O INSCONSCIENTE – UMA
DESCOBERTA DE FREUD
A experiência Psicanalítica reencontrou
no homem o imperativo do verbo como a lei que o formou à sua imagem. Ela manipula
a função poética da linguagem para dar a seu desejo sua mediação simbólica. Que
ela os faça compreender enfim que é no dom da fala que reside toda a realidade de
seus efeitos; pois é pela via desse dom que toda realidade veio ao homem e por seu
ato continuado ela a mantém (Lacan, 1978a, p.186).
O inconsciente é
definido por Freud como um sistema psíquico composto por representações. O inconsciente,
definido como sistema de representações em constante associação umas com as outras,
conduziu Freud a elaborar o modo pelo qual elas se instituem, instituindo em ato
o próprio inconsciente. Freud propõe o recalque[1]
como o operador específico por meio do qual tem lugar a inscrição das representações
inconscientes.
O recalque é o operador
responsável pelo fato de que existam representações recalcadas que dão lugar à divisão
psíquica e, portanto, que exista inconsciente. O inconsciente freudiano se define
inteiramente pelo recalque A elaboração freudiana de que o recalque é o operador
específico que dá origem às representações inconscientes se fazia tanto mais necessário,
na medida em que, como sabemos, existem também representações psíquicas conscientes
e pré-conscientes. O recalque é o que pode então conferir a uma representação o
seu status inconsciente. Embora nos artigos metapsicológicos o inconsciente e o
recalque sejam tratados em dois artigos distintos, eles não são de modo algum conceitos
que possam ser pensados em separados, eles são indissolúveis, na medida em que o
inconsciente depende do recalque como seu operador constitutivo. Inconsciente e
recalque são conceitos correlatos.
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Freud faz, pois, o inconsciente depender
inteiramente da operação do recalque. “A teoria da repressão é a pedra angular sobre
a qual repousa toda a estrutura da psicanálise” (Freud, 1980 [1914a], p. 26).
O recalque é introduzido
como causa da divisão psíquica (Spaltung) e Freud aponta que o mesmo não consiste
num processo por meio do qual uma representação se tornaria débil, inócua ou inativa.
O recalque não destrói a idéia ao torná-la inconsciente, ao contrário, garante a
sua indestrutibilidade ao torná-la inacessível à consciência. “[...] a repressão
não impede que o representante instintual continue a existir no inconsciente, se
organize ainda mais, dê origem a derivados, e estabeleça ligações” (Freud, 1980[1915c],
p. 172).
O recalque consiste
essencialmente num processo de repulsão, inicialmente denominado por Freud de defesa
e posteriormente de recalque. Para Freud “a essência da repressão consiste simplesmente
em afastar determinada coisa do consciente mantendo-a a distância” (p. 170). O recalque
impede o reconhecimento pela consciência daquilo que Freud denominou de representações.
Ao elaborar a primeira
tópica Freud toma o cuidado de proceder à distinção entre dois modos de conteúdos
representacionais latentes: os latentes de momento, capazes de consciência, e aquele
outro grupo de conteúdos latentes em que o esforço deliberado em torná-los conscientes
revela-se ineficaz e que deve, portanto, permanecer ao mesmo tempo latente e inacessível
à consciência de forma direta. Freud, neste ponto, revela preocupação em demarcar
a diferença entre o sentido descritivo e dinâmico do termo inconsciente, razão pelo
qual é levado a designar o inconsciente no “sentido puramente descritivo” (Freud,
1980 [1912b], p. 330) de pré-consciente, reservando exclusivamente ao dinâmico o
termo inconsciente. Esta é a distinção introduzida no texto Uma Nota Sobre o Inconsciente
na Psicanálise (1912b) e que é retomada por Freud em inúmeras passagens de sua obra.
Na conferência XIV
das Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise (1916-1917) Freud retoma esse
tema, estabelecendo de modo claro essa distinção entre o uso descritivo e dinâmico
do termo inconsciente, dizendo que “seria muito oportuno distinguir estas duas espécies
de inconsciente por meio de nomes diferentes [...]. As pessoas consideram um tanto
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fantástico haver um só inconsciente.
