Pasárgada

…Cheguei no momento da criação do mundo e resolvi não existir. Cheguei ao zero-espaço, ao nada-tempo, ao eu coincidente com vós-tudo, e conclui: No meio do nevoeiro é preciso conduzir o barco devagar.


Serei o que fui, logo que deixe de ser o que sou; porque quando fui forçado a ser o que sou, foi porque era o que fui.

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quarta-feira, 21 de maio de 2014

O PENSAMENTO KANTIANO E SUA FILOSOFIA CRÍTICA
Com este título, queremos aqui dar uma vista de olhos à Obra de Kant, apresentando as indeias principais que ele nos deixou, contextualizando-as na história da Filosofia Ocidental. É extrato de um texto resultante de pesquisas e reflexões que temos feito sobre a herança filosófica que Kant nos deixou.
Falando de filosofia crítica kantiana estamos em sua arquitetônica filosófica – as chamadas Críticas (Crítica da Razão Pura, Crítica dos Costumes e Crítica do Juízo).
Devemos considerar, desde início que a Obra de Kant, geralmente, é dividida em duas grandes fases, a primeira, chamada Pré-Crítica, que vai de 1755 a 1770, e a segunda de Criticismo, de 1781 até 1790. Na fase pré-crítica, Kant debate todo tipo de tema, indo desde a teoria do céu - História Universal da Natureza e Teoria do Céu, publicado anonimamente em 1755 – até os silogismos de lógica clássica – Acerca da Falsa Sutileza das Quatro Figuras do Silogismo (1762). Aqui, não há ainda uma organização sistemática dos conceitos e idéias trabalhados. Mas já podem ser notadas noções que serão mobilizadas e sistematicamente agrupadas, mais tarde. A partir de sua famosa Dissertação de 70, ou Acerca da Forma e dos Princípios do Mundo Sensível e do Mundo Inteligível, Kant lança a linha de pesquisa e os conceitos principais que orientarão o plano arquitetônico de sua fase crítica, ao mesmo tempo em que conseguia uma almejada colocação na Universidade de Koenigsberg.
Durante os onze anos que se seguiram, monta então um método de análise das questões metafísicas que só terá seus alicerces expostos por inteiro na primeira crítica, a Crítica da Razão Pura (1781, doravante CRP). Com CRP, fica estabelecida a divisão fundamental das faculdades do pensamento em três partes: conhecimento, juízo e razão. O conhecimento da natureza objetiva das coisas é tratado pela própria CRP. A razão e suas idéias de liberdade e vontade boa são abordadas na Crítica da Razão Prática (1788). À Crítica da Faculdade de Julgar(1790, doravante CJ), restou o tratamento dos limites da formação de proposições técnicas e da arte, ao realizarem um fim na natureza.
Em sua fase crítica, Kant escreveu vários outros opúsculos – de "O Que é Esclarecimento?", de 1783, até Lógica (1800) - que preparavam a passagem de uma etapa da crítica para outra; divulgava os pontos principais de seu método; além de debater as disciplinas da história, do direito, política, educação, religião, antropologia e lógica, sempre sob a ótica do criticismo.
Os textos de Kant diretamente relacionados com a arte são o opúsculo pré-crítico“Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime” (1764) e a Crítica do Juízo (CJ). Porém, a CRP traz definições importantes acerca do conceito de estética e do papel da imaginação que, se forem ignoradas, podem gerar interpretações equivocadas em relação à sua concepção de arte. Em Observações, são relacionadas várias noções, hipóteses e exemplos de sentimentos de gosto e moral. O texto carece de definições mais precisas. As duas primeiras seções esboçam uma teoria do gosto e da moral, enquanto as terceira e quarta seções traçam uma visão antropológica dos caracteres humanos, a qual foi alvo de ataques das feministas, no século XX. Contudo, sua leitura serve como roteiro inicial dos conceitos e idéias que serão melhor trabalhados na CJ. São visíveis as influências dos filósofos escoceses, o que lhe valeu a alcunha de “Hume prussiano”. Em suma, são os projetos de uma futura crítica da razão prática e do gosto que se encontram ali.
Na "Estética" e na "Lógica Transcendental", que subdividem a CRP, há uma definição de estética, como forma da sensibilidade, que difere radicalmente do uso comum do termo lançado por Baumgarten. Para Kant, os juízos relacionados à arte dizem respeito à faculdade do juízo e formação do gosto (teoria da arte, como técnica de realização de um fim da natureza). Por outro lado, a estética kantiana visa definir os limites da sensibilidade na forma dos conceitos de espaço e tempo, que antecedem a toda experiência sensível. Além disso, a CRP faz a classificação das faculdades mentais; da imaginação, razão, entendimento e sensibilidade, bem como as definições conceituais que servem de base a todo sistema kantiano, incluindo a CJ.
Na CJ, essas classificações reaparecem ao mesmo tempo em que se busca apontar a finalidade da natureza humana, antecipando a resposta à pergunta “o que é o homem?”, que só aparecerá publicada na Lógica. Tal como nas Observações, é um passo para sua antropologia filosófica, mas agora sistemático e consistente. Aqui, se encontram as limitações de universalização dos juízos de gosto, em seu lugar sendo postulada, entretanto uma generalização argumentada. É o famoso conflito entre objetividade e subjetividade que atravessa toda arte moderna. A solução recairá sobre a tentativa de consenso. Um achado que influenciará Hannah Arendt (1906-1975) e Juergen Habermas dois séculos depois. Também é discutido o papel dos interesses e definidos o belo e o sublime. Por fim, há uma caracterização do gênio artístico que incendiará as mentes de Hegel e Schopenhauer, forjando todo movimento romântico do século XIX.
