A manifestação do
desejo e o sentimento de culpa na interface Descartes e Freud
Em As Paixões da Alma (1987), o pensador cartesiano,
apresenta seis paixões primitivas - admiração, ódio, amor, tristeza, alegria e desejo
- que originarão as paixões secundárias. O norte desta pesquisa consistirá na investigação
específica da paixão desejo. Tal paixão se apresenta como:
(...) Uma agitação da alma
provocada pelos espíritos que a tornam propensa a querer para o futuro as coisas
que se lhe afiguram vantajosas, desse modo não se deseja somente a presença do bem
ausente, mas também, a conservação do bem presente (...) e, além disso, a ausência
do mal (DESCARTES, 1987, p. 156).
A manifestação do desejo coloca o homem em processo de
duplo desenvolvimento. Quando a alma é acometida por esta paixão, torna o corpo
mais bem disposto e, concomitantemente, isso torna os desejos da alma mais fortes
e mais ardentes (DESCARTES, 1987, p. 170).
Destaca-se que a paixão desejo agita o coração com muito
mais intensidade do que as outras paixões, e abastece o cérebro com mais espíritos,
os quais, ao se dirigirem a partir daí para os músculos, fazem com que os sentidos
se tornem mais aguçados e todas as partes do corpo adquiram mais mobilidade (DESCARTES,
1987, p. 164). Por se caracterizar como um sentimento que atinge o corpo tão
fortemente pode-se compreender o desejo como uma manifestação imprescindível ao
desenvolvimento das outras paixões e suas ações decorrentes.
De acordo com Descartes, o desejo possui uma característica
peculiar se comparado às demais paixões. Enquanto essas geralmente se apresentam
a partir de seus opostos - amor e ódio, tristeza e alegria, o desejo não se manifesta
por antítese, mas como uma paixão que tende ao bem e se afasta do mal. Entretanto,
existem algumas paixões que podem acompanhar o desejo e encaminhá-lo em direção
ao que é bom ou, ainda, manifestar-se em sua forma negativa, como desejo enfraquecido.
Ao tender para o bem, o desejo comumente surge em conjunto com o amor, a esperança
e a alegria; ao afastar-se do bem e se enfraquecer, o desejo vacila e associa-se
ao temor, desespero e langor. Neste sentido, o filósofo assinala que não há paixão
contrária ao desejo; o que muda e diferencia suas manifestações são seus objetos
e associações a outras paixões.
Contudo, quando a possibilidade de realização do desejo
é pequena manifesta-se o temor e o medo. O temor pode aparecer também como ciúme
e advém das coisas que são difíceis de serem alcançadas. O temor pode transformar
o desejo em desespero. (...) Porém, quando consideramos se há (...) pouca probabilidade
de conseguir o que se deseja, (...) aquilo que se nos afigura existir pouco estimula
o temor, de que o ciúme constitui uma espécie (DESCARTES, 1987: 144).
Uma associação do desejo a ser destacada, é sua relação
com o amor. Quando há possibilidade de adquirir algo que se encontra distante, a
paixão amor se concentra na elaboração da idéia do objeto amado. O amor junto do
desejo pode, ainda, inibir o desenvolvimento do sujeito. O desejo, que tem como
característica essencial impulsionar o corpo pode ser sublimado pelo efeito do amor
e originar o surgimento do langor.
“(...) O amor ocupa de
tal forma a alma em considerar o objeto amado, que emprega todos os espíritos que
se encontrarem no cérebro em representar-lhe a imagem e detém todos os movimentos
das glândulas que não sirvam para tal efeito. E cumpri notar, no tocante ao desejo,
que a propriedade que lhe atribuí de tornar o corpo mais móvel só lhe convém quando
se imagina que o objeto desejado é tal que se pode desde esse momento fazer algo
que sirva para adquiri-lo; pois se, ao contrário, se imagina que é impossível naquele
momento fazer algo de útil para isso, toda a agitação do desejo permanece no cérebro,
sem passar de modo algum aos nervos, e sendo aí inteiramente empregada em fortalecer
a idéia do objeto amado, deixa o resto do corpo languescente”. (DESCARTES, 1987
[1649], p. 271)
Para Descartes, o langor se exprime como uma tendência
do sujeito de ficar sem realizar movimento. A causa do langor, embora
possa derivar de outras paixões, como ódio, tristeza ou alegria, na maioria das
vezes, advém da união do amor ao desejo, enfraquecendo-o e tornando o sujeito inerte.
