PALAVRA E AB-REAÇÃO – (IN)EFICÁCIA PSICANALÍTICA
Numa outra ocasião fizemos
algumas formulações essenciais à psicanálise. No tocante à teoria estabelecemos
a relação do inconsciente com o recalque. No tocante à técnica estabelecemos o
seu ordenamento no campo da palavra. Contudo, essas são formulações que têm
longo percurso histórico na psicanálise. Procederemos agora à abordagem do
percurso histórico que conduziu Freud à descoberta fundamental da psicanálise –
o inconsciente – abordando, na sequência, os desenvolvimentos a que esta
descoberta deu lugar.
No período histórico relativo aos
Estudos Sobre a Histeria a técnica presente na sugestão hipnótica consistia em
tornar consciente o inconsciente. Contudo, não levará muito tempo para que
Freud perceba que a sugestão hipnótica mais ocultava do que revelava o
inconsciente. O objetivo técnico de tornar consciente o inconsciente faz parte,
portanto, do período histórico da psicanálise.
Nos anos de 1893-1900, primórdios
da psicanálise, o método da sugestão hipnótica, que objetivava a catarse
através da ab-reação, “[...] consistia em focalizar diretamente o momento em
que o sintoma se formava [...]” (Freud, 1980 [1914b], p. 193). O manejo
técnico, neste período, consistia em “[...] colocar em foco um momento ou
problema específico” (p. 193). O objetivo técnico consistia, portanto,
essencialmente em se descobrir a causa desencadeante dos sintomas. Freud
percebe, neste mesmo período, que havia uma resistência no paciente que se
opunha a que as idéias inconscientes se tornassem conscientes, isto é, que
havia uma resistência a ser superada e que tornava necessário o recurso à
sugestão hipnótica.
De fato, nestes anos iniciais, a
técnica psicanalítica consistia em tornar consciente o inconsciente,
compreendido, neste mesmo período, como um estado de segunda consciência onde
as lembranças não ab-reagidas se alojavam. Sabemos que essa noção de
inconsciente compreendido como estado de dupla consciência ou estado de
consciência dividida sofrerá, posteriormente, da parte do próprio Freud severas
críticas, ocorrendo o mesmo com o método da sugestão hipnótica. Sublinhemos,
portanto, que o método da sugestão hipnótica utilizada na origem da história da
psicanálise se apoiava nas elaborações teóricas produzidas naquele período, e
que tornar consciente o inconsciente significava, nestes tempos idos, tornar
manifesto, conhecido à consciência o fator traumático causal que se encontrava
subjacente aos sintomas histéricos. Neste período Freud (1980 [1893-1895a])
relata que “[...] cada sintoma histérico individual desaparecia imediatamente e
permanentemente quando conseguíamos evocar, nitidamente, a lembrança do fato
que o provocou e despertar a emoção que o acompanhava, e quando o paciente
havia descrito aquele fato com maiores detalhes possíveis e traduzirá a emoção
em palavras” (p. 47).
Freud observava que os sintomas
histéricos desapareciam quando ab-reagidos, isto é, que os sintomas
desapareciam quando ocorria a descarga das emoções que estavam ligadas aos
acontecimentos traumáticos através do recurso à palavra. Os acontecimentos
traumáticos deveriam receber expressão verbal por parte do sujeito, meio
através do qual haveria uma catarse. Lacan, no Seminário Livro 7 (1991),
assinala que na antiga Grécia, com Hipócrates, o termo catarse traduzia-se
habitualmente como “purgação” e estava relacionado à noção de eliminação das
tensões, aludindo também a idéia de uma “purificação” (p. 297). No ponto de
elaboração teórica em que nos encontramos hoje sabemos que a ab-reação
consistia essencialmente em dar nome, simbolizar, pelo recurso à linguagem, um
real vivido não integrado ao sistema simbólico do sujeito.
No período em que Freud
utilizava-se do método da sugestão hipnótica o objetivo da psicoterapia era o
de percorrer os caminhos que haviam conduzido à formação dos sintomas, isto é,
partia-se dos sintomas manifestos até chegar-se à localização das causas que o
haviam determinado. Encontrar a causa que estava na origem dos sintomas era de
capital importância neste período, posto que a lembrança do trauma que não
havia sido ab-reagido permanecia no aparelho psíquico funcionando como um
“corpo estranho”. Nesta época Freud relatou ficar deveras impressionado com o
fato de que a lembrança do trauma permanecia, muito tempo após a sua
ocorrência, eficaz, vivo enquanto agente etiológico dos sintomas atuais do
sujeito.
