Pasárgada

…Cheguei no momento da criação do mundo e resolvi não existir. Cheguei ao zero-espaço, ao nada-tempo, ao eu coincidente com vós-tudo, e conclui: No meio do nevoeiro é preciso conduzir o barco devagar.


Serei o que fui, logo que deixe de ser o que sou; porque quando fui forçado a ser o que sou, foi porque era o que fui.

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sexta-feira, 11 de abril de 2014

A Psicanálise freudiana e o equívoco da Psicologia do Ego

O INSCONSCIENTE – UMA DESCOBERTA DE FREUD

A experiência Psicanalítica reencontrou no homem o imperativo do verbo como a lei que o formou à sua imagem. Ela manipula a função poética da linguagem para dar a seu desejo sua mediação simbólica. Que ela os faça compreender enfim que é no dom da fala que reside toda a realidade de seus efeitos; pois é pela via desse dom que toda realidade veio ao homem e por seu ato continuado ela a mantém (Lacan, 1978a, p.186).
O inconsciente é definido por Freud como um sistema psíquico composto por representações. O inconsciente, definido como sistema de representações em constante associação umas com as outras, conduziu Freud a elaborar o modo pelo qual elas se instituem, instituindo em ato o próprio inconsciente. Freud propõe o recalque[1] como o operador específico por meio do qual tem lugar a inscrição das representações inconscientes.
O recalque é o operador responsável pelo fato de que existam representações recalcadas que dão lugar à divisão psíquica e, portanto, que exista inconsciente. O inconsciente freudiano se define inteiramente pelo recalque A elaboração freudiana de que o recalque é o operador específico que dá origem às representações inconscientes se fazia tanto mais necessário, na medida em que, como sabemos, existem também representações psíquicas conscientes e pré-conscientes. O recalque é o que pode então conferir a uma representação o seu status inconsciente. Embora nos artigos metapsicológicos o inconsciente e o recalque sejam tratados em dois artigos distintos, eles não são de modo algum conceitos que possam ser pensados em separados, eles são indissolúveis, na medida em que o inconsciente depende do recalque como seu operador constitutivo. Inconsciente e recalque são conceitos correlatos.

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Freud faz, pois, o inconsciente depender inteiramente da operação do recalque. “A teoria da repressão é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise” (Freud, 1980 [1914a], p. 26).
O recalque é introduzido como causa da divisão psíquica (Spaltung) e Freud aponta que o mesmo não consiste num processo por meio do qual uma representação se tornaria débil, inócua ou inativa. O recalque não destrói a idéia ao torná-la inconsciente, ao contrário, garante a sua indestrutibilidade ao torná-la inacessível à consciência. “[...] a repressão não impede que o representante instintual continue a existir no inconsciente, se organize ainda mais, dê origem a derivados, e estabeleça ligações” (Freud, 1980[1915c], p. 172).
O recalque consiste essencialmente num processo de repulsão, inicialmente denominado por Freud de defesa e posteriormente de recalque. Para Freud “a essência da repressão consiste simplesmente em afastar determinada coisa do consciente mantendo-a a distância” (p. 170). O recalque impede o reconhecimento pela consciência daquilo que Freud denominou de representações.
Ao elaborar a primeira tópica Freud toma o cuidado de proceder à distinção entre dois modos de conteúdos representacionais latentes: os latentes de momento, capazes de consciência, e aquele outro grupo de conteúdos latentes em que o esforço deliberado em torná-los conscientes revela-se ineficaz e que deve, portanto, permanecer ao mesmo tempo latente e inacessível à consciência de forma direta. Freud, neste ponto, revela preocupação em demarcar a diferença entre o sentido descritivo e dinâmico do termo inconsciente, razão pelo qual é levado a designar o inconsciente no “sentido puramente descritivo” (Freud, 1980 [1912b], p. 330) de pré-consciente, reservando exclusivamente ao dinâmico o termo inconsciente. Esta é a distinção introduzida no texto Uma Nota Sobre o Inconsciente na Psicanálise (1912b) e que é retomada por Freud em inúmeras passagens de sua obra.
Na conferência XIV das Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise (1916-1917) Freud retoma esse tema, estabelecendo de modo claro essa distinção entre o uso descritivo e dinâmico do termo inconsciente, dizendo que “seria muito oportuno distinguir estas duas espécies de inconsciente por meio de nomes diferentes [...]. As pessoas consideram um tanto

