Pasárgada

…Cheguei no momento da criação do mundo e resolvi não existir. Cheguei ao zero-espaço, ao nada-tempo, ao eu coincidente com vós-tudo, e conclui: No meio do nevoeiro é preciso conduzir o barco devagar.


Serei o que fui, logo que deixe de ser o que sou; porque quando fui forçado a ser o que sou, foi porque era o que fui.

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quarta-feira, 21 de maio de 2014

3.4. O Retorno do Recalcado: Os derivados do inconsciente
Abordámos acima a problemática questão de como se faz consciente o inconsciente. Propomos agora outra questão intimamente a ela relacionada. Quais são os efeitos produzidos na consciência quando da irrupção do inconsciente? A resposta é que a consciência, em relação à emergência do inconsciente, só pode experimentar angústia. A manifestação do inconsciente é causa de estranhamento para o eu (moi). Tudo se passa como se o que emergisse do inconsciente pertencesse a outrem e não a si próprio. O eu não se reconhece nas produções de seu inconsciente, experimentando em relação às mesmas um estranhamento que o impede de integrá-las e reconhecê-las como próprias. O eu se vê duramente atingido, abalado nas suas certezas e na sua pretensa ilusão de autonomia. O eu é surpreendido por algo que, em sua própria morada, faz invasão como um convidado indesejável. Um derivado substituto do inconsciente atinge a consciência, produz pontos de fratura e depois retorna diretamente ao esquecimento ativo do inconsciente. Tornar consciente o inconsciente toma, para nós, o sentido de, na crosta da consciência, produzir-se pontos de fratura que tenham o efeito de suspensão dos sentidos cristalizados.
A irrupção do processo primário, que caracteriza o modo de funcionamento do inconsciente, produz, não um conhecimento ampliado da consciência, mas desconhecimento radical, como tal, é causa de angústia para o eu. A emergência na consciência do saber
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insabido do inconsciente é produtora de fendas, cortes, rupturas nos sentidos postos. Contrariamente à visão comumente aceita – segundo a qual o inconsciente seria sede de conteúdos que, revelados à consciência por um passe de mágica, ver-se-ia costurada a cisão psíquica; contrariamente à idéia segundo a qual o inconsciente seria ainda o profundo a ser trazido à superfície, formando por meio da junção de planos uma grande consciência – o inconsciente freudiano, lugar da determinação simbólica do sujeito, não pode ser harmonizado com as representações imaginárias da consciência. O imaginário egóico é rachado o tempo todo pela irrupção do inconsciente. Na relação entre os sistemas tudo se passa como se nunca estivéssemos mais conscientes do que na justa e estrita medida de que nada reconheçamos de nosso desejo inconsciente. E, não é justamente a ignorância uma de nossas mais fortes paixões? E não é também em seu nome que o recalque se produz e se mantém? De fato é assim. Se o inconsciente revela algo, e o faz sempre de forma dolorosa, é a cisão a qual estamos, enquanto sujeitos, irremediavelmente submetidos.
Retenhamos que uma formação do inconsciente – sonho, lapso, ato falho, sintoma, dito espirituoso – é sempre uma emergência pontual, enigmática e de caráter imprevisto, e jamais uma manifestação que se daria por obra de um esforço deliberado de um dos pares envolvidos no trabalho analítico. Ao contrário, o anseio em apreender o inconsciente não faz senão com que ele nos escape entre os dedos. É neste sentido que Lacan acentua “[...] a função de algum modo pulsativa do inconsciente, a necessidade de desvanecimento que lhe parece ser de algum modo inerente – tudo que, por um instante, aparece em sua fenda, parecendo ser destinado, por uma espécie de preempção, a se cicatrizar, como o próprio Freud empregou a metáfora, a escapulir, a desaparecer” (Lacan, 1988a, p. 46).
O que desejamos sublinhar é o modo de expressão significante que tem o inconsciente de dizer de sua presença, isto é, sua característica de apresentar-se sempre de forma enigmática. O inconsciente se manifesta sempre ao modo de um significante S1, significante de abertura, de corte, como tal, não porta sentido algum. O sentido se encontra ao nível do S2,