Freud observava ainda que havia
uma desproporção no tempo entre o surgimento dos sintomas e o evento traumático
desencadeante, constatando que, por um lado, o sintoma não aparecia logo após a
ocorrência do fator traumático e que, por outro, este permanecia presente no
psíquico como se fosse uma força atual e em constante atividade. Devemos ainda
acrescentar que, neste mesmo período, Freud elabora que uma cena só se torna
traumática quando transformada em lembrança a partir de sua evocação por meio
da repetição de uma cena análoga. “Neste sentido, o caso Katharina é típico. Em
todo caso de análise de histeria baseada em traumas sexuais, verificamos que as
impressões do período pré-sexual que não produziram nenhum efeito na criança
atingem seu poder traumático num dado posterior como lembrança” (Freud, 1980
[1983-1895c], p. 182).
Alguns pontos de elaboração
efetuados por Freud no período de 1893 a 1900 são dignos de nota e merecem,
portanto, destaque, posto constituírem-se nos germens da futura teoria do
inconsciente e do método da livre associação a ele intimamente relacionado. Neste
mesmo período Freud destacava, como fato marcante, que nas neuroses traumáticas
não havia um trauma principal isolado, mas, sim, uma série de traumas parciais
agrupados, formando um grupo de causas desencadeantes. Freud observou que a
conexão entre esses grupos causais e os sintomas dele decorrente obedecia, no
mais das vezes, a uma conexão causal de ordem simbólica e não cronológica ou
factual. A conexão simbólica determinava que o evento traumático, ou grupos de
eventos traumáticos, que despertavam uma emoção penosa, do tipo náusea moral,
poderia manifestar-se sob a forma de um sintoma histérico de vômito, por
exemplo. Freud observou, portanto, que se estabelecia uma associação por laços
de semelhança simbólica entre o sintoma e o que funciona como sua causa
precipitante (Freud, 1980 [1893-1895a], p. 45). A noção de conexão simbólica
elaborada por Freud neste período evoca a noção lacaniana da metáfora,
elaborada com base na lei de condensação, como mecanismo constitutivo dos
sintomas neuróticos.
Evocamos a noção de relações
causais simbólicas estabelecendo sua relação com a metáfora no intuito de
apontarmos o quanto estava presente, nos primórdios da psicanálise e no
espírito de Freud que a originou – ainda que de forma incipiente e embora haja
toda uma distância de ordem conceptual e cronológica a ser percorrida –, a
noção de relações analógicas de cunho simbólico e de como esta noção, ao longo
da obra freudiana e lacaniana, foi ganhando em vigor conceptual.
Freud destaca, portanto, a
possibilidade de relações causais de ordem simbólica na etiologia dos sintomas.
Outro ponto destacado por Freud, e de não menor importância, refere-se ao fato
de que havia, por parte do paciente, uma perda de memória no que concerne a
estas relações simbólicas. A lembrança do evento traumático permanecia
engramada no psíquico, mas, quanto à sua ação eficaz na produção dos sintomas,
o paciente nada relacionava. É a este propósito que Freud chega à conclusão de
que “os histéricos sofrem principalmente de reminiscências.” (p. 48). Sabemos
hoje o quanto devemos a essa elaboração o conceito, elaborado posteriormente,
de fantasma.
Freud observava que os eventos
traumáticos, que não haviam sido ab-reagidos no momento oportuno, despertavam emoções
penosas que permaneciam vinculadas à lembrança traumática. A cura requeria uma
liberação da emoção “estrangulada” por meio da fala, na medida em que, para
Freud “[...] a linguagem serve de substituto para a ação” (p. 49). “Cura pela
palavra”, assim denominou Ana O, a mais famosa das histéricas, o tratamento
pela psicanálise Verificamos, guardadas as devidas proporções, e que de fato
não são poucas, de ordem tanto teóricas quanto técnicas, que a catarse em Freud
consistia numa purificação pela via liberadora da palavra. De acordo com o que
se elaborava neste período, tornar algo consciente consistia precisamente em
restabelecer as conexões causais simbólicas perdidas, fato que se torna tão
mais marcante quando lembramos que em A Psicoterapia da Histeria (1980
[1893-1895b]) o pressuposto teórico de estados de dupla consciência cede lugar
à teoria da defesa implicada no mecanismo do recalque. Como vemos, o conceito
de recalque, conceito chave da teoria do inconsciente, tem longo percurso
histórico na psicanálise.