Que dirão quando confessarmos que temos que nos haver com dois” (Freud, 1980 [1916-1917],
p. 271).
O “inconsciente de
momento” (p. 139), temporariamente inconsciente, deve ser distinguido do inconsciente
propriamente dito, isto é, do inconsciente dinâmico estabelecido pela operação do
recalque. Referindo-se ao “inconsciente de momento”, Freud afirmava a possibilidade
de torná-lo todo consciente. Para que o pré-consciente se torne consciente é suficiente
um pequeno esforço de concentração por parte do sujeito, isto é, basta que haja
deliberação de sua parte. Contudo, o inconsciente propriamente dito – o inconsciente
dinâmico – jamais foi objeto da consciência e qualquer esforço de atenção deliberada
por parte do sujeito resulta inócuo em torná-lo consciente.
É no recalque que
se encontra o elemento que opera a diferença entre processos pré-conscientes e processos
inconscientes. Destacamos esta distinção entre o sentido descritivo e o sentido
dinâmico do termo inconsciente pelo fato de que é lugar comum pressupor que o inconsciente
é constituído por conteúdos que foram primeiramente conscientes, e que só posteriormente
tornaram-se inconscientes. Segundo esta noção, o inconsciente foi sempre primeiro
consciente, podendo, portanto, voltar a tornar-se consciente.
Para a escola da
Psicologia do Ego, para quem “o assunto da psicanálise é o comportamento definido
[...] como o produto de um curso epigenético, regulado tanto por leis inerentes
do organismo quanto por experiências acumuladas” (Gill, 1982, p. 31), o inconsciente,
numa das facetas sob as quais figura para esta escola, é o lugar onde se acumulam
em depósito experiências passadas e fatos reais ocorridos num passado remoto e que
sobrevivem ainda na “não consciência.” Nas palavras de Rapaport (1982) “a observação
de que sob hipnose e no curso da livre associação, os pacientes se conscientizam
de experiências passadas, ou da relação entre experiências passadas e presentes,
levou a suposição da sobrevivência não-consciente de tais experiências e da existência
não-consciente de tais relações” (p. 61).
É no contexto de
uma perspectiva fundada na assimilação de dois princípios técnicos de ordem tão
absolutamente opostos quanto distantes no tempo – a hipnose e a livre
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associação –, princípios fundados em
premissas teóricas radicalmente diversas e que demarcam os limites do que o próprio
Freud denominou de estágio preliminar da psicanálise, que se pôs em cena na Psicologia
do Ego a noção segundo a qual o inconsciente corresponde ao não sabido, ao que não
se conhece conscientemente; como o que subjaz no limiar da consciência e que funciona
como fator motivacional interno do comportamento. São em noções referenciais teóricas
e técnicas como estas, frágeis e incompletas, que se sustenta a premissa técnica
calcada eminentemente no tornar consciente o inconsciente. Perspectiva tida como
ideal de final de análise no qual as partes componentes da personalidade reunir-se-iam
formando uma unidade coesa e harmônica. Freud, entretanto, destacou as ilusões da
consciência. Como vimos no capítulo anterior, na Psicologia do Ego o ego é eminentemente
o órgão encarregado de proceder a síntese de todos os elementos constituintes da
personalidade.
A noção de lembranças
ou de experiências reais vividas, registradas pela memória, corresponde ao que Freud
denominou de “inconsciente descritivo”, isto é, o pré-consciente. No que se refere
ao pré-consciente, Freud sublinha que embora as lembranças que o integrem não estejam
o tempo todo disponíveis à consciência podem, entretanto, facilmente tornar-se conscientes,
bastando para tanto um certo grau de esforço e de atenção deliberadamente dirigida.
