lacan (1985), “mesmo que efetivamente
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seja verdade que a consciência é transparente a si própria e que é apreendida como tal, fica patente que, nem por isso o [eu] lhe é transparente” (p. 13).
Com Descartes firma-se a racionalidade dos processos de pensamento, e a consciência se estabelece como lugar privilegiado de todo processo de conhecimento. Tornou-se, deste modo, um princípio, aceito por muitos, conceber-se o eu como uma entidade substancial que, por essência e definição, se constitui como agente de todo conhecimento. Com Descartes origina-se o discurso próprio do domínio da ciência moderna, como discurso de cunho racionalista. A noção de que a consciência é sede de pensamentos objetivos racionais conduziu, na contemporaneidade, a idéia da existência de uma realidade objetiva que poderia ser apreendida como tal pela razão. A consciência passa a ser concebida como o lugar onde se dá a apreensão objetiva daquilo que se apresenta como realidade cognoscível. Temos, portanto, na contemporaneidade, de um lado, a idéia de indivíduo concebido como agente dos processos de pensamento, e, de outro, a idéia da existência de uma realidade que se ofereceria como objeto passível de ser apreendido pela consciência através do processo de pensamento racional. Realidade e indivíduo são, portanto, compreendidos como duas entidades substanciais com existência independente uma da outra, estabelecendo-se, deste modo, de um lado, a idéia de uma correspondência perfeita e unívoca entre os pensamentos racionais conscientes e a realidade. De outro, uma correspondência entre o ser e o ato de pensamento. A consciência é firmada como o lugar onde o mundo se apresenta como cognoscível ao ser.
O ideal que caracteriza a contemporaneidade, atravessada pelo saber científico, põe em cena um ideal específico ao nosso tempo. O discurso da ciência, enquanto discurso sem sujeito, impõe, como lógica intrínseca a seu discurso, a idéia de apreensão plena da realidade, dita objetiva, de forma imediata, isto é, sem a intervenção mediadora da instância simbólica da linguagem. A ciência positivista só reconhece como saber válido cientificamente aquele produzido diretamente sobre a realidade objetiva, preconizando que a participação da subjetividade só poderia realizar sobre a mesma uma cópia imperfeita que não passaria de mero simulacro, razão pela qual na ciência o sujeito deve ser abolido.
O discurso da ciência contemporânea veicula a ilusão de possibilidade de um saber puro, sem sujeito. No discurso da ciência o objeto é apresentado como possuidor de existência
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e realidade concreta autônoma em relação ao sujeito que percebe – sujeito e objeto constituindo-se em duas entidades substanciais autônomas. Este é o ideal interno ao discurso da ciência, e que se constitui na sua essência. A ciência pressupõe a existência de uma realidade em si, e de que a mesma se apresenta ao ser do homem como realidade passível de ser apreendida tal qual. A ciência sustenta a premissa de um saber que emana do próprio real e que se reflete, através da atividade do pensamento racional, na superfície da consciência. O saber científico na contemporaneidade sustenta, portanto, a ilusão de um saber pleno que, sendo sem fissura, “[...] é um saber sem desejo, isto é, sem falta” (Jerusalinsky, 1994, p. 3).
A propósito do absoluto do saber J. Hipollite dirige-se a Lacan colocando-lhe o seguinte questionamento: “[...] será que estamos a todo momento no saber absoluto? Ou será que o saber absoluto é um momento?” (Lacan, 1985, p. 95). Essa questão resulta tanto mais interessante quando considerada à luz do contexto no qual ela se articula, e que é aquele em que Lacan procede à análise e argumentação do conceito freudiano de pulsão de morte e do estatuto imaginário do eu (moi), num interessante e elucidativo diálogo com as linhas de pensamento filosóficas que centram o debate relativo à questão do psíquico centrando-o na consciência. Nesse contexto, Lacan destaca a reviravolta de perspectiva colocada pela descoberta freudiana do inconsciente, e que tem por efeito produzir um descentramento do sujeito em relação à consciência. A revolução operada por Freud Lacan denominou de revolução copernicana.
Freud e Lacan procederam à distinção radical e vigorosa da psicanálise para com as linhas de pensamento filosóficas, e para com as escolas psicológicas que nela se apoiam, que sustentam a concepção de ego consciente. Distinção que ganha ainda mais em força e vigor quando se coloca em pauta que “o inconsciente escapa totalmente a este círculo de certezas na qual o homem se reconhece como eu” (p. 15).