Com a introdução da teoria da
defesa, Freud não estava recusando a teoria dos “estados hipnóides” presentes
na histeria, mas, sim, afirmando-os como estados adquiridos por meio da defesa,
e já não mais, portanto, como o resultado de uma pré-disposição constitucional
herdada. Freud não recusava, neste período, a existência de “estados
hipnóides”, mas afirmava que os mesmos dependiam inteiramente do mecanismo
psíquico da defesa compreendido como “fator primário”. Freud desejava sustentar
um achado: o mecanismo psíquico da defesa posta em jogo no recalque. O recalque
foi definido neste período como o processo através do qual determinados grupos
de idéias eram dissociados da cadeia consciente, vindo formar uma cadeia
inconsciente. A “histeria hipnóide”, juntamente com a teoria que a sustentava,
cedeu terreno à nova designação clínica – “a histeria da defesa”. Fato que,
aliado a uma série de outros, fez com que Freud já não se mostrasse mais tão
otimista quanto aos alcances terapêuticos obtidos através da utilização da
técnica da sugestão hipnótica. De todos os modos, a prática da sugestão
hipnótica, e a experiência obtida através da mesma por Freud, constituiu-se num
valioso subsídio para a posterior elaboração do fenômeno da sugestão implicado
na transferência, de tal forma que, em Freud, o manejo da transferência
constitui-se no fundamento ético[1]
da prática psicanalítica.
Desenvolvíamos acima que a noção
de fios de associações lógicas simbólicas, cuja relação fora esquecida pelo
paciente, foi ganhando vulto em relação à noção de eventos traumáticos isolados
como causa desencadeante de sintomas. Nesta mesma ocasião, Freud elabora que
não havia uma única lembrança, uma única idéia patogênica, mas uma sucessão de
“traumas parciais”, formando uma verdadeira concatenação de idéias patogênicas
múltiplas.
O material psíquico patogênico,
de acordo com Freud, encontrava-se organizado sob a forma de uma estrutura
relacional estratificada segundo três ordens diversas. Dito de outra maneira,
havia um certo número de lembranças ou de “sequência de pensamentos” (Freud,
1980 [1893-1895b], p. 345) que se dispunha a partir de um núcleo traumático até
sua manifestação nos sintomas, onde o núcleo traumático culminava. Em torno
deste núcleo, como que envelopando-o, encontrava-se um abundante material
disposto de acordo com três ordens de organização.
Havia, em primeiro lugar, uma
disposição cronológica sequencial, um ordenamento linear do material mnêmico;
uma espécie de arquivo bem ordenado de lembranças dispostas segundo uma ordem
cronológica invertida, onde as lembranças mais recentes eram as que surgiam em
primeiro lugar, e, no fina,l encontrava-se a lembrança traumática em torno da
qual as demais lembranças se encontravam ligadas. Havia, portanto, um arquivo
mnêmico que conduzia dos sintomas manifestos até o núcleo traumático Em segundo
lugar, havia um arranjo temático, já não mais cronológico. Neste, uma série de
temas encontravam-se ligados entre si e ordenados em torno do tema principal
numa ordem de estratificação temática na qual em cada estrato encontrava-se uma
resistência que aumentava a medida em que se aproximava do núcleo patogênico.
Por fim, a terceira e mais
importante forma de organização do material psíquico, uma forma de arranjo que
não obedecia à cronologia e nem à semelhança temática. A terceira forma de
organização do material psíquico ordenava-se de acordo com o “conteúdo do
pensamento”, no qual a concatenação das idéias ocorre de acordo com certos fios
lógicos que as ligavam entre si. Essa forma de organização, diversamente da
ordem temática, não era concêntrica, mas sim em forma de “ziguezague”. Uma
forma de associação segundo uma certa ordem lógica que evoca a imagem de uma
ramificação arbórea.
Essas formas de estratificações
do material psíquico conduziram Freud a conclusão de que “[...] é notável como
muitas vezes um sintoma é determinado de várias maneiras, é ‘superdeterminado’”
(p. 347).
Referências
Alexander, F., Eisenstein, S. & Grotjahn, M.(Orgs). (1981).
A História da Psicanálise através de seus Pioneiros. Rio de Janeiro: Imago
Editora.
Birman, J. (1978). Demanda Psiquiátrica e saber Psicanalítico.
In: S. Figueira (Org.). Sociedade e Doença Mental (pp 205-225). Rio de Janeiro:
Editora Campus.
Calligaris, C. (1993). Indivíduo e sociedade. In. M. Fleig
(Org.). Psicanálise e sintoma social pp. 183-196). São Leopoldo: Unissinos.