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significante de fechamento, de sutura da fenda que o primeiro introduz[1]. Estamos nos referindo ao fato do inconsciente, compreendido como dinâmica articulatória, não se constituir num saber já pronto e acabado a ser encontrado. O saber, como vimos, é o que se produz no a posteriori. O inconsciente, enquanto saber insabido, saber que se produz no só depois, não é nunca uma substância sensível perceptível. Não há dúvida, ele é sensível, porém não visível.
Juranville (1987) coloca algumas chaves de leitura acerca da problemática relativa à existência do inconsciente ao sinalizar que “[...] à primeira vista, a existência de uma coisa como o ‘inconsciente’ não é evidente. Para começar, o inconsciente não existe como o sol ou como um gato e não pode ser objeto de uma certeza sensível [...] O inconsciente não é uma coisa. [...] O in-consciente, no sentido pleno do termo, acha-se numa relação de distanciamento essencial com o fenômeno da consciência, e esse distanciamento deve ser marcado no nível da subjetividade” (p. 21). O inconsciente não pode de modo algum ser objeto de observação direta como supõem os teóricos da Psicologia do Ego. Sabemos da existência do inconsciente somente pelos efeitos que se produzem no âmbito dos discursos efetivamente pronunciados por um sujeito. Deste modo concluímos, junto com Garcia-Rosa (1995), que “a verificação direta do inconsciente jamais será feita, sua impossibilidade empírica não se deve à falta de instrumentos, mas à sua própria natureza. Uma fenomenologia do inconsciente é uma tarefa impossível. Ele poderá, quando muito, ser inferido a partir de seus efeitos na consciência, ou, melhor ainda, a partir de seus efeitos no discurso manifesto, mas jamais ser objeto de observação direta” (p. 11).

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O inconsciente Jamais se dá a ver diretamente, ao vivo. Freud sublinha que jamais temos acesso ao inconsciente, mas tão somente acesso ao seu produto: “não é de modo algum impossível ao produto da atividade inconsciente penetrar na consciência” (Freud, 1980 [1912b], p. 331). O inconsciente não é factível de tornar-se objeto de conhecimento, mas sim de reconhecimento, o que não é de modo algum a mesma coisa. O inconsciente exige ser reconhecido nos efeitos de cisão que produz. Não somente não se dá ao conhecimento consciente sob a forma de um saldo de ganho de saber, mas, de modo mais radical, é suposto no a posteriori de uma formação significante adventícia. O inconsciente não é o que não se conhece. Esse posicionamento conduziria a uma concepção dogmática que assimilaria o inconsciente ao lugar do mistério, e a prática analítica a uma empresa de produzir conhecimento no lugar onde ele parece falho e incompleto.
A prática da psicanálise tampouco é uma prática de adequação do sujeito a uma suposta realidade dita objetiva. Isto seria “[...] confundirmos, por pouco que seja, a noção de realidade com a de objetividade[...]” (Lacan, 1988b, p. 218). Lacan adverte que a prática analítica não é exercida com vistas à adaptação do sujeito à realidade social circundante; não se trata de adaptá-lo a esta mas, justamente, de mostrar-lhe que está adaptado demais a ela (Lacan, 1998, p. 602).
Sob o nome de psicanálise aloja-se um punhado de teorias e de práticas que nada tem a ver com o sentido e com a experiência conferida por Freud ao termo inconsciente. Sob a denominação de psicanálise os mentores da Psicologia do Ego alinharam uma prática de sentido efetivamente anti-freudiana. A Psicologia do Ego se propôs a “[...] ultrapassar aquilo que aliás ignora, guardando da doutrina de Freud apenas o suficiente para sentir o quanto lhe é dissonante o que ela acabou de enunciar de sua experiência” (Lacan, 1998, p. 592). Em nome de progressos efetuados à psicanálise, a Psicologia do Ego ordenou uma técnica de adaptação voltada a conformação do sujeito à realidade ambiental física e social. Para a psicanálise, ao contrário, o sujeito está submetido à estrutura de hiância radical que o constitui, enquanto sujeito referido ao desejo inconsciente.
A Psicologia do Ego veiculou a ideologia e a promessa da possibilidade de uma perfeita adequação e harmonia do homem ao mundo circundante, através de uma adaptação
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que seria bem sucedida, elevando a primeiro plano uma técnica com fins “educativos correcionais” das ditas experiências emocionais irracionais do isso. Mas, é possível ou mesmo desejável uma prática terapêutica do desejo inconsciente? Sobre esta questão Freud (1980 [1910a]) advertiu para o fato de que “o desejo inconsciente escapa a qualquer influência [...]” e de que a extirpação radical dos desejos infantis não é absolutamente o fim ideal” (p. 49). O caráter pulsátil do inconsciente remete à idéia de um instante fugaz de abertura e de fechamento. O inconsciente não é nunca algo da ordem de um conteúdo substancial que poderia ficar a disposição permanente da consciência, quer essa substância seja compreendida como o emotivo, o afetivo, quer substância de outra ordem qualquer. O inconsciente escapa sempre ao controle da consciência. E nem poderia ser de outro modo, se com Freud aprendemos a considerar a consciência como uma espécie de balcão de recepção no qual o que vem de dentro e o que vem de fora por ela passa, sem nela se deter e sem deixar vestígios.
Diga-se de passagem que uma das ilusões da consciência é justamente a de supor que o fora e o dentro se constituem em territórios firmemente delimitados e claramente perceptíveis. A consciência é simplesmente o lugar onde as representações passam, circulam, sem jamais fornecer a totalidade das informações. É um equívoco, e dos mais grosseiros, supor que o estado de consciência seja uma condição permanente. O equívoco de supor a consciência como um estado totalizador permanente é tão somente suplantado por aquele que, ao fazer da consciência o centro da subjetividade, a homologa à tópica do eu . O maior equívoco produzido pela Psicologia do Ego consistiu em, pura e simplesmente identificar o eu à consciência. Para Freud, contudo, o eu não é uma unidade. Não se identifica à consciência. O sujeito não é, tampouco, o indivíduo.
A crítica que Freud endereçou a Adler nos parece tão pertinente quanto atual também a respeito das teorias da Psicologia do Ego. Para Freud a Individual Psychology, desenvolvida na América do Norte por Adler, representa uma linha de pensamento teórico pouco compatível com a teoria psicanalítica. Embora seja regularmente mencionada ao lado da psicanálise “na realidade, a psicologia do indivíduo muito pouco tem a ver com a psicanálise, mas, como decorrência de determinadas circunstâncias históricas, leva, em relação a esta e às suas custas, uma espécie de existência parasita” (Freud, 1980 [1933], p. 172).