Diversamente da visão própria ao discurso da ciência positivista, que pretende chegar a saber tudo sobre o real, na elaboração lacaniana da psicanálise o real pertence ao registro do impossível, isto é, o real não é passível de ser apreendido pelo simbólico como tal, ele pertence ao reduto da pulsão de morte, ao limite do que as palavras podem nomear. Para a psicanálise a realidade dita objetiva – a realidade da ciência positivista –, do mesmo modo
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que os planetas, não tem luz própria, esta lhe vem de empréstimo do simbólico e do desejo que nele tem lugar. Isso implica em dizer que o objeto e o sujeito não se constituem em categorias autônomas um para com o outro.
A ciência positivista consiste no projeto de um possível saber pleno sobre o real, como se o objeto portasse em si mesmo uma essência, propriedades atributivas naturais e como se dele emanassem qualidades apreensíveis que, lhes sendo imanentes, poderiam ser capturadas pelo pensamento consciente. Deste modo, o objeto é colocado como possuidor de uma existência autônoma e com atributos de significação independente da cadeia relacional estabelecida com o desejo inconsciente.
É na medida da abolição do desejo que a ciência se constitui num discurso cuja premissa básica é de poder abolir a presença do sujeito. No ato mesmo de abolição do desejo, o discurso da ciência constitui-se, contemporaneamente, num discurso regido pela lógica segundo a qual não é o desejo que cria seus objetos, mas sim que estes tem existência autônoma. Com efeito, a ciência positivista preconiza a idéia de um conhecimento racional e objetivo, postulando que o objeto é fonte de conhecimento e que não padece das amarras relacionais que o desejo impõe, sustentando-se na premissa de que “[...] há um saber encarnado no real” (Lajonquère, 1994, p. 62).
A propriedade substantiva, suposta essência do real, é, entretanto, um juízo atributivo conferido pelo desejo. Dizendo de outra forma, é primeiro no olhar do observador, olhar escavado pelo vazio do desejo, que o real da ciência parece ser portador de um saber sem falha. Para a psicanálise, contudo, é a força do desejo que injeta sobre a realidade um saber, tão provisório quanto parcial. Para Freud (1980 [1930]), “nunca dominaremos completamente a natureza, e o nosso organismo corporal, é ele mesmo parte dessa natureza...” (p. 85). Freud faz desta parcela da natureza inconquistável uma fonte de sofrimento constante e não passível de resolução, a despeito de todos os avanços verificados no campo da ciência ao longo da civilização. “O sentimento oceânico” de um perfeito domínio sobre a realidade faz da ciência um discurso que se constitui no ideal próprio à modernidade. O ideal contemporâneo, calcado na ciência, repousa no projeto de controle e domínio do real pelo homem, consolidando a premissa de que “o real é racional e independente do sujeito que conhece, e o sujeito é o ego
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substância que, à maneira de um espelho, reflete o saber das coisas” (Lajonquière, 1994, p. 62).
O indivíduo, entendido como substância pensante consciente, é um produto da modernidade originada no cogito cartesiano. A partir do cogito cartesiano se firmou e consolidou a premissa de acordo com a qual o eu, por ser racional, é eminentemente consciente. Portanto, entre as teorias psicológicas norteadas pelo cartesianismo e a psicanálise que as revoluciona há, de fato, uma distância que não é meramente métrica “A noção de sujeito enquanto sujeito cognoscente, agente do processo de conhecimento e como tal referido a um objeto suposto e cognoscível, ou seja, apreeensível pelo conhecimento racional e pela atividade de investigação científica, é um produto da modernidade. Seu protótipo pode ser representado pelo Ego cartesiano” (Marques Neto, 1994, p.152). Desse modo, embora muitas teorias, e em particular a teoria da Psicologia do Ego, afirmem encontrar em Freud os fundamentos que as sustentam, a rigor elas se encontram mais próximas de uma concepção psicológica sobre o indivíduo do que de uma concepção freudiana sobre o sujeito. Isso é sobremaneira verdadeiro quando consideramos que conservam como central em suas teorias a antiga estrutura sujeito e objeto, assim como também a noção de que os fenômenos conscientes constituem a totalidade dos processos psíquicos em acordo e consonância hegemônica com a realidade percebida, e em desacordo absoluto com o posicionamento freudiano. Para Freud (1980 [1933]) “as estrelas são, na verdade, magníficas, porém, quanto à consciência, Deus executou um trabalho torto e negligente, pois da consciência a maior parte dos homens recebeu apenas uma quantia modesta, ou mal recebeu o suficiente para ser notado” (p. 85).