Sempre que a paixão desejo vacila, a capacidade de desenvolver
atividades é diminuída ou, até mesmo sublimada se, por exemplo, o enfraquecimento
do desejo culminar em langor. Nesse momento, é comum a ocorrência do sentimento
de culpa, especialmente quando a atenuação do desejo provém de sua relação com o
medo, que segundo Freud é a principal paixão que faz incidir a culpa.
Embora Descartes não tenha abordado especificamente a questão
da culpa, as sensações de desejo, de satisfação, de remorso e de arrependimento
têm direta relação com esse sentimento. O desejo uma vez realizado gera momentaneamente
satisfação. Essa também pode se manifestar por meio da realização de um bem. Porém,
a busca pela realização do desejo pode gerar o remorso se houver dúvida quanto à
sua satisfação. Assim, a alma faz questionamentos na tentativa de identificar a
natureza do desejo e sua consequente satisfação. Devido a tal dúvida ou a falta
de reconhecimento do desejo é comum o aparecimento do remorso. Quando a alma se
convence que algum mal foi realizado surge o arrependimento. Se o remorso pode ou
não resultar em culpa, o arrependimento, por sua vez, é o reconhecimento deste sentimento.
Até as paixões mais nobres são passíveis de culpa, pois um ato benéfico em prol
do próprio sujeito pode resultar em dano para outro. Por conseguinte, surge a culpa
como uma espécie de tristeza resultante da satisfação de um desejo que se configurou
como uma ação má.
Neste sentido, é possível perceber como as considerações
acerca do desejo auxiliam na compreensão do sentimento de culpa. O desejo compreendido
como uma vontade de adquirir um bem que ainda não se possui ou evitar um mal que
julga possível de sobrevir se vincula ao futuro no sentido de orientar para sua
satisfação, ainda que momentânea. Freud, ao desenvolver a questão do desejo, também
o relaciona com a satisfação; neste sentido o desejo não é uma simples necessidade
biológica. Assim, o desejo, além do aspeto físico abre caminho para manifestação
das pulsões, já que auxilia na ligação entre psíquico e somático.
Se para Descartes são as paixões - percepções inevitáveis
- que fazem a vinculação entre corpo e alma, para Freud, é a pulsão aquilo que
faz fronteira entre o psíquico e o somático (FREUD, 1972: 171). A pulsão se
manifesta como uma constante fonte de excitação do organismo, da qual não se pode
fugir. Dito de outro modo, o corpo faz o psíquico trabalhar e esse suplemento
se inscreve como pulsão. Essa proposição vem do fato de ser impossível fugir da
pulsão (MURTA, 2009:13).
Nota-se que, assim como não é possível escapar da pulsão,
também não é possível satisfazê-la e extingui-la totalmente. Sempre se manifestam
novas pulsões visto que a satisfação obtida é sempre menor que a satisfação desejada.
O excedente é fator de impulsão, porque também é ele que gera a falta que, por
sua vez, revigora a exigência da satisfação (MURTA, 2009: 15) e esse
movimento mantém o desejo constante. Pois, mesmo que uma pulsão seja saciada, a
satisfação exigida será sempre maior que a alcançada, fazendo com que o desejo se
revele novamente.
Para evitar os percalços da constante busca por satisfação
e felicidade, Freud destaca que o aparelho psíquico trabalha no sentido de tender
ao equilíbrio. Essa tendência e a produção daí decorrente são expressões do princípio
do prazer e do trabalho conjunto das pulsões de vida e das pulsões de morte (MURTA,
2009:15). As pulsões de morte pertencem/possuem exigência de satisfação total
que culmina em destruição; destarte, as pulsões de vida e possibilitam apenas satisfação
parcial. Deve-se destacar que as pulsões só podem ser compreendidas enquanto correlatas.
Para elucidar a questão da satisfação e da felicidade destaca-se a obra freudiana
Mal Estar na Civilização (1996).
Freud afirma que o ego e o mundo externo ainda não são
diferenciados pelo recém-nascido. Com o passar do tempo, o bebê começa a perceber
que enquanto algumas fontes de excitação ligadas ao seu corpo emanam prazer a qualquer
instante, outras fontes de prazer se distanciam e só re-aparecem após o choro. Um
fator que auxilia na diferenciação do ego com exterior são as infinitas sensações
de sofrimento e desprazer. Surge, então, uma tendência a isolar do ego
tudo o que pode tornar-se fonte de desprazer, a lançá-lo para fora e criar um puro
ego em busca de prazer, que sofre o confronto de um ‘exterior’ estranho e ameaçador
(FREUD, 1996: 76). Assim, por meio das restrições e pelos desprazeres
oriundos da experiência é possível distinguir entre o que pertence ao ego - aspeto
interno do homem - e o que decorre do mundo empírico.