Observações e Primeira Crítica
Embora as Observações sejam consideradas obra da juventude de Kant, o fato é que seu autor já completava 40 anos na época de sua publicação. A razão pela qual não se permite incluir os artigos deste período entre os textos maduros decorre do método rigoroso estabelecido pelo próprio Kant para expor seu pensamento, após a Dissertação de 70. Por conta disso, os títulos anteriores a 1770 são geralmente caracterizados como assistemáticos e carentes de definições mais precisas em vários campos.
Contudo, autores, como Hannah Arendt, chamam atenção para a importância desses pequenos ensaios iniciais quando se trata de interpretar os últimos textos da fase crítica ou os temas que só foram abordados em pormenor no final da vida de Kant, afetada aqui e ali pela senilidade. As questões ligadas à arte estão entre aquelas atingidas por essas circunstâncias. Depois das Observações, Kant só veio trabalhar diretamente o assunto em 1790, com a publicação de CJ, sua terceira e última grande obra crítica.
As Observações são ainda marcadas pela influência do conceito de benevolência de David Hume (1711-1776), bem como todas as teorias sobre o sentimento moral debatidas desde o lorde e filósofo inglês Anthony Ashley Cooper (terceiro conde de Shaftesbury, 1671-1713), autor de Investigações sobre a Virtude (1699), até o filósofo e economista escocês Adam Smith (1723-1790) - Teoria dos Sentimentos Morais (1759). Kant ainda se percebia próximo às origens escocesas de sua família, a ponto de ser chamado de “Hume prussiano” pelo teólogo alemão Johann Georg Hamann (1730-1788), um conterrâneo seu. Não obstante, na passagem para o criticismo, toda essa presença dos sentimentos morais será minimizada em função dos ditames da razão. É só no final da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) que haverá uma ligeira retomada dos sentimentos como motivação relevante para moralidade [1], mas que logo se desfaz com o lançamento da Crítica da Razão Prática (1788), onde perdem lugar em definitivo para o faktum da razão.
Nas Observações, as concepções de arte estão misturadas com moral, antropologia e mesmo com política – caso se aceite a tentativa de Arendt resgatar aspectos sociológicos em Kant, desde a fase pré-crítica [2]. Para quem pretende investigar a teoria da arte kantiana, entretanto, faz-se necessário procurar refinar suas primeiras concepções sobre o tema, a fim de evitar distorções na leitura posterior dos mesmos conceitos na CJ. Além do mais, tratam-se de meras observações ou descrições e não de argumentação ou justificação filosófica.
Ao longo das três críticas, as faculdades mentais humanas foram sendo criteriosamente classificadas. A CRP procurou delimitar o alcance da razão, enquanto buscava um fundamento seguro para a produção do conhecimento racional. A Crítica da Razão Prática expôs a faculdade da razão prática e sua capacidade de formular leis que orientassem a ação humana. Por fim, a CJ visou apresentar o método de subsunção dos conceitos aos fenômenos e a consequente formação de juízos de avaliação, incluindo o gosto artístico.
Observações de um Filósofo
Logo no primeiro parágrafo do ensaio de 1764, as sensações de prazer são consideradas atributos próprios dos seres humanos, um sentimento que lhes seria interno, e nunca o efeito de uma característica qualquer das coisas externas. Com isso, Kant descartava de imediato toda teoria das formas platônicas que colocasse a beleza em um mundo harmônico ideal, completamente independente do sujeito. Porém, ao propor critérios de avaliação de modo subjetivo, um velho problema ressurge toda vez que se postula valores artísticos objetivos perante outro sujeito. Só depois de descartadas as soluções sentimentalistas dos escoceses, um quarto de século mais tarde, é que tentou Kant resolver a questão da objetividade apelando a uma solução de compromisso pela plausibilidade, através de um consenso discursivo, na CJ.
Enquanto essa resposta comunicativa não vinha, a universalização dos valores, em arte, seguiu a sugestão de Francis Hutcheson (1694-1746), Hume e outros que defendiam sentimentos naturais partilhados pela maioria da humanidade, sem mais se argumentar em favor de critérios tão subjetivos. Subjetividade, aliás, que seria uma constante em toda arquitetônica kantiana. Assim, nas duas primeiras críticas, o fato da racionalidade passará a ser suficiente para garantir a objetividade do conhecimento e deveres morais impostos pela faculdade da razão. Já na terceira crítica, por se tratar do gosto, o apelo a uma faculdade de julgar não será o bastante para apontar um objeto ou juízo valorativo capaz de ascender a universalização, sem a observância de uma finalidade na natureza (teleologia), ou pelo menos um consenso argumentado.
