Pasárgada

…Cheguei no momento da criação do mundo e resolvi não existir. Cheguei ao zero-espaço, ao nada-tempo, ao eu coincidente com vós-tudo, e conclui: No meio do nevoeiro é preciso conduzir o barco devagar.


Serei o que fui, logo que deixe de ser o que sou; porque quando fui forçado a ser o que sou, foi porque era o que fui.

Pesquisar em

Páginas

quinta-feira, 8 de março de 2012


PALAVRA E AB-REAÇÃO – (IN)EFICÁCIA PSICANALÍTICA
Numa outra ocasião fizemos algumas formulações essenciais à psicanálise. No tocante à teoria estabelecemos a relação do inconsciente com o recalque. No tocante à técnica estabelecemos o seu ordenamento no campo da palavra. Contudo, essas são formulações que têm longo percurso histórico na psicanálise. Procederemos agora à abordagem do percurso histórico que conduziu Freud à descoberta fundamental da psicanálise – o inconsciente – abordando, na sequência, os desenvolvimentos a que esta descoberta deu lugar.
No período histórico relativo aos Estudos Sobre a Histeria a técnica presente na sugestão hipnótica consistia em tornar consciente o inconsciente. Contudo, não levará muito tempo para que Freud perceba que a sugestão hipnótica mais ocultava do que revelava o inconsciente. O objetivo técnico de tornar consciente o inconsciente faz parte, portanto, do período histórico da psicanálise.
Nos anos de 1893-1900, primórdios da psicanálise, o método da sugestão hipnótica, que objetivava a catarse através da ab-reação, “[...] consistia em focalizar diretamente o momento em que o sintoma se formava [...]” (Freud, 1980 [1914b], p. 193). O manejo técnico, neste período, consistia em “[...] colocar em foco um momento ou problema específico” (p. 193). O objetivo técnico consistia, portanto, essencialmente em se descobrir a causa desencadeante dos sintomas. Freud percebe, neste mesmo período, que havia uma resistência no paciente que se opunha a que as idéias inconscientes se tornassem conscientes, isto é, que havia uma resistência a ser superada e que tornava necessário o recurso à sugestão hipnótica.
De fato, nestes anos iniciais, a técnica psicanalítica consistia em tornar consciente o inconsciente, compreendido, neste mesmo período, como um estado de segunda consciência onde as lembranças não ab-reagidas se alojavam. Sabemos que essa noção de inconsciente compreendido como estado de dupla consciência ou estado de consciência dividida sofrerá, posteriormente, da parte do próprio Freud severas críticas, ocorrendo o mesmo com o método da sugestão hipnótica. Sublinhemos, portanto, que o método da sugestão hipnótica utilizada na origem da história da psicanálise se apoiava nas elaborações teóricas produzidas naquele período, e que tornar consciente o inconsciente significava, nestes tempos idos, tornar manifesto, conhecido à consciência o fator traumático causal que se encontrava subjacente aos sintomas histéricos. Neste período Freud (1980 [1893-1895a]) relata que “[...] cada sintoma histérico individual desaparecia imediatamente e permanentemente quando conseguíamos evocar, nitidamente, a lembrança do fato que o provocou e despertar a emoção que o acompanhava, e quando o paciente havia descrito aquele fato com maiores detalhes possíveis e traduzirá a emoção em palavras” (p. 47).
Freud observava que os sintomas histéricos desapareciam quando ab-reagidos, isto é, que os sintomas desapareciam quando ocorria a descarga das emoções que estavam ligadas aos acontecimentos traumáticos através do recurso à palavra. Os acontecimentos traumáticos deveriam receber expressão verbal por parte do sujeito, meio através do qual haveria uma catarse. Lacan, no Seminário Livro 7 (1991), assinala que na antiga Grécia, com Hipócrates, o termo catarse traduzia-se habitualmente como “purgação” e estava relacionado à noção de eliminação das tensões, aludindo também a idéia de uma “purificação” (p. 297). No ponto de elaboração teórica em que nos encontramos hoje sabemos que a ab-reação consistia essencialmente em dar nome, simbolizar, pelo recurso à linguagem, um real vivido não integrado ao sistema simbólico do sujeito.
No período em que Freud utilizava-se do método da sugestão hipnótica o objetivo da psicoterapia era o de percorrer os caminhos que haviam conduzido à formação dos sintomas, isto é, partia-se dos sintomas manifestos até chegar-se à localização das causas que o haviam determinado. Encontrar a causa que estava na origem dos sintomas era de capital importância neste período, posto que a lembrança do trauma que não havia sido ab-reagido permanecia no aparelho psíquico funcionando como um “corpo estranho”. Nesta época Freud relatou ficar deveras impressionado com o fato de que a lembrança do trauma permanecia, muito tempo após a sua ocorrência, eficaz, vivo enquanto agente etiológico dos sintomas atuais do sujeito.
Freud observava ainda que havia uma desproporção no tempo entre o surgimento dos sintomas e o evento traumático desencadeante, constatando que, por um lado, o sintoma não aparecia logo após a ocorrência do fator traumático e que, por outro, este permanecia presente no psíquico como se fosse uma força atual e em constante atividade. Devemos ainda acrescentar que, neste mesmo período, Freud elabora que uma cena só se torna traumática quando transformada em lembrança a partir de sua evocação por meio da repetição de uma cena análoga. “Neste sentido, o caso Katharina é típico. Em todo caso de análise de histeria baseada em traumas sexuais, verificamos que as impressões do período pré-sexual que não produziram nenhum efeito na criança atingem seu poder traumático num dado posterior como lembrança” (Freud, 1980 [1983-1895c], p. 182).
Alguns pontos de elaboração efetuados por Freud no período de 1893 a 1900 são dignos de nota e merecem, portanto, destaque, posto constituírem-se nos germens da futura teoria do inconsciente e do método da livre associação a ele intimamente relacionado. Neste mesmo período Freud destacava, como fato marcante, que nas neuroses traumáticas não havia um trauma principal isolado, mas, sim, uma série de traumas parciais agrupados, formando um grupo de causas desencadeantes. Freud observou que a conexão entre esses grupos causais e os sintomas dele decorrente obedecia, no mais das vezes, a uma conexão causal de ordem simbólica e não cronológica ou factual. A conexão simbólica determinava que o evento traumático, ou grupos de eventos traumáticos, que despertavam uma emoção penosa, do tipo náusea moral, poderia manifestar-se sob a forma de um sintoma histérico de vômito, por exemplo. Freud observou, portanto, que se estabelecia uma associação por laços de semelhança simbólica entre o sintoma e o que funciona como sua causa precipitante (Freud, 1980 [1893-1895a], p. 45). A noção de conexão simbólica elaborada por Freud neste período evoca a noção lacaniana da metáfora, elaborada com base na lei de condensação, como mecanismo constitutivo dos sintomas neuróticos.