Na relação ego e mundo exterior, a manifestação do sentimento
de felicidade é sempre limitada pela constituição humana, já a infelicidade é a
experiência mais habitual. Ou seja, a felicidade assim como a pulsão, ou o desejo,
nunca é totalmente satisfeita. A compreensão de felicidade em Freud se traduz sob
dois aspetos, a saber: evitar o sofrimento e ter experiências de prazer. O que
pedem eles [os homens] da vida e o que desejam nela realizar? A resposta
mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se por obter felicidade; querem ser felizes
e assim permanecer (FREUD, 1996: 84). A própria vida seria regida por essa constante
busca de satisfação, ou seja, pelo princípio do prazer, o qual domina o funcionamento
do aparelho psíquico de qualquer homem, desde o início de sua vida. A felicidade,
compreendida como a satisfação das necessidades represadas pelo homem, é sempre
representada por um prazer episódico que, se prolongado, se transforma em fonte
de prazer muito leve.
Neste sentido, é possível observar a relação entre a felicidade,
a busca pelo prazer e o afastamento do sofrimento, com o desejo cartesiano. Todos
os primeiros desejos (...) consistiram em receber as coisas que lhe eram vantajosas
e rechaçar as que lhe eram prejudiciais (DESCARTES, 1987:170). Deste
modo, o desejo impulsiona todo o corpo para o afastamento, mesmo que momentâneo,
do mal e para a aproximação do bem.
Em contraste ao princípio do prazer, o princípio de realidade
faz o sujeito perceber as exigências do mundo externo. Neste sentido, a satisfação
alcançada é sempre menor que a desejada, ou seja, nossas possibilidades de felicidade
são sempre restringidas por nossa constituição; e o sentimento de infelicidade é
sempre mais fácil de experimentar (...) (MURTA, 2009:17). A momentânea
sensação de felicidade que o sujeito experimenta manifesta-se como alívio diante
do desprazer causado por intensos sofrimentos. O agravamento deste quadro leva o
homem a diminuir seus desejos relacionados à felicidade e ao prazer. De tal modo,
o princípio do prazer se transforma em princípio de realidade, que leva o homem
a crer que é feliz pelo simples fato de ter afastado o sofrimento e a infelicidade.
Portanto, o intento em evitar a dor coloca o princípio do prazer em segundo plano.
Em Mal Estar na Civilização (1996), se encontram
três possíveis fontes de sofrimento humano: o poder superior das forças naturais,
que podem voltar-se contra nós com forças esmagadoras e impiedosas (FREUD:85);
a fragilidade e a decadência de nossos próprios corpos; e, por fim, o sofrimento
que o autor reconhece como mais penoso: a dificuldade dos homens se adequarem às
regras que buscam ajustar os relacionamentos com os seus, seja, na família, no Estado
ou na sociedade. Para evitar o desprazer advindo dos relacionamentos sociais, o
psicanalista destaca duas possibilidades: ou o sujeito se afasta da vida em comunidade
e experimenta, em certa medida, a felicidade da quietude, ou se rende às condições
impostas pela vida em comunidade, negando seus instintos para o bem de todos.
Para o afastamento do sofrimento, Freud (1996) destaca
que o homem busca satisfações substitutivas, tais como a religião e o amor, que
se contrastam com o princípio da realidade e diminuem a desgraça do indivíduo frente
ao mundo exterior. (...) Cada um de nós se comporta, sob determinado aspeto,
como um paranoico, corrige algum aspeto do mundo que lhe é insuportável pela elaboração
de um desejo e introduz esse delírio na realidade (89). Outro caminho
para fuga do mundo externo é via substâncias tóxicas que tornam o homem insensível
à realidade circundante.
A ocorrência da frustração diante da sociedade sobrevém
dos sacrifícios dos instintos que todos os humanos impõem a si mesmo para tentar
viver em comunidade. Afinal, o homem possui consideráveis quotas de agressividade
e o aparecimento destas ameaçaria a sociedade a se desintegrar. Neste sentido, a
civilização encerra seus esforços para conter a agressividade do homem, distanciando-o
de suas pulsões e de seus desejos.