Retenhamos que o inconsciente não pode ser identificado ou mesmo confundido com
o pré-consciente. As representações pré-conscientes não estão sujeitas à ação do
recalque. Toda técnica que vise tornar consciente o inconsciente, pautando-se na
premissa conceitual que concebe o inconsciente como o conteúdo de um vaso que pode
ser todo transposto no vaso da consciência, esgotando assim o conteúdo do inconsciente,
está, em última instância, operando sobre a função intelectual da memória, que não
requer que entre em seu auxílio nenhuma técnica específica para que se torne consciente,
para que isto ocorra basta que o sujeito interessado dedique sua capacidade de atenção,
ou seja, que tenha intenção de recordar-se.
A todos esses inconscientes mais
ou menos afiliados a uma vontade obscura considerados como primordial, a algo de
antes da consciência, o que Freud opõe é a revelação de que, ao nível do inconsciente,
há algo homólogo em todos os pontos ao que se passa ao nível do sujeito – isso fala
e funciona de modo tão elaborado quanto o nível da consciência que perde assim o
que parecia seu privilégio (Lacan, 1988, p. 29).
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Na conferência XII
das Conferências Introdutórias da Psicanálise (1916-1917), Freud assinala que o
termo inconsciente não deve ser utilizado para designar o “inconsciente latente
de momento”, esse se refere, como já assinalamos, ao pré-consciente. O inconsciente
constitui um domínio particular à parte da consciência, com suas representações
de desejo indestrutíveis e de origem infantil, seus modos próprios de expressão
e, sobremaneira, caracterizando-se por mecanismos de associação distintos daqueles
mecanismos que regem as associações conscientes e pré-conscientes. Freud, ao distinguir
o inconsciente do consciente e do pré-consciente, marca a distância e a diferença
que se estabelece entre uma concepção empirista sobre a associação de uma teoria
inconsciente sobre o mesmo tema.
A interpretação da
Psicologia do Ego acerca da teoria freudiana da associação foi marcada por uma concepção
empirista, no sentido positivista, sustentando que há correspondência, correlação
entre a percepção e a coisa percebida. Para o empirismo, a função da sensação e
da percepção é a de capturar os dados do mundo externo real, como tais, constituem-se
em fonte de conhecimento. Para o empirismo as idéias provêem das sensações e das
percepções. Para a Psicologia do Ego há ainda correspondência entre a palavra e
o referente, consolidando uma técnica de interpretação pautada numa teoria de comunicação.
Kaquinda Dias (In "A Psicanálise Freudiana e o Equívoco da Psicologia do Ego pp. 86-89" - Dissertação de Mestrado em Psicanálise Clínica 2012)
[1] O termo alemão Verdrängung foi
traduzido pelo termo repressão nas edições brasileiras da obra de Freud.
Consideramos que o termo repressão e recalque possuem conotações conceituais
radicalmente diversas. Esclarecemos que em todas as ocasiões em que utilizarmos
o termo alemão Verdrängung o traduziremos por recalque ou recalcamento, exceto nos casos de
citações literais de uma obra, como é, por exemplo, o caso da obra de Freud.
Assim procederemos para atermo-nos ao conceito a que se refere o termo Verdrängung:
mecanismo através do qual as representações são expulsas da consciência e
inscritas no inconsciente. O recalque é o mecanismo característico da neurose.
O termo repressão corresponde em alemão ao termo Unterdrückung. Unterdrückem =
abafar, Unterdrücker = opressor, tirano, Unterdrückung
= repressão opressão. A repressão
corresponde à noção de uma força de ordem externa que exerce ação restritiva,
coibitiva ou restritora sobre um sujeito.
As diferenças conceituais implicadas no
termo repressão e recalque são para nós tanto mais necessárias na medida em que
no capítulo um desta pesquisa fizemos referência às teorias de W. Reich.
Esclarecemos que para esse autor trata-se repressão e não de recalque. Reich
faz uso do termo repressão para referir-se ás restrições e coerções que a
sociedade exerce sobre a capacidade sexual do indivíduo
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