Evocamos a noção de relações causais simbólicas estabelecendo sua relação com a metáfora no intuito de apontarmos o quanto estava presente, nos primórdios da psicanálise e no espírito de Freud que a originou – ainda que de forma incipiente e embora haja toda uma distância de ordem conceptual e cronológica a ser percorrida –, a noção de relações analógicas de cunho simbólico e de como esta noção, ao longo da obra freudiana e lacaniana, foi ganhando em vigor conceptual.
Freud destaca, portanto, a possibilidade de relações causais de ordem simbólica na etiologia dos sintomas. Outro ponto destacado por Freud, e de não menor importância, refere-se ao fato de que havia, por parte do paciente, uma perda de memória no que concerne a estas relações simbólicas. A lembrança do evento traumático permanecia engramada no psíquico, mas, quanto à sua ação eficaz na produção dos sintomas, o paciente nada relacionava. É a este propósito que Freud chega à conclusão de que “os histéricos sofrem principalmente de reminiscências.” (p. 48). Sabemos hoje o quanto devemos a essa elaboração o conceito, elaborado posteriormente, de fantasma.
Freud observava que os eventos traumáticos, que não haviam sido ab-reagidos no momento oportuno, despertavam emoções penosas que permaneciam vinculadas à lembrança traumática. A cura requeria uma liberação da emoção “estrangulada” por meio da fala, na medida em que, para Freud “[...] a linguagem serve de substituto para a ação” (p. 49). “Cura pela palavra”, assim denominou Ana O, a mais famosa das histéricas, o tratamento pela psicanálise Verificamos, guardadas as devidas proporções, e que de fato não são poucas, de ordem tanto teóricas quanto técnicas, que a catarse em Freud consistia numa purificação pela via liberadora da palavra. De acordo com o que se elaborava neste período, tornar algo consciente consistia precisamente em restabelecer as conexões causais simbólicas perdidas, fato que se torna tão mais marcante quando lembramos que em A Psicoterapia da Histeria (1980 [1893-1895b]) o pressuposto teórico de estados de dupla consciência cede lugar à teoria da defesa implicada no mecanismo do recalque. Como vemos, o conceito de recalque, conceito chave da teoria do inconsciente, tem longo percurso histórico na psicanálise.
Com a introdução da teoria da defesa, Freud não estava recusando a teoria dos “estados hipnóides” presentes na histeria, mas, sim, afirmando-os como estados adquiridos por meio da defesa, e já não mais, portanto, como o resultado de uma pré-disposição constitucional herdada. Freud não recusava, neste período, a existência de “estados hipnóides”, mas afirmava que os mesmos dependiam inteiramente do mecanismo psíquico da defesa compreendido como “fator primário”. Freud desejava sustentar um achado: o mecanismo psíquico da defesa posta em jogo no recalque. O recalque foi definido neste período como o processo através do qual determinados grupos de idéias eram dissociados da cadeia consciente, vindo formar uma cadeia inconsciente. A “histeria hipnóide”, juntamente com a teoria que a sustentava, cedeu terreno à nova designação clínica – “a histeria da defesa”. Fato que, aliado a uma série de outros, fez com que Freud já não se mostrasse mais tão otimista quanto aos alcances terapêuticos obtidos através da utilização da técnica da sugestão hipnótica. De todos os modos, a prática da sugestão hipnótica, e a experiência obtida através da mesma por Freud, constituiu-se num valioso subsídio para a posterior elaboração do fenômeno da sugestão implicado na transferência, de tal forma que, em Freud, o manejo da transferência constitui-se no fundamento ético[1] da prática psicanalítica.
Desenvolvíamos acima que a noção de fios de associações lógicas simbólicas, cuja relação fora esquecida pelo paciente, foi ganhando vulto em relação à noção de eventos traumáticos isolados como causa desencadeante de sintomas. Nesta mesma ocasião, Freud elabora que não havia uma única lembrança, uma única idéia patogênica, mas uma sucessão de “traumas parciais”, formando uma verdadeira concatenação de idéias patogênicas múltiplas.
O material psíquico patogênico, de acordo com Freud, encontrava-se organizado sob a forma de uma estrutura relacional estratificada segundo três ordens diversas. Dito de outra maneira, havia um certo número de lembranças ou de “sequência de pensamentos” (Freud, 1980 [1893-1895b], p. 345) que se dispunha a partir de um núcleo traumático até sua manifestação nos sintomas, onde o núcleo traumático culminava. Em torno deste núcleo, como que envelopando-o, encontrava-se um abundante material disposto de acordo com três ordens de organização.
Havia, em primeiro lugar, uma disposição cronológica sequencial, um ordenamento linear do material mnêmico; uma espécie de arquivo bem ordenado de lembranças dispostas segundo uma ordem cronológica invertida, onde as lembranças mais recentes eram as que surgiam em primeiro lugar, e, no fina,l encontrava-se a lembrança traumática em torno da qual as demais lembranças se encontravam ligadas. Havia, portanto, um arquivo mnêmico que conduzia dos sintomas manifestos até o núcleo traumático Em segundo lugar, havia um arranjo temático, já não mais cronológico. Neste, uma série de temas encontravam-se ligados entre si e ordenados em torno do tema principal numa ordem de estratificação temática na qual em cada estrato encontrava-se uma resistência que aumentava a medida em que se aproximava do núcleo patogênico.
Por fim, a terceira e mais importante forma de organização do material psíquico, uma forma de arranjo que não obedecia à cronologia e nem à semelhança temática. A terceira forma de organização do material psíquico ordenava-se de acordo com o “conteúdo do pensamento”, no qual a concatenação das idéias ocorre de acordo com certos fios lógicos que as ligavam entre si. Essa forma de organização, diversamente da ordem temática, não era concêntrica, mas sim em forma de “ziguezague”. Uma forma de associação segundo uma certa ordem lógica que evoca a imagem de uma ramificação arbórea.
Essas formas de estratificações do material psíquico conduziram Freud a conclusão de que “[...] é notável como muitas vezes um sintoma é determinado de várias maneiras, é ‘superdeterminado’” (p. 347).