[1] No original em francês: “Remarquons dès lors comment cette inclinaison de jugement peut, d’après Freud, se manifester chez les philosophes. D’une part, ceux-ci imaginent l’inconscient comme quelque chose de mystique, insaissable et intangible, ce qui rend obscure la relation au psychique; de l’outre, obstacle épistémologique, ils assimilent a priori par hypothèse de trtavail, le psychique au conscient, et ainsi en excluent donc l’inconscient. Il s’agissait plutôt d’une erreur bien conuê de raisonnement appelée petition de principe, qui consiste à s’accorder par avance ce qui est en quation – ce qui pourrait éclairer le fait que, pour certains philosophes, l’expression ‘phénoméne psychique inconscient’ pouvait leur paraître une absurdité et une contradiction dans les termes”.

quarta-feira, 16 de abril de 2014


TEOLOGIA DA SEMANA SANTA

Como podemos compreender o sentido e a teologia desta semana que nós chamamos de santa?

A tradição do povo quis recordar os últimos acontecimentos históricos de Jesus de Nazaré. Não se trata apenas de recordar fatos passados, mas sim um memorial que deve ser atualizado pelos fiéis. A Semana Santa é semana do encontro com o Cristo-Ressuscitado; nas celebrações litúrgicas, na sua Palavra e na pessoa dos irmãos da comunidade. As celebrações religiosas são a recordação dos últimos acontecimentos da vida terrestre de Jesus de Nazaré. Em cada dia da semana recorda-se e atualiza-se um fato da vida de Jesus.
Os Dias da Semana Santa:

1º) O Domingo de Ramos na História.

No século IV, já encontramos em Jerusalém notícias sobre uma celebração que procurava recordar o mais exatamente possível a entrada de Jesus de Nazaré na cidade. Na descrição desse ingresso do Senhor em Jerusalém não se fala em uma celebração eucarística.

2º) A Celebração do Domingo de Ramos nos Dias de Hoje.

O Vaticano II restaurou a ordem dos domingos da Quaresma. De fato, na segunda metade do século VII, o quinto domingo da Quaresma começou a chamar-se primeiro domingo da Paixão ou Domingo de Ramos. O Vaticano II recolocou em vigor o quinto domingo da Quaresma antes da Páscoa: chama-se agora Domenica in Palmis de Passione Domini.

3º) A Quinta-feira Santa.

A Manhã da Quinta-feira Santa:

A liturgia da manhã na Quinta-feira Santa conhece primeiro e apenas uma reconciliação dos penitentes. A seguir, poderá ser celebrada uma eucaristia para os que não podem observar o jejum até a missa da ceia. Introduz-se também uma consagração dos óleos.

A Manhã da Quinta-feira Santa Hoje:

O Vaticano II introduziu algumas modificações na reforma litúrgica de 1955. A bênção dos santos Óleos e a consagração do Crisma são ocasião para reunir o clero em torno do bispo. Assim, a Quinta-feira Santa torna-se um dia sacerdotal, com a renovação das promessas próprias dos sacerdotes, durante a missa crismal. E a concelebração durante a ceia vespertina é um sinal da unidade do sacerdócio.

4º) A Tarde da Quinta-feira Santa:

A quinta-feira Santa é um dia Alegria, Amor e Gratidão. Recorda-se o exemplo de Jesus que quis lavar os pés dos discípulos, dando-nos o testemunho de serviço e humildade. Recorda-se principalmente a celebração da Ceia do Senhor, na qual ele se dá como Pão da Vida e Vinho da Salvação. Foi nessa ceia de despedida que ele nos deixou o sacerdócio ministerial, para a perpetuação de seu Corpo e Sangue no meio de nós como Presença de Compromisso, Partilha e Missão.

Quinta-feira Santa

Formação e Evolução:
Na Igreja Romana, a Quinta-feira Santa, até o século VII, marca o fim da Quaresma e do jejum penitencial e tem início, com a Sexta-feira Santa, o jejum pascal, na espera da ressurreição do Senhor.
Na parte da manhã da quinta-feira Santa, a Igreja romana conhece apenas a reconciliação dos penitentes,isto até o século VII. Não encontramos nenhum vestígio da comemoração da Ceia do Senhor. Era celebrada com todo esplendor a liturgia eucarística como ápice da Páscoa do Cristo Ressuscitado. Os penitentes reconciliados são levados à mesa da eucaristia, à qual são admitidos de novo na noite de Páscoa.

A Celebração da Quinta-feira Santa hoje:

As reformas litúrgicas do Papa Pio XII, em 1955, já tinham reintroduzido, à noitinha, ou ao menos depois das 4 horas da tarde, uma celebração eucarística para recordar a instituição da Ceia do Senhor.
O Vaticano II fez uma reforma mais profunda. Alterou-se a oração inicial, ressaltando o fato da última Ceia; as leituras procuraram centrar-se sobre o fato da Ceia do Senhor. A primeira leitura recorda a celebração da Pesha judaica (Êx 12, 1-8. 11-14) que será “ transformada pelo Novo Cordeiro Pascal, criando um novo povo”. A segunda leitura conta-nos a Ceia do Senhor conforme o relato de São Paulo (1 Cor 11,23-26). O Evangelho nos relata a cena do Lava-pés dos discípulos (Jo 13,1-5), tornando-se um sinal claro do amor de Jesus pelos que o seguiam.