Antes de chegar a essa conclusão, nas Observações, Kant expõe apenas o ponto de vista de um observador comum que se abstém de argumentar como filósofo ao descrever o sentimento do belo e do sublime. À primeira vista, percebe-se, no entanto, que os candidatos ao gosto refinado precisam atender a certos requisitos, como, por exemplo, estar o mais distante possível das inclinações [3]. Os sentimentos do belo e do sublime teriam por função proporcionar sensações para coisas agradáveis e leves; bem como para objetos imponentes e intensos, respectivamente. Ou seja, para fruição da beleza e contemplação do sublime. Esses sentimentos, por sua vez, estariam relacionados a três temperamentos típicos: o melancólico, o sanguíneo e o colérico, sendo os fleumáticos considerados completamente destituídos de sentimentos morais.
A partir da segunda seção, o entendimento é posto ao lado das coisas sublimes, enquanto as habilidades práticas são vinculadas ao belo. Estas e outras tantas classificações arbitrárias implicariam também na possibilidade de se considerar belos e sublimes aspectos contraditórios, viciosos e a fraqueza moral, ressalvadas as deliberações da razão em contrário. Nesses casos, fica flagrante alguma dose de relativismo nas definições do gosto que Kant não tenta refutar àquela altura, nem explicar [4]. Mas fica também evidente que uma atribuição superficial do belo e do sublime pode ser feita sempre que esta for calcada em aparências ou condição social, nas deliberações sobre o assunto.
Para haver um equilíbrio nas ponderações, é preciso que se recorra a uma harmonia nas proporções que seja própria à natureza humana [5]. Nesse sentido, sempre que se seguisse princípios adequados poder-se-ia chegar ao sublime. Porém, as virtudes que conduzissem ao cumprimento do dever e à inclusão universal da humanidade seriam pertinentes ao sublime. Surge aqui, então, a necessidade básica de se encontrar regras restritivas das ações e das influências das inclinações, no intuito de permitir o florescimento da verdadeira virtude (amor universal pela humanidade - [6]).
Moral e arte misturam-se em função da dignidade humana, orientando as escolhas que considerem os interesses de todos. Tais sentimentos sublimes seriam encontrados em pessoas com caráter melancólico. Ao passo que, os sanguíneos e os coléricos tenderiam ao belo. Já os fleumáticos seriam desprovidos de sentimentos refinados.
Em suma, as duas primeiras seções das Observações mostram, em geral, que, para se alcançar o sublime, alguns elementos críticos sugeridos são necessários, tais como conexões entre as sensações e o entendimento, vinculação a princípios, universalização dos interesses, restrições às inclinações e um projeto da natureza para os seres humanos.
O Conceito de Estética
A sistematização de todas essas concepções começa a partir da CRP. O plano arquitetônico esboçado por Kant obrigou, entretanto, que se rejeitasse as iniciativas pioneiras de Alexander G. Baumgarten, sobretudo no que dissesse respeito ao conceito de estética. Em sua obra monumental Aesthetica (1750/58), Baumgarten havia proposto uma definição para o termo “estética” como a ciência das coisas sensíveis, incluindo aí a faculdade de julgar e a possibilidade de se chegar ao aperfeiçoamento do conhecimento sensitivo [7].
Kant opôs-se a esse projeto e, na CRP, restringiu o uso do termo “estética” apenas à consideração das formas da sensibilidade, única parte da crítica do gosto digna de ser considerada científica, isto é, capaz de contribuir para formação das leis a priori do conhecimento, em geral. Quanto à faculdade de julgar, ou o Juízo, caberia ainda um lugar de destaque na Crítica, mas a análise completa dedicada apenas ao gosto só apareceria na publicação da CJ, nove anos mais tarde.
O objetivo de Kant na primeira crítica era encontrar uma base sólida para a metafísica, ou do conhecimento filosófico puro. Kant pensava que a física, a matemática e a geometria de seu tempo já haviam encontrado formas de conhecimento que satisfizessem seu estatuto científico, enquanto a metafísica não era capaz de fornecer, sequer, um juízo sintético a priori. Com isso, Kant queria dizer que para uma atividade ser considerada científica era preciso que esta apresentasse proposições, ou enunciados, que fornecessem informações adicionais sobre o sujeito estudado e, além disso, que transcendessem a qualquer experiência, isto é, que fossem entendidas sem o recurso das relações aparentes das coisas materiais, mas passíveis de universalização. Tal juízo deveria estar livre do contato com a experiência, para ser um instrumento preciso da razão humana. A posse de um conhecimento puro seria importante para qualquer ciência, uma vez que tal conhecimento garantiria a sua necessidade e fundamentação para suas hipóteses.
Todas as ciências teóricas - a matemática, geometria e a física -, imaginava Kant, teriam juízos sintéticos a priori como seus princípios fundamentais, caberia agora à metafísica encontrar seus princípios sintéticos uma vez que ela teria como fonte apenas o conhecimento puro a priori. O passo seguinte para solucionar esse problema seria descrever a estrutura da razão que produz tais juízos. Na "Doutrina Transcendental dos Elementos", primeira divisão da CRP, Kant apresentou em primeiro lugar uma "Estética Transcendental", onde mostrava os princípios da sensibilidade a priori. A sensibilidade, nesse sentido, seria a capacidade de receber representações dos objetos percebidos. Através da sensibilidade os objetos são dados e a intuição empírica é fornecida, de acordo com as sensações provocadas pelos objetos. Os objetos da intuição empírica são chamados fenômenos. Os conceitos relativos aos fenômenos são gerados pelo entendimento, tendo por base apenas as intuições da sensibilidade. Além das intuições empíricas, a sensibilidade forneceria as intuições puras como formas próprias, não dependentes de um objeto real dos sentidos, mas a condição para que estes sejam percebidos em sua figura e duração. Tais intuições puras a priori seriam o sentido externo do espaço, onde os objetos são representados como sendo do lado de fora do sujeito, e o sentido interno do tempo que representa dentro do sujeito a sensação de passagem ou permanência de um objeto. Tempo e espaço não seriam conceitos empíricos, mas a condição da sensibilidade para que a experiência se tornasse possível, portanto, antecedendo a esta.