Referências
Alexander, F., Eisenstein, S. & Grotjahn, M.(Orgs). (1981). A História da Psicanálise através de seus Pioneiros. Rio de Janeiro: Imago Editora.
Birman, J. (1978). Demanda Psiquiátrica e saber Psicanalítico. In: S. Figueira (Org.). Sociedade e Doença Mental (pp 205-225). Rio de Janeiro: Editora Campus.
Calligaris, C. (1993). Indivíduo e sociedade. In. M. Fleig (Org.). Psicanálise e sintoma social pp. 183-196). São Leopoldo: Unissinos.
Chemama, R. (19??). (Org.). Dicionário de Psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas.
Descartes, R. (1987-1988). Meditações; Objeções e respostas; Cartas. São Paulo: Nova Cultura.
Fiorini, H. J. (1955). Teoria e Técnicas de Psicoterapias. São Paulo: Francisco Alves.
Freire-Costa, J. (1978). Psicoterapia Breve: uma abordagem Psicanalítica. In: S. Figueira (Org.). Sociedade e Doença Mental (pp. 227-241). Rio de Janeiro: Editora Campus.
Freud, S. (1980 [1886]). Relatório sobre meus estudos em Paris e Berlim. In : Obras Completas, vol.I. Rio de Janeiro : Imago.
Freud, S. (1980 [1892-1893]). Um caso de cura pelo hipnotismo. In : Obras Completas, vol. I. Rio de Janeiro : Imago.
Freud, S. (1980 [1893-1895a]). Estudos sobre a histeria. Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos. Comunicação preliminar In : Obras Completas, vol. II. Rio de Janeiro: Imago.
Freud, S. (1989 [1893- 1895b]). Estudos sobre a histeria. A psicoterapia da histeria. In : Obras Completas, vol.II. Rio de Janeiro : Imago.