O costume do Lava-pés, imitando o gesto de Jesus, era antigo na Tradição da Igreja. Desde o século IV aparece em todas as liturgias. O Concílio de Toledo (634) o exige com firmeza, mostrando ser uma obrigação em todas as Igrejas da Espanha e da Sicília. A reforma do Missal, em 1970, tornou-o obrigatório em todas as celebrações da Ceia do Senhor, constituindo parte integrante do gesto de doação de Jesus. Ato a ser recordado e atualizado nas comunidades de hoje. A Adoração ao Santíssimo Sacramento, que se faz ao fim da Ceia do Senhor, permaneceu como costume de acompanhar a memória de Jesus na angústia e na agonia daquela noite de quinta-feira Santa.

5º) A Sexta-feira Santa:

Celebração da Morte do Senhor.
A Igreja Antiga celebrava a Sexta-feira Santa como comemoração da morte do Senhor. Temos testemunho do século IV, com detalhes que serão decisivos para a liturgia romana.

A Celebração da Sexta-feira Santa hoje:

A reforma litúrgica de Pio XII, em 1955, introduziu a comunhão aos fiéis. No mais, conservou a maior parte dos costumes anteriores. O Vaticano II fez profundas modificações nessa liturgia. A celebração já tinha sido fixada na parte da tarde pelo Ordo precedente. Havia também a possibilidade de se fazer a liturgia da Palavra na parte da manhã e deixando para a tarde a veneração da cruz e a comunhão. Os motivos pastorais, no entanto, exigiram que se fizesse uma só cerimônia, para não obrigar as pessoas a se reunirem duas vezes no mesmo dia.
Nesse dia não há assim celebração da eucaristia-missa, mas apenas a Comemoração da Paixão e Morte do Senhor. Essa atitude de respeito pelo jejum, abstinência, tristeza e silêncio é feita na Esperança. Pela morte veio a Vida; pelo fracasso aparente, a salvação dos homens. Esse Mistério da salvação dos homens pela morte do Filho de Deus é loucura para quem vive numa sociedade de consumo, de produção, de sucesso e de glórias efêmeras. Mas aquilo que é loucura de Deus é mais sábio que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte que os homens (1 Cor 1,25).

A Celebração do Tríduo Sacro:

A partir do século IV iniciou-se a celebração do Sacratíssimo Tríduo do Senhor crucificado, sepultado e ressuscitado, conforme nos relata Santo Agostinho. Santo Ambrósio de Milão já usara a expressão Triduum Sacrum.
A expressão Tríduo Pascal começa a ser usada a partir de 1930. A celebração eucarística da noite de Quinta-feira Santa e as outras cerimônias, até a Vigília Pascal, formam um conjunto de unidade do mistério pascal que levou o Papa Leão Magno a definir a noite de Páscoa como Pascale Sacramentum.
A celebração da Vigília hoje:
Antes da reforma litúrgica de 1955, a primeira parte da liturgia era reservada quase ao clero e aos ministros. Essa cerimônia tinha participação de apenas um grupo restrito de fiéis. Após a reforma de Pio XII e do Vaticano II, essas celebrações foram reformuladas.

A Celebração da Luz:

É o início da comemoração da Ressurreição do Senhor. Esse fato é a Nossa Vitória, garantia de nossa fé. As cerimônias são um convite à Alegria, à Esperança.
A benção do fogo novo, tirado da pedra, é símbolo da luz, da fé que procede de Cristo, pedra fundamental da Igreja.

O Círio Pascal:

O círio pascal provém do costume romano de iluminar a noite com muitas lâmpadas. Essas lâmpadas passam a ser símbolo do Senhor Ressuscitado dentro da noite da morte. Originalmente o círio tinha a altura de um homem, simbolizando Cristo-luz que brilha nas trevas.

6º) O domingo de Páscoa:

No início do cristianismo, o domingo de Páscoa não tinha uma liturgia própria, porque a celebração pascal se desenvolvia até a madrugada. Após a reforma litúrgica de 1955 e 1970, o domingo passa a ser considerado como uma festividade verdadeira e própria.

A celebração desse dia é plena de alegria e esperança. As leituras são sempre as mesmas em todos os ciclos anuais. A sequência pascal marca a emoção e a esperança da comunidade. Jesus Cristo é o vencedor da Morte. Ele rompeu as barreiras do tempo e do espaço. Ele é um convite à nossa ressurreição.
Em muitas comunidades, muitos fiéis não tomaram parte no Tríduo Sacro. Por isso os sacerdotes e a comunidade precisam tomar consciência da unidade da morte e ressurreição de Cristo como sendo um todo Mistério Pascal.