O autor afirma que o sentimento de culpa
associa-se a renúncia às satisfações instintivas e se origina do medo. Ao se reportar
a Descartes (1987), pode-se compreender o medo como um excesso de covardia, de
assombro e de receio, que é sempre vicioso (...) (213). Para Freud, a culpa
pode provir do medo da autoridade. Outra origem da culpa advém do medo do superego;
neste caso, além da renúncia às satisfações instintivas, exige punição, pois (...)
a continuação dos desejos proibidos não pode ser escondida do superego (FREUD,
1996: 95).
Na ocorrência do sentimento de culpa, proveniente do medo
de autoridade, há renúncia à própria satisfação para que não ocorra perda do amor
da autoridade. Deste modo, ao efetuar a renúncia (...) ficava-se, por assim dizer,
quite com a autoridade e nenhum sentimento de culpa permanecia (FREUD, 1996:
126). O amor se apresenta, neste sentido, como uma busca pela felicidade a partir
do relacionamento emocional com objetos do mundo externo, que podem ser compreendidos
a partir da figura da autoridade.
De tal modo, a obtenção da felicidade advém da busca
de toda satisfação em amar e ser amado (FREUD, 1996:89). A manifestação
mais comum do amor se apresenta como o amor sexual, capaz de proporcionar intensas
experiências de prazer e fornecer ao homem um modelo para busca da felicidade. No
entanto, é comum ao sujeito experimentar o sofrimento enquanto ama, bem como, sentir-se
desamparado e infeliz quando perde o objeto amado e o seu amor. Para evitar tais
sofrimentos recorre à renúncia das satisfações instintivas e evita-se a perda do
amor e o sentimento de culpa.
Além da renúncia às satisfações instintivas devido ao medo
da autoridade, ao se considerar os esforços que a civilização emprega para não se
destruir, destaca-se uma motivação interna para ocorrência da culpa, o superego.
Este pode ser compreendido como uma instância psíquica que tem por função domar
as pulsões agressivas dos homens. Neste sentido, o superego seria constituído a
partir do sentimento de culpa, ou seja, pelo ônus de nossos avanços enquanto civilização
a partir da negação de nossos impulsos e pelo afastamento da felicidade. Para melhor
compreensão do aspeto interno da culpa, Freud esclarece:
O superego é um agente
que foi por nós inferido e a consciência constitui uma função que, entre outras,
atribuímos a esse agente. A função consiste em manter a vigilância sobre as ações
e as intenções do ego e julgá-las, exercendo sua censura. O sentimento de culpa,
a severidade do superego, é, portanto, o mesmo que a severidade da consciência.
É a perceção de que o ego tem de estar sendo vigiado - avaliação da tensão entre
os seus próprios esforços e as exigências do superego. O medo desse agente crítico
(medo que está no fundo de todo relacionamento), a necessidade de punição, constitui
uma manifestação instintiva por parte do ego (...) (FREUD, 1996:128).
A renúncia instintiva, efetuada no primeiro caso, não possui
mais efeito. Deste modo, a infelicidade gerada pelo sentimento de culpa não possui
motivador externo (castigo da autoridade ou perda do amor), a infelicidade interna
motivada pelo superego pode tornar-se permanente com o sentimento de culpa.
Destaca-se que a educação e a cultura são fatores externos
fundamentais na formação do superego. O superego cultural, fruto dos costumes de
uma sociedade, tem como exigência a ética. Tanto o superego individual, quanto o
cultural formam uma consciência moral, ou seja, possuem o mesmo intuito de conter
os instintos para a não dissolução da civilização. O sentimento de culpa pode acarretar
tanto um ato violento concretizado quanto um ato violento pretendido.
Em conclusão, o sentimento de culpa deriva da ambivalência
do sentimento: ou agir agressivamente ou abster-se da ação que, indiferente da intenção,
resulta em culpa. Outra motivação deste sentimento será a constante luta entre Eros
e o instinto de destruição. Neste sentido, a possibilidade da infelicidade externa,
representada pela perda de amor e castigo da autoridade externa é substituída por
uma permanente infelicidade imposta pelo sentimento de culpa. Assim, ao conter os
instintos o sentimento de culpa cumpre sua finalidade e mantém a integridade da
civilização.
Referências Bibliográficas
1 - Descartes, R. As
Paixões da Alma. Tradução de Pascale Darcy. São Paulo: Martins Fontes. 1987
[1649].
2 - Freud, Sigmund, Mal
estar na civilização. Obras completas, Rio de Janeiro: Imago1996 [1929] v. X.
3 - Murta, C. Humanização,
vida e morte. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação
à Distância, 2009.
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