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Referimo-nos acima à consciência como mero lugar de passagem, lugar de transição. Uma idéia que está agora na consciência já não está mais no momento subsequente. Na consciência, tudo se passa como se não houvesse lugar para mais do que uma idéia de cada vez. A consciência é um mero “[...] órgão para o recebimento dos estímulos” (Freud, 1980 [1920], p. 41) proveniente das fontes interiores e exteriores. Para Freud, os processos que ocorrem no aparelho psíquico deixam no sistema inconsciente poderosos traços de “memória” permanentes. Julga, contudo, que tais formas de permanência e de indestrutibilidade de registro de representações dificilmente podem ser deixadas no sistema perceptivo consciente.
Se tais traços “mnêmicos” fossem deixados permanentemente na consciência, “[...] muito cedo estabeleceriam limites à aptidão do sistema para o recebimento de novas excitações” (p. 40). Estabelecer-se-ia algo da ordem do: Não temos mais vagas! Vagas lotadas! Em uma palavra, “[...] tornar-se consciente e deixar atrás de si um traço de memória, são processos incompatíveis um com o outro dentro do mesmo sistema” (p. 40-41). É no sistema inconsciente que os traços de memória se fixam e perpetuam, razão pela qual ele é também a sede onde o pensamento se formula. É no inconsciente que se encontram os elementos que podem, pela sua lógica combinatória, traduzir-se em pensamentos. Freud é levado a concluir que o fenômeno de consciência se esgota no próprio ato da consciência.
A noção de derivados do inconsciente, o caráter eruptivo, a permanente atividade e manifestação do inconsciente apontam para o fato de que consciente e inconsciente não são duas ordens completamente separadas e firmemente demarcadas. A divisão entre os sistemas não é estanque, abrupta, elaboração que é, aliás, muito antiga no pensamento de Freud. Nos anos relativos aos Estudos Sobre a Histeria ele já esboçava esta noção de uma intrusão do inconsciente no eu. Em suas próprias palavras:
Nosso grupo psíquico patogênico, por outro lado, não admite ser radicalmente extirpado do ego. Suas camadas externas passam em todas as direções para partes do ego normal; e, na realidade, pertencem a este do mesmo modo que à organização patogênica. Na análise, o limite entre os dois é fixado de maneira puramente convencional, ora num único ponto, ora em outro, sendo que em alguns lugares não pode ser estabelecido absolutamente (Freud, 1980 [1983-1895b]:347).
As elaborações teóricas de Freud neste período o conduzem a constatar que o eu se constituía numa força de resistência que se opõe à rememoração das lembranças
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inconscientes, e de que essas lembranças se constituem num grupo de idéias patogênicas que formam um corpo estranho “infiltrado” no próprio eu. Nesta mesma ocasião, consoante ao que será desenvolvido posteriormente no texto Além do Princípio do Prazer, referindo-se a consciência, Freud assevera que “somente uma lembrança de cada vez pode entrar na consciência do ego” (Freud 1980 [1920], p. 348). O que mais uma vez nos lembra a incoerência de uma perspectiva técnica com vistas a tornar consciente o inconsciente, no presuposto de que com isso houvesse um alargamento das fronteiras da consciência.
Em 1915, no texto O Inconsciente, Freud dedicará todo o capítulo VI ao tema da “comunicação entre os dois sistemas”. Não será esta a primeira vez, nem tampouco a última, que Freud insistirá a propósito de dois pontos fundamentais descobertos pela psicanálise. O primeiro ponto se refere à importância comumente concedida aos processos mentais conscientes. Sobre isto Freud insiste que devemos “emanciparmo-nos” do princípio segundo o qual há estrita correlação entre psíquico e consciente. A consciência pertence ao psíquico, sem contudo totalizá-lo. Os domínios do psíquico ultrapassam em muito os domínios da consciência. “Enquanto, que para a maioria das pessoas, ‘consciente’ e ‘psíquico’ são a mesma coisa, fomos obrigados a ampliar o conceito de ‘psíquico’ e reconhecer como ‘psíquico’ algo que não é ‘consciente’” (Freud, 1980 [1916-1917], p. 376). Do mesmo modo, a psicanálise não homologa e nem identifica a sexualidade com a genitalidade, postulado a existência de algo sexual que não é genital, que não tem nenhuma relação com a reprodução.
Freud convoca a que nos libertemos da concepção que identifica o psíquico à consciência, juntamente com a concepção que lhe é correlata: a de que as mais elevadas organizações dos processos da vida psíquica e dos processos de pensamentos organizados ocorram, necessariamente, na região psíquica consciente. Tal concepção remete, inequivocamente, à idéia corrente segundo o qual o inconsciente corresponderia ao caos, à desordem, ao inorganizado, ao domínio das paixões sem lei, ao inadaptado, ao irracional, enfim.
Pensamento ao qual todos os afiliados da a escola da Psicologia do Ego deram lastro, ao concluírem que a vida psíquica é constituída de duas porções firmemente separadas e