Logo, na Estética Transcendental, a sensibilidade ocupa um lugar central como a faculdade receptiva das representações em seu contato com o mundo empírico. Destarte, produziria intuições que depois de serem sintetizadas pelo entendimento, gerariam conceitos sensíveis ou puros. Quando puras, as intuições corresponderiam às formas da sensibilidade que abrem passagem para as coisas externas e internas, por meio do espaço e do tempo, respectivamente. Estes são os principais conceitos da sensibilidade, existentes antes de qualquer experiência (a priori), que autorizam conceber a estética transcendental como uma ciência da faculdade representativa, tal como Kant entendia as ciências, no lugar da estética geral, ou crítica do gosto, que ele criticava em Baumgarten.
A Faculdade de Julgar
Depois disso, restaria detalhar como o entendimento produz as representações e o conhecimento daquilo que é percebido pela sensibilidade. A Lógica Transcendental vem determinar a origem e o alcance desses conhecimentos. Na estética, Kant concluiu que só é possível ter intuições sensíveis e que as supostas intuições puras, nada mais são que as formas puras da sensibilidade - espaço e tempo - que permitem a percepção externa e interna dos objetos. Assim, apoiado em intuições sensíveis o entendimento deveria pensar os objetos, a fim de gerar o conhecimento, pela união da intuição com o pensamento. Não obstante, para que fosse um conhecimento puro conveniente à metafísica, a lógica transcendental deveria analisar também se existe algum conceito realmente puro e independente da sensibilidade. Caso houvesse, esse conhecimento oriundo de idéias transcendentais seria o objeto adequado da razão pura.
A Lógica Transcendental, em resumo, estaria voltada para o estabelecimento de regras do entendimento e a consequente formação do conhecimento. Além disso, nesta parte seria feita a análise geral da imaginação e da faculdade de julgar, em geral, mas que são também pertinentes à teoria da arte. Ao tratar da imaginação [8], Kant lhe atribui um papel importante, pois, uma vez que o sujeito atinja a unidade sintética da apercepção – a consciência de si mesmo como um Eu capaz de garantir objetividade as suas formas de pensamento (categorias de quantidade, qualidade, relação e modalidade) -, nela seriam formados esquemas dos objetos e do próprio sujeito consciente que proporcionariam ao juízo relacionar os conceitos gerados pelo entendimento aos fenômenos. A imaginação poderia fazer representar os diversos objetos, mesmo sem estes estarem presentes na intuição sensível. O entendimento só seria capaz de fazer a síntese intelectual do conhecimento a priori. Para fazer a síntese figurada da diversidade dos objetos seria preciso, então, a participação da imaginação.
Neste ínterim, a função da faculdade de julgar estaria em ligar os esquemas da imaginação produtiva com os fenômenos, subsumindo-os às regras fornecidas pelo entendimento. Nesta tarefa, o Juízo dependeria tão somente do “bom senso”, uma prática que não pode ser ensinada, por se tratar de um dom natural de cada um [9]. Graças ao Juízo, o entendimento poderia operar os esquemas e chegar ao conhecimento fenomenal, relacionando-os, por sua vez, com as categorias engendradas pelo sentido interno na síntese do sujeito. Por fim, os objetos passariam a fazer sentido e o universal poderia ser vinculado à experiência, embora o conhecimento da coisa em si, continuasse sempre inacessível aos humanos.
No restante da CRP, Kant se esforçou em demonstrar as limitações da razão pura ao estabelecer seus raciocínios e idéias transcendentais, enquanto tentava expor as dificuldades da mente humana em resolver os problemas (antinomias) inerentes à existência de objetos simples ou compostos; às idéias psicológicas, da existência da alma ou de sujeitos absolutos; cosmológicas, sobre a origem e infinitude do universo; e teológicas, existência de um ser supremo. Assuntos que não estão diretamente ligados à teoria da arte, mas a do conhecimento. A antinomia que diz respeito aos juízos estéticos se refere à necessidade ou não de conceitos para limitação da diversidade dos conteúdos. Assunto pertinente à dialética da CJ.
Notas
1. Veja KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, III seç., B 123.
2. Veja ARENDT, H. Lições sobre a Filosofia Política de Kant, I liç., p. 15.
3. Veja KANT, I. Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime, I seç, p. 21.
4. Veja KANT, I. Op. cit., II seç., pp. 26 e 27.
5. Veja KANT, I. Idem, II seç., p. 28.
6. Veja KANT, I. Ibidem, II seç., p. 31.
7. Veja BAUMGARTEN, A.G. Estética, part. I, § 116, part. II, cap. I, seç. IX, § 607, e part. III, cap. I, seç. I, § 14.
8. Veja KANT, I. Crítica da Razão Pura, §24, B 150 e ss.
9. Veja KANT, I. Op. cit., “analítica dos princípios”, B170 e ss.

