Pasárgada

…Cheguei no momento da criação do mundo e resolvi não existir. Cheguei ao zero-espaço, ao nada-tempo, ao eu coincidente com vós-tudo, e conclui: No meio do nevoeiro é preciso conduzir o barco devagar.


Serei o que fui, logo que deixe de ser o que sou; porque quando fui forçado a ser o que sou, foi porque era o que fui.

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quarta-feira, 21 de maio de 2014

3.5. Conclusão
De acordo com o que foi exposto no presente capítulo pode-se concluir que o inconsciente dá fundamento à psicanálise, tanto no concernente à sua teoria quanto a sua técnica. A história do inconsciente confunde-se com a própria história da psicanálise, na medida em que sua descoberta se encontra na origem da mesma. Sobre a descoberta do inconsciente, e a teoria a qual ele dá lugar, pode-se afirmar que o inconsciente se constitui num divisor de águas no que concerne à concepção de sujeito. Efetivamente, o inconsciente faz função de linha divisória, demarcando a fronteira entre uma teoria sobre sujeito de uma teoria sobre o indivíduo, ou seja, entre a psicanálise e a psicologia. A especificidade da teoria

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psicanalítica, e do sujeito que no seu interior tem lugar, ordena-se em torno do conceito de inconsciente.
Dizendo de outro modo, o inconsciente ordena as diferenças que se estabelecem entre o discurso psicológico de unidade e autonomia do indivíduo e o discurso de sujeito cindido em psicanálise.
É secular na história do pensamento da humanidade, sobretudo em algumas escolas filosóficas, noções mais ou menos vagas a respeito da existência de processos psíquicos que se desenrolam à margem da consciência. Algumas concepções filosóficas relativas a certos estados psíquicos, em que a própria consciência poderia estar submetida a um processo de divisão, deu lastro, difundindo, a idéia segundo a qual importantes parcelas de atividades psíquicas poderiam se furtar ao controle da consciência, vindo constituir-se na face obscura das paixões da alma. A noção de uma consciência que poderia ser dividida em duas partes simetricamente opostas, deu lugar à noção de uma possível integralização da vida psíquica através da reunião das metades separadas, processo que por si só é suposto conduzir à unicidade do indivíduo.
A concepção de uma “consciência inconsciente” (Freud, 1989, [1912b], p. 330) porta em seu bojo a idéia de que a característica da atividade psíquica normal é a de funcionar de forma integrada, isto é, formando uma unidade sintética harmônica, e de que todo processo de fratura psíquica aponta a presença de um estado de doença mórbida. Sem muitos entraves, tornou-se idéia aceita por muitos teóricos que o próprio da atividade psíquica consciente é apreender-se a si mesma, refletindo neste ato o eu. Por esta via solidarizou-se a proposição de uma interdependência, e até mesmo homologação, dos termos: consciência = ego. O sujeito psicológico (indivíduo) é o sujeito do conhecimento, hipostasiado na função de consciência do ego.
A teoria do inconsciente em Freud nada deve às teorias filosóficas que pressupõem estados de dupla consciência. Freud postula a universalidade dos processos inconscientes, e não sua contingência patológica. Identificar o inconsciente ao patológico, assim como supor a