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regionalmente delimitadas: de um lado, os componentes irracionais da personalidade, de outro, os racionais.
O segundo ponto fundamental sobre a qual Freud insiste no texto O Inconsciente (1915a) é aquele que versa sobre a comunicação permanente entre os sistemas, e que conduz precisamente a noção de uma não delimitação clara e precisa entre o sistema consciente e inconsciente. Como se processa esta comunicação entre os sistemas e no que ela implica? Implica em muitas elaborações conceituais paralelas e intimamente relacionadas. Primeiramente, que o sistema inconsciente jamais permanece em repouso. Que ele consiste não em idéias tornadas fracas pelo processo de recalcamento, mas sim, que o inconsciente é constituído de idéias simultaneamente inconscientes e ativas. Melhor dizendo, ativas porquanto inconsciente. A atividade do inconsciente põe-se em manifesto no menor dos atos da vida cotidiana de um sujeito. Determinado pelo seu inconsciente, o sujeito vê-se constrangido, compelido, como que por uma “força demoníaca”, a fazer e a dizer mais do que pretendia intencionalmente, sem que esteja, em toda e qualquer ocasião, em condições de reconhecer nisso a presença de seu desejo.
Para Freud (1980 [1915a]), “o estudo dos derivados do Ics. desapontará inteiramente nossas expectativas quanto a uma distinção esquematicamente nítida entre os dois sistemas psíquicos” (p. 218). Em 1933, no texto A Dissecção da Personalidade Psíquica, em pleno período da segunda tópica, Freud proporá, a respeito das três províncias mentais – isso, eu e supereu – e das relações dinâmicas e mútuas que entre elas têm lugar, a metáfora das três regiões geográficas: montanhas, planície e regiões dos lagos. Poderia, diz Freud, ser idealmente o caso, para fins de arranjo hegemônico perfeito, que cada região fosse ocupada por uma determinada e única raça, que por sua vez, se dedicasse a uma única e exclusiva atividade. Nas planícies se cultivaria o solo, nos lagos se praticaria à pesca e nas montanhas a atividade pastoril. Entretanto, um tal arranjo geográfico em realidade não ocorre. Nas regiões das montanhas e dos lagos encontram-se terras cultiváveis, nas quais se pratica o plantio. Nas planícies também há atividades pecuárias. Nas três províncias do aparelho mental estamos diante do mesmo estado de coisas. “Ao pensar nessa divisão da personalidade em um ego, um