Bibliografia

ARENDT, H. Lições sobre a Filosofia Política de Kant; trad. André D. de Macedo. – Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

BAUMGARTEN, A.G.. Estética; trad. Mirian S. Medeiros. – Petrópolis: Vozes, 1993.
KANT, I. “Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime”; trad. Vinícius de Figueiredo. – Campinas: Papirus, 1993.

____. Crítica da Razão Pura; trad. Alexandre F. Morujão e Manuela P. dos Santos. – Lisboa: Caloute Gulbenkian, 1989.

____. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, in Textos Selecionados; trad. Paulo Quintela. – São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os Pensadores).


2 - Dupla Introdução ao Juízo
A Crítica da Razão Pura (1781) levou uma década para ser elaborada. A dificuldade de compreensão do texto era tanta que obrigou uma segunda edição, revista e melhorada, em 1787. Nesse intervalo, Immanuel Kant (1724-1804) trabalhou na continuação de seu projeto filosófico. Em 1785, lança a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, que seria complementada pelaCrítica da Razão Prática, em 1788. Na primeira crítica, procurava resolver os problemas fundamentais do conhecimento teórico da natureza. Na segunda, voltou-se imediatamente para moral, ou o conhecimento prático das leis que comandam as ações humanas.
Porém, Kant deve ter sentido falta de justificações razoáveis para a forma como são feitas as avaliações sobre as ações e sobre as relações causais dos objetos da natureza. Ato contínuo, partiu para composição da Crítica da Faculdade de Julgar, ou simplesmente Crítica do Juízo, publicada dois anos depois da segunda crítica.
A Crítica do Juízo (CJ) visava preencher a lacuna existente entre os dois mundos, sensível e supra-sensível, o que exigia uma terceira repartição da filosofia. Além da divisão em teórica e prática, caberia a inclusão da estética, em uma nova classificação, onde se encontrariam os juízos a priori da faculdade de julgar, ainda que fossem subjetivos e não uma base sólida para o conhecimento objetivo da natureza. As dificuldades de apresentar essa nova divisão do sistema filosófico, que abrigasse os juízos estéticos, forçaram a formulação de duas introduções dedicadas a esclarecer o novo quadro esquemático das faculdades mentais humanas.
Na primeira introdução, que foi substituída por uma outra mais concisa logo na primeira edição da CJ, o método da crítica, criado por Kant, aparece como um instrumento de investigação do sistema filosófico que se põe à parte deste, com intuito de criticar a sua possibilidade de conhecer algo verdadeiro. Dessa perspectiva, os princípios científicos da realidade seriam divididos em filosofia teórica e prática, subentendidas em filosofias da natureza e dos costumes, respectivamente, cujos conhecimentos seriam empíricos ou puros (a priori). A filosofia prática trataria apenas das leis da liberdade e seu conteúdo. As outras teorias seriam dedicadas ao estudo da natureza das coisas e suas leis, incluindo aquilo que fosse aplicação prática dessas investigações, o que não se confunde com a prática propriamente dita [1].
Enquanto seguissem as leis naturais, as proposições seriam consideradas teóricas, ainda que fossem derivadas da vontade. Só quando fossem leis de liberdade é que seus princípios seriam definidos como práticos, ou seja, deveriam estar completamente livre de inclinações ou qualquer outra influência material. Enunciados de aparência prática, voltados para o conteúdo de um objeto, pertenceriam ao conhecimento teórico e não formariam um domínio específico da ciência. Nem a física, nem a psicologia poderiam reivindicar o uso legítimo do termo “prática”, que, para Kant, deveria ser restrito à metafísica dos costumes. A moral, esta sim, determinaria a necessidade de uma ação na forma de uma lei em geral, como o imperativo categórico, sem se ater aos conteúdos dos objetos, pois seriam princípios próprios da liberdade. Ademais, o conhecimento teórico da natureza nada diria sobre sua possibilidade. As proposições com aparência de comandos práticos sobre a natureza - a maneira como se deve atingir um fim, ou meta -, nada mais seriam do que enunciados técnicos, pertinentes à arte, no sentido que os gregos a entendiam. O que vale dizer que fariam parte do conhecimento teórico da natureza e suas consequências. Nesse sentido, a faculdade de julgar - ou Juízo -, de um modo geral, estaria fundada em juízos técnicos não objetivos, que nada determinariam sobre o objeto, ao contrário dos juízos práticos. Seriam somente juízos subjetivos, pois se refeririam apenas a uma concepção elaborada pelo sujeito acerca das coisas [2].
As faculdades do conhecimento superior que operam conceitos a priori são divididas em entendimento – faculdade das regras universais -; juízo – faculdade de ligação do particular ao universal -; e a razão – faculdade de determinação do particular por princípios universais. ACrítica da Razão Pura (CRP) procurou fornecer, teoricamente, as leis universais da natureza, ou sua possibilidade. A Crítica da Razão Prática definiu o imperativo categórico como lei da liberdade. Por depender de outras faculdades, ao juízo resta como próprio o conceito de finalidade da natureza, que permite avaliar se o particular está contido no universal, conforme a sua destinação. Isto implica na existência de um sistema de leis empíricas, contingentes, que permitiria ao juízo fazer essa correspondência. Esse sistema, mesmo que provisório, é capaz de fornecer princípios subjetivos úteis na condução da investigação empírica. Em função de sua insuficiência, o juízo propõe princípios que precisam ser atendidos por leis universais, que revelem a coerência e a sistematização das leis empíricas.
O juízo concebe a natureza como arte ou técnica submetida por leis particulares que sustentam a validade de suas máximas subjetivas. A representação da natureza como arte pressupõe a idéia de um agente que oriente as conexões naturais. Para saber se existe uma autoria subjacente às causalidades técnicas - relações mecânicas de causa e efeito - deve-se fazer uma investigação crítica sobre os domínios e limites dessas vinculações [3].