[1] Podemos dar como definição geral que a ética consiste no conjunto de princípios que regem as ações humanas. Neste sentido, pode-se afirmar que a ética encontra-se presente num vasto número de campos teóricos, epistemológicos e de práticas. Entretanto, pode-se afirmar também que a questão relativa à ética tem na psicanálise uma abordagem específica. Na psicanálise encontramos uma concepção particular sobre a ética  que ligaremos à especificidade de sua concepção de sujeito. A “ética tradicional” (Lacan, 1998, p. 776) se fundamenta e se dirige ao ser, preconizando uma série de princípios e de leis que, ao serem colocadas como referências para as ações humanas, fazem com que esta se dirija ao bem. Para a psicanálise, contudo, a ética não se endereça ao ser, mas a falta a ser fundada no desejo e na castração A obra freudiana inaugura uma ética própria da psicanálise e que se encontra intimamente ligada à noção de sujeito do inconsciente. O sujeito do inconsciente é determinado e, como tal, assujeitado à lei do desejo inconsciente. Tal concepção de sujeito coloca-se nas antípodas de uma concepção que defende a autonomia do indivíduo. Com efeito, a “[...] a marca do significante sobre o falante” (Larousse, s.d., p. 42) faz dele um sujeito submetido às determinações do desejo inconsciente e a castração a qual ele dá lugar. Deste modo, no percurso de uma análise o sujeito é conduzido a confrontar-se com a lei do desejo e com a castração que ele porta. De acordo com Birman (1955), “[...] a análise é a possibilidade de produção de um estilo que se calca na lei da proibição do incesto e na experiência de castração...” (p. 29). Para a psicanálise freudiana não se trata, tal como na Psicologia do Ego, de harmonizar o sujeito com as leis morais sociais, mas, sim de ordenar o sujeito na lei do desejo. Goldemberg (1944), aponta que “[...] a moral seria relativa aos ideais que constituem o eu, enquanto que a ética diria respeito às relações do sujeito com seu desejo inconsciente” (p. 11).
Por outro lado, a ética da psicanálise, no que tange ao analista, consiste em dar voz e escuta ao sujeito do inconsciente. Os princípios técnicos postos em curso na direção do tratamento são princípios éticos que “[...] visam dar lugar à palavra do sujeito do inconsciente e, como não há inconsciente fora do laço transferencial, o manejo da transferência situa-se no âmbito da ética, visando a livre associação” (Baratto, 201, p. 52). Deste modo, a ética do psicanalista consiste em implicar, pelo recurso à palavra, o sujeito com seu desejo, fazendo tombar a ilusão de autonomia do eu. Há, portanto, “[..] uma ética da psicanálise, no sentido de uma ética profissional [..]. Esta abordagem diz respeito à proteção dos ‘clientes’ submetidos ao tratamento psicanalítico contra eventuais abusos cometidos pelos analistas em sua posição privilegiada em função do amor de transferência” ( Kehl, 202, p. 7), e há uma ética que se deriva do percurso de uma análise por parte do analisando. A sustentação de uma posição ética , fundada no desejo, tanto por parte do analista quanto por parte do analisando passa, por seu turno, pelas vicissitudes particulares de uma análise.