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fantástico haver um só inconsciente. Que dirão quando confessarmos que temos que nos haver com dois” (Freud, 1980 [1916-1917], p. 271).
O “inconsciente de momento” (p. 139), temporariamente inconsciente, deve ser distinguido do inconsciente propriamente dito, isto é, do inconsciente dinâmico estabelecido pela operação do recalque. Referindo-se ao “inconsciente de momento”, Freud afirmava a possibilidade de torná-lo todo consciente. Para que o pré-consciente se torne consciente é suficiente um pequeno esforço de concentração por parte do sujeito, isto é, basta que haja deliberação de sua parte. Contudo, o inconsciente propriamente dito – o inconsciente dinâmico – jamais foi objeto da consciência e qualquer esforço de atenção deliberada por parte do sujeito resulta inócuo em torná-lo consciente.
É no recalque que se encontra o elemento que opera a diferença entre processos pré-conscientes e processos inconscientes. Destacamos esta distinção entre o sentido descritivo e o sentido dinâmico do termo inconsciente pelo fato de que é lugar comum pressupor que o inconsciente é constituído por conteúdos que foram primeiramente conscientes, e que só posteriormente tornaram-se inconscientes. Segundo esta noção, o inconsciente foi sempre primeiro consciente, podendo, portanto, voltar a tornar-se consciente.
Para a escola da Psicologia do Ego, para quem “o assunto da psicanálise é o comportamento definido [...] como o produto de um curso epigenético, regulado tanto por leis inerentes do organismo quanto por experiências acumuladas” (Gill, 1982, p. 31), o inconsciente, numa das facetas sob as quais figura para esta escola, é o lugar onde se acumulam em depósito experiências passadas e fatos reais ocorridos num passado remoto e que sobrevivem ainda na “não consciência.” Nas palavras de Rapaport (1982) “a observação de que sob hipnose e no curso da livre associação, os pacientes se conscientizam de experiências passadas, ou da relação entre experiências passadas e presentes, levou a suposição da sobrevivência não-consciente de tais experiências e da existência não-consciente de tais relações” (p. 61).
É no contexto de uma perspectiva fundada na assimilação de dois princípios técnicos de ordem tão absolutamente opostos quanto distantes no tempo – a hipnose e a livre

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associação –, princípios fundados em premissas teóricas radicalmente diversas e que demarcam os limites do que o próprio Freud denominou de estágio preliminar da psicanálise, que se pôs em cena na Psicologia do Ego a noção segundo a qual o inconsciente corresponde ao não sabido, ao que não se conhece conscientemente; como o que subjaz no limiar da consciência e que funciona como fator motivacional interno do comportamento. São em noções referenciais teóricas e técnicas como estas, frágeis e incompletas, que se sustenta a premissa técnica calcada eminentemente no tornar consciente o inconsciente. Perspectiva tida como ideal de final de análise no qual as partes componentes da personalidade reunir-se-iam formando uma unidade coesa e harmônica. Freud, entretanto, destacou as ilusões da consciência. Como vimos no capítulo anterior, na Psicologia do Ego o ego é eminentemente o órgão encarregado de proceder a síntese de todos os elementos constituintes da personalidade.
A noção de lembranças ou de experiências reais vividas, registradas pela memória, corresponde ao que Freud denominou de “inconsciente descritivo”, isto é, o pré-consciente. No que se refere ao pré-consciente, Freud sublinha que embora as lembranças que o integrem não estejam o tempo todo disponíveis à consciência podem, entretanto, facilmente tornar-se conscientes, bastando para tanto um certo grau de esforço e de atenção deliberadamente dirigida. Retenhamos que o inconsciente não pode ser identificado ou mesmo confundido com o pré-consciente. As representações pré-conscientes não estão sujeitas à ação do recalque. Toda técnica que vise tornar consciente o inconsciente, pautando-se na premissa conceitual que concebe o inconsciente como o conteúdo de um vaso que pode ser todo transposto no vaso da consciência, esgotando assim o conteúdo do inconsciente, está, em última instância, operando sobre a função intelectual da memória, que não requer que entre em seu auxílio nenhuma técnica específica para que se torne consciente, para que isto ocorra basta que o sujeito interessado dedique sua capacidade de atenção, ou seja, que tenha intenção de recordar-se.
A todos esses inconscientes mais ou menos afiliados a uma vontade obscura considerados como primordial, a algo de antes da consciência, o que Freud opõe é a revelação de que, ao nível do inconsciente, há algo homólogo em todos os pontos ao que se passa ao nível do sujeito – isso fala e funciona de modo tão elaborado quanto o nível da consciência que perde assim o que parecia seu privilégio (Lacan, 1988, p. 29).