A mente humana pode ser reduzida a três capacidades: conhecer, sentir, desejar. Destas, o sentimento de prazer é o único que não promove nenhum conhecimento que requeira uma determinação fundamentada. A vinculação entre saber, desejo e prazer não constitui um sistema, mas um amontoado de conceitos. Para fazer parte de um sistema da filosofia, os sentimentos devem ser fundamentados a priori e submetidos a uma crítica adequada. O entendimento fornece tais princípios ao saber, com base nos conceitos de natureza, e a razão à vontade, com base na liberdade. Os sentimentos estão entre esses dois domínios e precisam descobrir quais são os conceitos que fundamentam os princípios a priori do sentir. O juízo só diz respeito ao indivíduo e não leva a nenhum conceito dos objetos [4].
Um Sistema para o Juízo
As leis empíricas não chegam a formar um todo compreensível aos homens, devido à grande quantidade de leis e sua aparência caótica. Contudo, se faz necessário pressupor subjetivamente uma relação de afinidade entre as diversas leis particulares e as universais. Esse é um princípio transcendental do juízo. O entendimento e a razão não podem fazer a correspondência entre o universal e o particular, por abstraírem toda diversidade da matéria e se restringirem à forma. Só o juízo pode cumprir essa necessidade natural de fixar um princípio para a experiência. Ao contrário das leis formais, as particulares não cumprem os requisitos do conhecimento. Seria preciso, então, que o juízo unisse todas as leis empíricas, para que se estabelecessem experiências sistemáticas na natureza [5].
Na faculdade de julgar, o chamado juízo reflexionante é aquele que compara as representações e conceitos, avaliando os fenômenos particulares e ligando-os às leis universais de modo ascendente. Juízos reflexionantes fazem a correspondência inversa dos juízos determinantes, que procuram os elementos particulares que fazem parte de um universal, de forma descendente. O juízo faz o trabalho de refletir sobre os conceitos naturais universais, de acordo com suas próprias regras, sintetizando a experiência e submetendo-lhes as intuições empíricas. No caso da experiência particular, o juízo pressupõe que a natureza pode ser adequada à sistematização, antes de fazer as primeiras comparações, como um princípio a priori. Ao fazer sua reflexão, o juízo atua criativamente sobre a técnica da natureza, com leis subjetivas adequadas às leis naturais, ao mesmo tempo em que mobiliza uma lógica própria do juízo. Agindo desse modo, acaba por se formar um sistema empírico da natureza. A forçosa artificialidade desse processo confere o estatuto de arte à atividade do Juízo, cujo princípio básico é: “especificar as leis universais em casos empíricos, conforme um sistema lógico” [6]. Embora a finalidade lógica de um juízo não possa ser demonstrada na realidade, é pensada como universal, graças à relação de suas formas com uma finalidade na natureza suposta pelo processo de sistematização que é feito [7].
Nesse processo, as formas da natureza revelam uma finalidade lógica que torna possível as redes de conteúdo empíricas classificadas de acordo com suas semelhanças. Dependendo da configuração da experiência, até mesmo uma finalidade absoluta pode ser postulada pelo Juízo. O juízo reflexionante conseguiria distinguir, portanto, o que é um simples agrupamento casual, do que é um arranjo artístico. Uma vez encontrado um princípio de finalidade entre os objetos empíricos, pode-se sempre postular os mesmos fundamentos para coisas que tenham formas semelhantes. Tudo isso é feito apesar da objetividade estar fora do alcance do juízo, em um mundo supra-sensível, cujo acesso se dá apenas pela razão [8].
O juízo é a única faculdade apta a atribuir finalidades à natureza, orientando as classificações das formas particulares, sob leis empíricas, sem no entanto, determinar suas formas naturais. Além disso, está pronta para distinguir a mecânica da causalidade técnica na natureza, das obras de arte, que possuem uma intencionalidade subjacente. As finalidades artísticas e as técnicas só existem no juízo e não na natureza, efetivamente. A reflexão do juízo considera os esquemas da imaginação e os conceitos do entendimento. Os juízos estéticos de reflexão resultam, então, da atividade da imaginação, do entendimento e da atribuição de finalidade feita pela própria faculdade de julgar.
Em suma, as leis empíricas são interpretadas por princípios que formam um sistema no juízo. Quando, se percebe uma forma no objeto que corresponda a um fim natural, então, essa finalidade é considerada objetivamente e os juízos adequados são chamados teleológicos, fruto de uma reflexão, mas não de uma determinação [9].
Lógicos e Estéticos
Juízos estéticos são a forma pela qual um sujeito apreende aquilo que o afeta, em sua sensibilidade. Sempre que se referir aos sentimentos, a estética não pode gerar qualquer conhecimento objetivo, mas apenas subjetivo. Por conta disso, não pode ser uma ciência propriamente dita, como pretendia Baumgarten [10]. Para evitar confusões, o termo “estética” deve se referir só às atividades do juízo. Um juízo estético objetivo é uma contradição para Kant, pois juízos objetivos são exclusivos do entendimento, única faculdade que julga as coisas em geral.
Juízos reflexionantes sobre objetos particulares, são também estéticos, e podem unir imaginação e entendimento em seu uso subjetivo e sensível do saber. Diferem dos juízos lógicos, que são juízos determinantes e possuem um conceito objetivo em seus predicados. Juízos estéticos extraídos dos sentidos têm predicados que fazem referência direta a um sentimento. Os chamados juízos estéticos universais não têm predicados objetivos, mas podem pretender aspirar a um estatuto de conhecimento geral, fundado na sensação subjetiva e não nos sentimentos de dor e prazer, pois estes são completamente subjetivos. Ao se postular a universalidade dos juízos, a fundamentação deve ser buscada nas regras das faculdades superiores e não nos sentimentos. Cada uma das faculdades pode produzir um tipo de juízo: o entendimento, juízos teóricos; a faculdade de julgar, juízos estéticos; e a razão, juízos práticos [11].