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existência de técnicas que poderiam torná-lo acessível e cristalino à consciência, constitui-se um ato de recusa do inconsciente freudiano.
Freud postula a presença de processos de pensamentos que ao se produzirem fora da consciência obedecem à outra ordem de leis e de lógica diferentes daquelas que regem os pensamentos da consciência. Em continuidade direta com a proposição de que o inconsciente é sede de pensamentos e de que, portanto, ele pensa, Freud afirma que o inconsciente é também sede de representações investidas libidinalmente, isto é, de representações que veiculam o desejo inconsciente de um sujeito. Freud estabelece a concepção de um sujeito submetido a uma divisão psíquica irremediável. O sujeito freudiano não é, e nem poderá jamais formar, uma unidade organizada em torno da consciência. Freud descobre muito cedo em sua experiência clínica que o sujeito é habitado por pensamentos e desejos que operam à revelia de qualquer controle racional consciente, constando que o inconsciente se apresenta como um Outro estranho ao próprio sujeito, que pensa e deseja em seu lugar, e que nada pode fazê-lo calar. Freud decide então escutar a insistente mensagem inconsciente cifrada sob a forma de símbolos mnêmicos.
O que é um símbolo para Freud e qual a lógica de sua produção? No período dos Estudos Sobre a Histeria Freud elabora que um símbolo é um substituto, algo que está no lugar de uma outra coisa ausente, e que tem a missão de representá-la, desenvolvendo que a força que entra em jogo no processo de produção de símbolos é o mecanismo do recalque e da resistência do eu. No processo de recalque uma idéia, “B,” por exemplo, incompatível com o eu e, portanto, de caráter desprazeroso, é afastada de seu campo, surgindo em seu lugar uma idéia substituta – “A” – produzida por deslocamento. A idéia “B” permanece recalcada, logo inconsciente; a idéia “A” representa e ao mesmo tempo impede que “B” surja na consciência.
Conclui-se assim que o recalcamento ocorre através da formação de um símbolo e, consequentemente, que o deslocamento, a condensação e o recalque são simultâneos, partes integrantes de um mesmo processo.
A questão levantada neste capítulo de como algo inconsciente se faz consciente tem aqui mais uma vez lugar de resposta: por meio do retorno do recalcado em símbolos. O

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Inconsciente, embora insistente, não tem outro meio de lembrar sua presença senão recorrendo a representantes simbólicos. Tornar consciente o inconsciente, que no pensamento freudiano implica, por um lado, reconhecer e assumir como próprios os pensamentos e desejos inconscientes e, por outro, um ato ético de responsabilização do sujeito pelos mesmos, significa, na Psicologia Psicanalítica do Ego, ampliar o cabedal de conhecimento egóico com o objetivo de lhe permitir melhor exercer seu poder de governo na esfera psíquica.
Sabemos que as elaborações freudianas acerca do recalque sofreram, ao longo da história da psicanálise, transformações conceptuais. O conceito de recalque tem, em psicanálise, longa história, coincidindo mesmo com sua origem. O percurso histórico desse conceito vai do período ligado à cura pela hipnose ao período que o próprio Freud chegou a denominar de surgimento da psicanálise propriamente dita, período ligado justamente ao abandono do recurso à hipnose, com todas as elaborações conceituais específicas próprias a ele ligadas, sobremaneira, ao que concerne ao conceito de inconsciente e de resistência então vigentes e, ainda, ao próprio processo de recalcamento.
O recalque sempre suscitou questões a Freud e que permanecem atuais: o que sofre a ação do recalque? Isto é, sobre o que incide o recalque? Quais são os operadores por ele postos em ação? Quais as forças que entram em ação no processo de recalcamento? Quem recalca? Quais as consequências psíquicas do recalque? As indagações e elaborações teóricas de Freud nem sempre tiveram o mesmo curso e resposta, o que, no nosso entender, pode ser situado como uma causa possível para que muitos equívocos e confusões se dessem em torno da psicanálise e para que, eventualmente, surgissem tantas escolas ordenadas em torno do apego a determinados pontos do desenvolvimento do pensamento freudiano. Isto, como sabemos, gerou muitos mal entendidos em torno da psicanálise. Num ponto, porém, como vimos, nunca houve vacilação no pensamento freudiano: o recalque incide sobre os representantes da representação – Wortellungsreprasentanz – tornando-as inconscientes e determinado a divisão psíquica do sujeito.
Analisamos neste capítulo, entre outros temas, a especificidade do conceito de recalque em Freud. Abordaremos agora, de modo sucinto e à guisa de conclusão, a leitura que