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Na conferência XII das Conferências Introdutórias da Psicanálise (1916-1917), Freud assinala que o termo inconsciente não deve ser utilizado para designar o “inconsciente latente de momento”, esse se refere, como já assinalamos, ao pré-consciente. O inconsciente constitui um domínio particular à parte da consciência, com suas representações de desejo indestrutíveis e de origem infantil, seus modos próprios de expressão e, sobremaneira, caracterizando-se por mecanismos de associação distintos daqueles mecanismos que regem as associações conscientes e pré-conscientes. Freud, ao distinguir o inconsciente do consciente e do pré-consciente, marca a distância e a diferença que se estabelece entre uma concepção empirista sobre a associação de uma teoria inconsciente sobre o mesmo tema.
A interpretação da Psicologia do Ego acerca da teoria freudiana da associação foi marcada por uma concepção empirista, no sentido positivista, sustentando que há correspondência, correlação entre a percepção e a coisa percebida. Para o empirismo, a função da sensação e da percepção é a de capturar os dados do mundo externo real, como tais, constituem-se em fonte de conhecimento. Para o empirismo as idéias provêem das sensações e das percepções. Para a Psicologia do Ego há ainda correspondência entre a palavra e o referente, consolidando uma técnica de interpretação pautada numa teoria de comunicação.

Kaquinda Dias (In "A Psicanálise Freudiana e o Equívoco da Psicologia do Ego pp. 86-89" - Dissertação de Mestrado em Psicanálise Clínica 2012)



[1] O termo alemão Verdrängung foi traduzido pelo termo repressão nas edições brasileiras da obra de Freud. Consideramos que o termo repressão e recalque possuem conotações conceituais radicalmente diversas. Esclarecemos que em todas as ocasiões em que utilizarmos o termo alemão Verdrängung o traduziremos por recalque ou recalcamento, exceto nos casos de citações literais de uma obra, como é, por exemplo, o caso da obra de Freud. Assim procederemos para atermo-nos ao conceito a que se refere o termo Verdrängung: mecanismo através do qual as representações são expulsas da consciência e inscritas no inconsciente. O recalque é o mecanismo característico da neurose. O termo repressão corresponde em alemão ao termo Unterdrückung. Unterdrückem = abafar, Unterdrücker = opressor, tirano, Unterdrückung = repressão opressão. A repressão corresponde à noção de uma força de ordem externa que exerce ação restritiva, coibitiva ou restritora sobre um sujeito.
As diferenças conceituais implicadas no termo repressão e recalque são para nós tanto mais necessárias na medida em que no capítulo um desta pesquisa fizemos referência às teorias de W. Reich. Esclarecemos que para esse autor trata-se repressão e não de recalque. Reich faz uso do termo repressão para referir-se ás restrições e coerções que a sociedade exerce sobre a capacidade sexual do indivíduo

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