Na estética kantiana, não é possível associar perfeição às representações sensíveis, porque isso exigiria um conceito intelectual do entendimento, que misturaria as faculdades e tornaria sem sentido a distinção entre lógica e estética. A perfeição diz respeito à unidade do ente (ontologia) e não se aplica aos sentimentos. A finalidade objetiva na natureza requer o conceito de perfeição próprio do juízo teleológico, sem auxílio de sentimentos. A intuição empírica é suficiente para formação dos juízos de sentimento. A busca da perfeição depende da razão, enquanto a beleza precisa da reflexão do juízo, que avalia subjetivamente a sua finalidade. A relação entre conhecimento e sentimentos não passa por conceitos objetivos e sua influência na mente não pode ser determinada a priori. Do ponto de vista transcendental, prazer é um estado mental que visa se perpetuar ou realizar seu objeto. Juízos estéticos de reflexão tratam de mantê-lo e os práticos tentam realizá-lo. Em todo caso, o prazer demanda apenas fruição e não compreensão. Portanto, as representações ligadas aos sentimentos só poderiam ser explicadas, analisadas, mas não deduzidas, ou demonstradas [12].
Dos Juízos Teleológicos
A finalidade da natureza é formal quando a intuição é trabalhada na imaginação. Sua realidade é compreendida pelo entendimento que opera os conceitos que se apoiam em relações causais, e que, por sua vez, dependem das leis empíricas. Os juízos teleológicos são aqueles que avaliam as suas possibilidades de fundamentação. Nesse sentido, a razão fornece a idéia transcendental da experiência de forma a priori, para os juízos estéticos. Logo, o juízo colabora com a imaginação, entendimento e razão quando são feitas as representações dos fins naturais. Não obstante, as causas finais dizem respeito apenas ao juízo e não estão na experiência. Seus conceitos e leis particulares são uma criação exclusiva da sistematização feita pelo juízo. Os produtos da arte seriam, entretanto, capazes de sugerir um projeto racional dos objetos e seus fins naturais, que são representações típicas dos juízos reflexionantes. Hipóteses sobre as finalidades racionais são construídas por meio de juízos determinantes, através do uso transcendental da razão, ao encontrar sua causa universal. A reflexão sobre os objetos naturais e suas leis mecânicas é importante para fundamentar a causalidade. Mas para determinação teleológica do conceito é preciso transcender os limites da natureza e encontrar a intencionalidade, ou fim racional do objeto. A afirmação dessa intencionalidade cabe, por definição, à razão e não ao juízo [13].
Ao servir de fundamento, os princípios podem ser empíricos, a priori, ou uma composição de ambos. Uma investigação psicológica sobre o gosto não alcança o estatuto de uma ciência filosófica, pois não consegue demonstrar nenhum conhecimento do assunto, nem a necessidade a priori da origem empírica dos princípios. A pretensão de um princípio a priori que orienta a crítica é algo que, embora não seja uma conclusão factível de todos os princípios do sujeito, tem a sua postulação de necessidade justificada pelo juízo. Por ser transcendental, tal investigação cabe à razão pura, mesmo que seja vã [14].
Sem um princípio a priori, é impossível aos juízos teleológicos conhecer os fins da natureza. Porém, à semelhança dos juízos estéticos, não podem pretender afirmar objetivamente esses fins. Por algo ser tal na natureza, não quer dizer que deva ser assim, essa é uma lição aprendida de Hume [15]. A natureza é totalmente contingente. Todavia, por não se poder determinar os juízos estéticos e teleológicos, com leis empíricas, resta então considerá-los como reflexionantes e referentes a princípios a priori da razão pura [16].
Kant chamou sua primeira introdução ao juízo de propedêutica enciclopédica. Uma apresentação sumária do sistema da capacidade de conhecer e da localização das devidas faculdades estudadas. Apesar de subjetivamente, tentou estabelecer a condição de necessidade do juízo a priori para o conhecimento dos fins naturais; seus juízos reflexionantes; a divisão entre faculdades estéticas e teleológicas, enquanto ressaltava a importância da crítica do gosto sensível e supra-sensível, ao qual se referem respectivamente. A arte vê, então, sua finalidade vinculada a juízos sobre sentimentos de modo a priorístico [17].
A crítica do juízo, mesmo fundada em princípios a priori reflexionantes, não pode sustentar uma doutrina própria, pois precisa de leis e esquemas do entendimento e da imaginação. Além disso, suas finalidades subjetivas não fundam, mas apenas mencionam os sentimentos de prazer e dor, como juízos estéticos, por um lado, e como juízos teleológicos, quando se referem à possibilidade de fins naturais dos seus objetos. Como resultado dessa investigação, a belezaaparece na finalidade da forma do fenômeno e o gosto no poder deliberar sobre seu valor. O juízo do sublime teria uma finalidade interna absoluta, na obra de Kant, e diferenciar-se-ia da beleza por esta ter uma finalidade relativa à forma de uma representação, na disposição mental dos sujeitos. No caso de juízos teleológicos, a finalidade interna considera a perfeição da coisa, ao passo que, a finalidade relativa está voltada para utilidade do fim. Nesse sentido, a crítica prossegue sua divisão a partir do julgamento do belo, passando depois ao julgamento da beleza artística, de onde decorreria uma fundamentação do juízo de beleza natural [18].
Reintrodução ao Juízo
A primeira introdução à CJ vence em extensão e detalhes a segunda, mas deixa a desejar em clareza. Por causa disso, as primeiras edições saíram do prelo com o prefácio e introdução reescritos de modo mais preciso que na primeira tentativa. Assim, o sistema filosófico imaginado por Kant pôde aparecer mais nítido. À primeira vista, a divisão da mente humana se fez em faculdades que atuariam arquitetonicamente na produção de conhecimentos puros e empíricos. A razão pura buscaria conhecer as coisas a priori e os limites da especulação, depois que o entendimento fixasse os conceitos e leis de conhecimento da natureza. A razão prática determinaria os fins desejados pela vontade em função da liberdade humana. Entre essas duas faculdades, o juízo atuaria como meio termo das concepções teóricas do entendimento e práticas da razão.
Por conseguinte, o juízo deveria conter princípios a priori, apesar de subjetivos, prontos para promover o julgamento de um particular que estivesse submetido a uma regra universal. Tais seriam os juízos estéticos sobre o belo e o sublime, a natureza e a arte. Por outro lado, além de poder ponderar os sentimentos de prazer e dor, o juízo deveria mostrar a conformidade das coisas com suas leis, gerando juízos teleológicos sobre os fins da natureza. Destarte, o juízo funcionaria como uma ponte entre os mundos sensível da experiência e supra-sensível, da metafísica, ou seja entre os fenômenos e as coisas em si. Nessa atividade, são empregados juízos reflexionantes que submeteriam as coisas particulares ao princípio universal, onde se encontra a finalidade anterior a tudo.