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super ego e um id, naturalmente, os senhores não terão imaginado fronteiras nítidas como as fronteiras artificiais delineadas na geografia política” (Freud, 1980[1933], p. 101).
Embora as representações inconscientes sejam unvertraglich, incompatíveis com aquelas presentes na consciência, razão pela qual são condenadas ao recalque, isto não impede que elas avancem e rompam a barreira que o recalque lhes impôs. O retorno do recalcado aponta para o fato de que o que se encontra na consciência é inteiramente autorizado pelo inconsciente, e que, quanto a isto, ela nada pode fazer. O inconsciente não é o sem governo, o desgovernado, é o governante. A consciência, enquanto sede de representações imaginárias, é mais desconhecimento que conhecimento. Em todo caso, conhecimento imaginário que permite ao sujeito manter-se na ignorância do desejo inconsciente que o determina. A consciência é uma espécie de véu, de névoa que, ao encobrir a verdade do sujeito, separa-o das determinações simbólicas de seu desejo inconsciente.
O estudo dos derivados do inconsciente nos remete à constatação de que as representações submetidas ao regime de funcionamento do inconsciente não cumprem com a idéia de uma vigorosa fronteira traçada separando os dois sistemas. As representações submetidas à ação do golpe do recalcamento, e que se encontram regidas pelas leis do inconsciente, não obedecem a barra do recalque. A barreira do recalque rompe-se o tempo todo. Ela é porosa aos rebentos psíquicos provenientes do inconsciente.
A divisão rigorosa e sistemática do psíquico sob a forma de planos, em que uns seriam conscientes e outros inconscientes, não se sustêm à luz das elaborações freudianas, sobretudo quanto concebido à luz do conceito de “compulsão à repetição”. Freud rompe com a noção de uma delimitação precisa entre os sistemas, deixando estabelecido que o recalcado repelido não permanece encerrado e inativo no sistema inconsciente. As representações inconscientes não cumprem jamais a ordem de permanecer como tais, isto é, expulsas da consciência. O inconsciente encontra meios de dizer de sua presença sobre a forma de uma “insistência particularíssima” (Lacan, 1985, p. 82), denunciada nos sonhos, nos atos falhos, no dito espirituoso e, igualmente, nos sintomas, apontando, deste modo, que “[...] o ato inicial da repressão é acompanhado por uma sequência tediosa ou interminável no qual a luta contra o impulso instintual se prolonga até a luta contra o sintoma” (Freud, 1980 [1926], p. 120).
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Para Lacan, consoante Freud, o sintoma, enquanto retorno do recalcado, deve ser concebido à luz da noção da cadeia de significantes recalcados e jamais como focal. Isto quer dizer que o sintoma em psicanálise não obedece à lógica segundo a qual a todo efeito corresponde uma causa determinada. O sintoma só pode ser pensado à luz da cadeia de representações inconscientes, no interior da qual ele tem lugar, constituindo-se num dos elos que a compõe.
Em O Recalcamento (1915c), Freud elabora que o recalque é uma operação fadada ao fracasso posto deixar atrás de si formações em substitutos. O recalcado retorna porque é uma operação devotada, desde o princípio, ao fracasso. É necessário, portanto, conceber o recalque como constituído por três tempos: o recalque primário, o recalque propriamente dito e o retorno do recalcado. Isso permitiu a Lacan (1979) afirmar que “o recalque começa depois de ter constituído o seu primeiro núcleo. Há agora um ponto central em torno do qual poderão se organizar, em seguida, os sintomas, os recalques sucessivos, e ao mesmo tempo – porque o recalque e a volta do recalcado, são a mesma coisa – a volta do recalque” (p. 222). É esse último tempo do recalque – o retorno do recalcado –, por seu turno, que permitiu a Freud postular a existência do inconsciente, encontrando ali a certeza da presença de pensamentos que operam no sujeito, sem que este possa, entretanto, reconhecê-los como próprios. O eu (moi) experimenta em relação ao inconsciente um sinistro alheamento, como se pertencesse a outro. Aliás, via de regra, é deste modo que o sujeito entra em contato com seus próprios pensamentos inconscientes : atribuindo-os a outrem, ocasião na qual eles lhe retornam de forma alienada e invertida. É ainda com o retorno do recalcado que se opera o trabalho analítico. É ele que, constituindo-se no porta voz privilegiado do inconsciente, permite a via de acesso ao que, de outro modo, permaneceria inacessível. O inconsciente recalcado é suposto a partir de seus sucessivos retornos, sem este retorno nada saberíamos da existência do inconsciente. A respeito da temática da postulação da existência do inconsciente, Freud (1980 [1933]) assim se expressa:
Denominamos inconsciente um processo psíquico cuja existência somos obrigados a supor – devido a algum motivo tal que o inferimos a partir de seus efeitos - mas do qual nada sabemos. Neste caso, temos para tal processo a mesma relação que temos com um processo psíquico de outra pessoa, exceto que, de fato, se trata de um processo nosso, mesmo. Se quisermos ser ainda mais corretos, modificaremos nossa assertiva dizendo que denominamos inconsciente um