Chemama, R. (19??). (Org.). Dicionário de Psicanálise. Porto
Alegre: Artes Médicas.
Descartes, R. (1987-1988). Meditações; Objeções e respostas;
Cartas. São Paulo: Nova Cultura.
Fiorini, H. J. (1955). Teoria e Técnicas de Psicoterapias.
São Paulo: Francisco Alves.
Freire-Costa, J. (1978). Psicoterapia Breve: uma abordagem
Psicanalítica. In: S. Figueira (Org.). Sociedade e Doença Mental (pp. 227-241).
Rio de Janeiro: Editora Campus.
Freud, S. (1980 [1886]). Relatório sobre meus estudos em
Paris e Berlim. In : Obras Completas, vol.I. Rio de Janeiro : Imago.
Freud, S. (1980 [1892-1893]). Um caso de cura pelo
hipnotismo. In : Obras Completas, vol. I. Rio de Janeiro : Imago.
Freud, S. (1980 [1893-1895a]). Estudos sobre a histeria.
Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos. Comunicação preliminar In
: Obras Completas, vol. II. Rio de Janeiro: Imago.
Freud, S. (1989 [1893- 1895b]). Estudos sobre a histeria. A
psicoterapia da histeria. In : Obras Completas, vol.II. Rio de Janeiro : Imago.
[1] Podemos dar como
definição geral que a ética consiste no conjunto de princípios que regem as
ações humanas. Neste sentido, pode-se afirmar que a ética encontra-se presente
num vasto número de campos teóricos, epistemológicos e de práticas. Entretanto,
pode-se afirmar também que a questão relativa à ética tem na psicanálise uma
abordagem específica. Na psicanálise encontramos uma concepção particular sobre
a ética que ligaremos à especificidade
de sua concepção de sujeito. A “ética tradicional” (Lacan, 1998, p. 776) se
fundamenta e se dirige ao ser, preconizando uma série de princípios e de leis
que, ao serem colocadas como referências para as ações humanas, fazem com que
esta se dirija ao bem. Para a psicanálise, contudo, a ética não se endereça ao
ser, mas a falta a ser fundada no desejo e na castração A obra freudiana
inaugura uma ética própria da psicanálise e que se encontra intimamente ligada
à noção de sujeito do inconsciente. O sujeito do inconsciente é determinado e,
como tal, assujeitado à lei do desejo inconsciente. Tal concepção de sujeito
coloca-se nas antípodas de uma concepção que defende a autonomia do indivíduo.
Com efeito, a “[...] a marca do significante sobre o falante” (Larousse, s.d.,
p. 42) faz dele um sujeito submetido às determinações do desejo inconsciente e
a castração a qual ele dá lugar. Deste modo, no percurso de uma análise o
sujeito é conduzido a confrontar-se com a lei do desejo e com a castração que
ele porta. De acordo com Birman (1955), “[...] a análise é a possibilidade de
produção de um estilo que se calca na lei da proibição do incesto e na
experiência de castração...” (p. 29). Para a psicanálise freudiana não se
trata, tal como na Psicologia do Ego, de harmonizar o sujeito com as leis
morais sociais, mas, sim de ordenar o sujeito na lei do desejo. Goldemberg
(1944), aponta que “[...] a moral seria relativa aos ideais que constituem o
eu, enquanto que a ética diria respeito às relações do sujeito com seu desejo
inconsciente” (p. 11).
Por outro lado, a ética da psicanálise, no
que tange ao analista, consiste em dar voz e escuta ao sujeito do inconsciente.
Os princípios técnicos postos em curso na direção do tratamento são princípios
éticos que “[...] visam dar lugar à palavra do sujeito do inconsciente e, como
não há inconsciente fora do laço transferencial, o manejo da transferência
situa-se no âmbito da ética, visando a livre associação” (Baratto, 201, p. 52).
Deste modo, a ética do psicanalista consiste em implicar, pelo recurso à
palavra, o sujeito com seu desejo, fazendo tombar a ilusão de autonomia do eu.
Há, portanto, “[..] uma ética da psicanálise, no sentido de uma ética
profissional [..]. Esta abordagem diz respeito à proteção dos ‘clientes’
submetidos ao tratamento psicanalítico contra eventuais abusos cometidos pelos
analistas em sua posição privilegiada em função do amor de transferência” (
Kehl, 202, p. 7), e há uma ética que se deriva do percurso de uma análise por
parte do analisando. A sustentação de uma posição ética , fundada no desejo,
tanto por parte do analista quanto por parte do analisando passa, por seu
turno, pelas vicissitudes particulares de uma análise.