Para atingir o conhecimento geral, o juízo tem na finalidade formal da natureza seu princípio transcendental. Com estes princípios, o juízo pode fazer as ligações do predicado universal com o conceito empírico que possui. A finalidade da natureza está entre os princípios transcendentais que fundam a priori a investigação empírica. Por meio desses princípios é possível estabelecer axiomas que sustentam teoremas científicos. A conformidade das finalidades com o conhecimento resulta dos princípios transcendentais do juízo, sob os quais se determinam os particulares – como juízos determinantes. Não se trata, entretanto, de conceitos da natureza, objetos do entendimento, nem de liberdade pertinente à razão, mas de máximas do juízo. Tais máximas apontam para uma finalidade transcendental da natureza, contudo, seu conteúdo subjetivo faz com que se subordine ao entendimento, a fim de poder expandi-lo a toda experiência, agora como juízo reflexionante [19].
O entendimento ordena a natureza, de acordo com leis empíricas, enquanto o juízo consolida a unidade dos princípios sobre fins naturais, acompanhados dos sentimentos de prazer ou dor. Tais sentimentos pretendem ter um valor universal, por serem, também determinados pela razão a priori. A unidade descoberta nas leis empíricas produz um prazer, ou dor, como motivação para conhecer os limites da natureza [20].
Representações subjetivas dos objetos têm valor estético. Porém, quando permitem a determinação do objeto seu valor é lógico. O sentido do espaço, nesse contexto, proporciona o acesso às coisas externas, como fenômenos. A sensação externa serve, então, ao conhecimento dos objetos fora do sujeito, mas os sentimentos de prazer e dor não. Pois são meros efeitos do conhecimento. A finalidade, portanto, é um elemento subjetivo da representação que não pode constituir por si um conhecimento dos objetos. Não passa de uma representação estética da finalidade natural. A apreensão da forma de um objeto pela intuição que não estiver ligada a um conceito, pertence só ao sujeito, logo é subjetiva. O prazer de se comparar forma e objeto, no juízo, chama-se belo. Concorre, para tanto, a existência de harmonia entre imaginação e entendimento, ainda que não seja necessária a ligação entre prazer e representação do objeto. A reflexão mostra tal relação de modo legítimo, aspirando um valor universal para sua experimentação, não obstante, a postulação transcendental do juízo por um princípio a priori. Quando essa reflexão busca uma finalidade para ações morais livres de inclinações, o juízo produz o sentimento de sublime que o separa, na crítica, do belo [21].
Fim Natural
A beleza é uma exibição estética do conceito de finalidade formal subjetiva com uma intuição correspondente. A estética julga essa finalidade por meio dos sentimentos de prazer e dor. Além disso, tenta encontrar juízos a priori que fundem sua reflexão e a vinculação de particulares à forma universal que o entendimento, por si só, não é capaz de fazer.
Ao transcender os domínios da estética, os fins objetivos passam a ser assuntos da razão e do entendimento, que devem determinar onde aplicar os conceitos formais da natureza, descendo do universal ao particular. Na lógica do entendimento e da razão, os fins são objetivamente exibidos por meio de conceitos reais de finalidade, formando juízos teleológicos. Contudo, as leis da finalidade da natureza são gerais e cabe ao juízo estético decidir como os sentimentos relacionam as coisas com o conhecimento. Enquanto isso, o juízo teleológico é destinado a determinar as condições de julgamento de qualquer coisa submetida à idéia de fim natural [22].
Finalmente, as duas introduções terminam reforçando a tese de que todo juízo deve supor a possibilidade a priori de seu conhecimento, sem visar uma aplicação racional. Desse modo, o juízo fica a meio caminho entre os conceitos naturais de entendimento e suas finalidades transcendentais de razão, sendo portanto ladeado pelas razão teórica e razão prática. A subjetividade de seus enunciados não permitiria a sustentação de uma objetividade final. No entanto, o Juízo seria capaz de fornecer o suporte supra-sensível aos fundamentos compreendidos pelo entendimento, ao mesmo tempo em que possibilita à razão a passagem do domínio da natureza para o da liberdade. Tarefas que são cruciais para viabilidade de todo método da crítica kantiano.
Notas
1. Veja KANT, I. Primeira Introdução à Crítica do Juízo, I, pp. 195-7 (paginação da Akademie-Ausgabe).
2. Veja KANT, I. Op.cit., idem, pp. 197-201.
3. Veja KANT, I. Idem, II, pp. 201-5.
4. Veja KANT, I. Ibidem, III, pp. 205-8.
5. Veja KANT, I. Ibidem, IV, pp. 208-11.
6. KANT. I. Ibidem, V, p. 216.
7. Veja KANT, I. Ibidem, V, pp. 211-16.
8. Veja KANT, I Ibidem, VI, pp. 217-18.
9. Veja KANT, I. Ibidem, VII, pp. 219-21.
10. Veja BAUMGARTEN, A.G. Estética, part. I, § 116.
11. Veja KANT, I. Ibidem, VIII, pp. 221-26.
12. Veja KANT, I. Ibidem, idem, pp. 226-32.
13. Veja KANT, I. Ibidem, IX, pp. 232-37.
14. Veja KANT, I. Ibidem, X, pp. 237-39.
15. Veja HUME, D. Investigação sobre o Entendimento Humano, seç. XII, part. III, §132, p. 203.
16. Veja KANT, I. Ibidem, X, pp. 239-41.
17. Veja KANT, I. Ibidem, XI, pp. 241-47.
18. Veja KANT, I. Ibidem, XII, pp. 247-51.
19. Veja KANT, I. Introdução, V, pp. 181-186.
20. Veja KANT, I. Op. cit., VI, pp. 186-188.
21. Veja KANT, I. Idem, VII, pp. 188-193.
22. Veja KANT, I. Ibidem, VIII, pp. 192-194.

Bibliografia

ARENDT, H. Lições sobre a Filosofia Política de Kant; trad. André D. de Macedo. – Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

BAUMGARTEN, A.G.. Estética; trad. Mirian S. Medeiros. – Petrópolis: Vozes, 1993.
KANT, I. “Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime”; trad. Vinícius de Figueiredo. – Campinas: Papirus, 1993.

____. Crítica da Razão Pura; trad. Alexandre F. Morujão e Manuela P. dos Santos. – Lisboa: Caloute Gulbenkian, 1989.

____. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, in Textos Selecionados; trad. Paulo Quintela. – São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os Pensadores).


Kaquinda Dias

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