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processo que somos obrigados a supor que ele está sendo ativado no momento, embora no momento não saibamos nada a seu respeito (p. 90).
É deste modo que o sujeito tem acesso às suas determinações inconscientes, como um saber insabido que se impõe, e a respeito do qual tudo ignora. Na relação transferencial que se estabelece em análise o inconsciente surge, sem que com isso possamos dizer que se tenha tornado consciente e nele se tenha integrado. Era a isto que aludíamos nas páginas anteriores quando fazíamos referência ao modo de expressão significante do inconsciente, e cujos efeitos são ressentidos como fraturas na cadeia dos enunciados. A irrupção do inconsciente, que não podemos rigorosamente qualificar como desconhecida, melhor seria defini-la como não reconhecida, é uma manifestação enigmática, e é nestas condições que é porta aberta à livre associação. Num processo de análise o objetivo não é a de que por seu intermédio o sujeito chegue a poder se conhecer um pouso mais e melhor. Uma análise só pode, em verdade, fazer com que o sujeito se desconheça, a cada vez, um pouco mais.
Para Freud o retorno do recalcado mantém com as representações que permanecem recalcadas os mais estreitos laços de relações lógicas. Contudo, o material recalcado, ele mesmo, requer, numa análise, um trabalho de construção. O recalcado, permanecendo inacessível, escapando a apreensão de forma direta, se constitui em ponto de partida para retornos vindouros incessantes. Esse é o modo que encontramos de apontar que em análise só temos acesso às formações do inconsciente, e de que a verdade toda não é, para o humano, uma possibilidade. O todo pertence ao domínio do real que é, por definição, o impossível e, “[...] a impossibilidade da verdade total é inseparável da idéia de desejo inconsciente...” (Juranville, 1987, p.18).
Laplanche (1992), referindo-se à problemática da delimitação entre os sistemas, coloca que esta trata de uma “sobreposição parcial dos sistemas”, em que se pode afirmar que “tudo que pertence ao sistema inconsciente, na medida em que precisamente obedece as leis do processo primário, não é necessariamente não-consciente, subtraído à consciência” (p. 129), avançando a metáfora de que “sistema inconsciente seria algo semelhante àqueles desenhos em que as cores e as formas não coincidem, em que as cores não preenchem exatamente as delimitações do traçado, mas pelo contrário, as sobrepõem” (p. 127). A descoberta de uma ordem de relações de contiguidade entre os sistemas, e, de modo análogo, entre as instâncias