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a Psicologia do Ego efetuou sobre o mesmo e que não nos parece de modo algum rigorosa com aquilo que efetivamente Freud elaborou.
A escola norte-americana compreendeu que o recalque obedece às forças sociais, concebidas como tão imperiosas quanto necessárias. Na Psicologia do Ego o recalque não é concebido como constitutivo do sujeito do inconsciente e, portanto, constitutivo da própria subjetividade, conceito que aliás, e não por acaso, lhes escapa completamente. Na Psicologia do Ego o recalque é concebido como um puro mecanismo funcional defensivo do ego voltado contra os “impulsos instintivos irracionais” (Hartmann, 1069, p. 54), objetivando pôr em marcha as tendências adaptativas do ego. O recalque é posto em ação contra as tendências irracionais que entram em choque com a realidade social, e, logo, com o seu suposto representante representativo interno – o super ego.
A Psicologia do Ego partiu da premissa fundamental, central e nuclear de suas elaborações teóricas e técnicas, de que o que sofre a ação do recalque são as “tendências instintivas primitivas” e de que a força que o promove são as normas e as regras das convenções sociais. O recalque é o resultado da relação do indivíduo com o meio social imediato no interior do qual está inserido, constituindo-se num fator, ainda que precário, de adaptação do indivíduo ao meio. O recalque é, portanto, como podemos perceber, por um lado, um mecanismo defensivo posto em curso pelo ego em obediência ao princípio da realidade, isto é, segundo a versão a este conceito conferida pela Psicologia do Ego, em obediência às normas de comportamento padronizadas socialmente. Por outro lado, o recalque, tal como conceituado por esta escola, nada tem a ver com o conceito freudiano de Verdrängung. No início deste capítulo esclarecemos a diferença conceptual entre repressão e recalque. A escola da Psicologia do Ego confundiu repressão com recalque, como se entre um e outro não houvesse a menor diferença. Esclarecemos, portanto, que na Psicologia do Ego trata-se do conceito repressão e não de recalque, e que, contrariamente a concepção de Reich, a repressão é considerada um fator necessário de adaptação social.
À questão sobre a qual é a relação que o indivíduo estabelece com a sociedade a escola norte-americana responde: uma relação, em princípio, de choque, de antagonismo entre “tendências instintuais” presentes no organismo desde o início da vida e as tendências sociais
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adaptativas. Na sequência, tratou-se de preparar o caminho redentor para o estabelecimento resolutivo do conflito assim firmado, e que se encontra colocado em termos de uma conciliação dos impulsos com o meio social, o que, por seu turno, é pressuposto conduzir ao pleno equilíbrio e harmonia das tendências - tarefa educacional. As “tendências impulsivas” devem, no processo de desenvolvimento do indivíduo, marcando o grau mesmo deste desenvolvimento rumo à vida adulta e a maturidade, submeter-se ao controle educativo das tendências sociais.
O recalque (melhor dizendo, como vimos, a repressão) constitui-se, para a Psicologia do Ego, num mecanismo de defesa colocado contra as “tendências primitivas” na tarefa da progressiva adaptação, controle e ajustamento do indivíduo ao meio. A tarefa do meio, através da educação, é a de domesticação progressiva dos instintos. Deste modo, depreende-se que, para a Psicologia do Ego, o indivíduo está bem desenvolvido e amadurecido na medida de uma bem fundada e calcada alienação aos mandamentos e imperativos ideológicos do imaginário social. Isto é, o indivíduo é considerado saudável na justa e estrita medida em que abdica seu de desejo inconsciente. Abdicação esta efetuada em nome de uma identificação imaginária com os valores e prescrições morais sociais. Claro! Trata-se de uma teoria do indivíduo e não do sujeito, de uma teoria da adaptação e não do desejo, de uma teoria que versa sobre universais e não sobre singulares!
A escola norte-americana pôs em pauta uma proposta de prescrição profilática que colocou na ordem do dia a entrada em cena de um recalque que seria bem sucedido, na medida em que nada mais restasse do inconsciente e de suas formações, na medida em que, portanto, nada sobrevivesse do desejo inconsciente que pudesse lembrar nossa irremediável cisão. O recalque é considerado como bem sucedido na medida em que a boca da hiância do inconsciente fosse por fim bem costurada e que nenhuma fenda mais afetasse o ser (do)ente, na medida de sua integralização na função de síntese da consciência.
Lacan, no Seminário livro 1 (1979), abordando a questão do que seria um recalque bem sucedido diz que se trataria de um recalque “sem volta do recalcado” (p. 222). Devemos com isto concluir que o recalque bem sucedido equivaleria a uma abolição, a uma recusa do que de simbólico nos constitui enquanto sujeitos, de um esquecimento do próprio
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esquecimento, onde bem sucedido seria o que haveria de mais fracassado. Dito de outro modo, o recalque bem sucedido consistiria pura e simplesmente numa afirmação do ser, do ser que se firmaria numa totalidade da consciência egóica, numa supremacia e autonomia do indivíduo, pois.

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