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da segunda tópica, assim como também a noção de cadeias de pensamentos articuladas e regidas segundo as leis do deslocamento e da condensação, é o que Freud denominou de inconsciente, numa completa e radical rejeição do termo subconsciente.
Como pensamos ter demonstrado, a noção de comunicação permanente entre os sistemas aponta para algo completamente diverso da noção embutida na expressão subconsciente. O inconsciente não é o profundo (o que estaria por baixo) encoberto pela consciência. Tampouco é uma segunda consciência. O inconsciente é, com Freud e Lacan, o que no sujeito se manifesta em ato ou em palavras. É porque o material recalcado retorna em substitutos que temos notícias dele. O inconsciente não tem outro meio de se fazer lembrar senão apelando para substitutos metafóricos. O inconsciente, sob a pena de Freud, não é o que está numa região sub, abaixo e que necessitaria de uma técnica de escavação para encontrá-lo.
Não é, nem por isso, factível de ser empírica e positivamente observável. Não se confunde, tampouco, com os arquétipos coletivos junguianos, isto é, com o “material psíquico que subjaz ao limiar da consciência” (Jung, 1987, p. 3). Jung, ao defender a teoria da existência de um “inconsciente coletivo”, defende a noção de conteúdos inconscientes como produtos residuais das experiências da raça humana com o mundo. Para Jung “[...] as camadas mais profundas do inconsciente” (p.31) estão inteiramente constituídas sob a base de “imagens primordiais” – os arquétipos – constitutivos do “inconsciente coletivo”. De acordo com Jung “aproximar-nos-emos mais da verdade se pensarmos que nossa psique consciente e pessoal repousa sob a ampla base de uma disposição psíquica herdada e universal, cuja natureza é inconsciente” (p. 21). Jung elaborou a concepção da existência de um inconsciente coletivo a partir de uma dada interpretação conferida ao inconsciente freudiano. Jung concebeu a existência de um inconsciente coletivo, situado além e mais profundamente do inconsciente individual, pelo fato de que considerou que no inconsciente individual os conteúdos adquiridos durante a existência do indivíduo são limitados, e de que, portanto, se só existisse o inconsciente individual seria possível “esgotar o inconsciente mediante a análise e inventário exaustivo do inconsciente” (p. 4). O inconsciente coletivo, em Jung, é também o produto das experiências adquiridas durante a existência, só que, desta vez, das experiências já não mais individuais, mas das experiências da raça com o mundo. “O inconsciente coletivo

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é uma imagem histórica que se propagou universalmente e irrompe de novo na existência através da uma função psíquica natural” (p. 13).
Não temos, ao aludirmos sobre os rumos que sob a pena de Jung tomou o inconsciente, a intenção de homologar suas elaborações com aquelas que se produziram no interior da Psicologia do Ego. Desejamos apenas destacar que sob o termo inconsciente abrigam-se proposições teóricas que tomam as mais variadas direções, o que nos obriga a nomear a qual inconsciente estamos, em cada ocasião, nos referindo. Embora haja realmente muitas concepções sobre o inconsciente, nosso posicionamento é o de que sob o termo psicanálise abriga-se uma só proposição sobre o inconsciente – a freudiana.
As elaborações formuladas na Psicologia do Ego sobre o inconsciente fundamentaram-se num plano que conduziu ao abandono da descoberta freudiana, em favor de uma concepção biológica, inata, herdada e primitiva sobre o inconsciente. A opção efetuada pelos teóricos do ego foi sair do terreno movediço que concebe o inconsciente como o lugar referido ao mistério ou o profundo arquetipal, para uma mais ao gosto das teses científicas positivistas. Optando ainda por abrigar sob o termo inconsciente os sentimentos, os afetos e as emoções. Contudo, “[...] o inconsciente nunca se refere às necessidades, ou mesmo a uma frustração da satisfação delas” (Melman, 1985, p. 52). Tampouco se refere às emoções, ainda que contemporaneamente convivamos no nosso dia a dia com a concepção psicológica de “problemas emocionais”.



[1] Alertamos nosso leitor que maiores elaborações sobre a teoria do significante em Lacan serão efetuadas logo adiante. Contudo, esclarecemos que a teoria do significante é central nas teses de Lacan. O significante tem efeitos estruturantes sobre o sujeito, determinando-o como sujeito do inconsciente – ($). Através da teoria do significante, Lacan pôde demonstrar a absoluta solidariedade da estrutura do inconsciente com a estrutura da linguagem. O significante deve ser compreendido como autônomo para com o significado. Um significante não remete a um objeto ou sentido determinados, mas sim a outro significante. Um significante S1 só tem sentido pela sua articulação a outro significante S2. A proposição S1􀃆S2, remete à noção de cadeia. Assim, fora da cadeia um significante não porta sentido algum. O sentido de um significante depende, pois, do contexto no qual se encontra inserido. O próprio do significante é de andar aos pares, isto é, articulado em cadeia.

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