Pasárgada

…Cheguei no momento da criação do mundo e resolvi não existir. Cheguei ao zero-espaço, ao nada-tempo, ao eu coincidente com vós-tudo, e conclui: No meio do nevoeiro é preciso conduzir o barco devagar.


Serei o que fui, logo que deixe de ser o que sou; porque quando fui forçado a ser o que sou, foi porque era o que fui.

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quarta-feira, 23 de abril de 2014

A psicanálise Freudiana e o Equívoco da Psicologia do Ego

3.1 - A revolução freudiana

Nos primórdios da elaboração de sua teoria sobre o inconsciente, no período relativo aos Estudos sobre a Histeria, Freud falava metaforicamente de uma “inteligência inconsciente”. Nos anos posteriores falará de “pensamentos inconscientes”. A teoria da associação em Freud resulta no princípio segundo o qual o inconsciente pensa. Efetivamente, se “[...] pensar é estabelecer equivalência” (Juranville, 1987, p. 24), estabelecer relações associativas, e isso é tarefa deste trabalhador incansável que é o inconsciente, então o inconsciente pensa, posto que associa. As representações recalcadas constituem a matéria prima com a qual o inconsciente trabalha, fornecendo como produto manufaturado os pensamentos, eles mesmos produto de associações. “Para a psicanálise o sujeito é também sujeito do pensamento – pensamento inconsciente. Pois o que Freud descobriu é que o inconsciente é feito de pensamento” (Quinet, 2000, p. 12).

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A descoberta de que o inconsciente é o lugar onde o pensamento se formula e se institui de forma elaborada é solidário com o método analítico da livre associação. Freud faz o método da psicanálise balizar-se inteiramente no que é, de qualquer modo, o método de funcionamento do inconsciente. Contudo, o inconsciente pensa regido por leis lógicas que diferem daquelas que regem os processos de pensamentos conscientes. O deslocamento e condensação são as leis propostas por Freud como leis que regem o modo pelo qual as representações se associam no inconsciente. Esta noção de representações ligadas umas com as outras, formando uma verdadeira cadeia de acordo com leis que ordenam o modo de estabelecimento destas ligações, quer dizer, que elas não estão sujeitas ao acaso, é a noção mesma de dinâmica inconsciente. “O pensamento inconsciente se caracteriza, para Freud, justamente como abandonando o plano de referência ‘objetiva’: esse pensar funciona, não de acordo com o princípio de realidade, que impõe ligações objetivas entre as representações, mas segundo o princípio do prazer” (Juranvile, 1987, p. 25).
O inconsciente é definido como um sistema relacional, como lugar referido a uma pura ordem de sintaxe; puro jogo combinatório entre representações recalcadas. Sublinhamos que a ênfase recai sobre o modo pelo qual as representações se combinam entre si de acordo com as leis que operam no inconsciente, tratando-se, portanto, de compreender que o que Freud denomina de conteúdo inconsciente diz exclusivamente respeito às representações, e de que elas se submetem ao processo de sintaxe próprio do inconsciente.
A noção segundo a qual o inconsciente freudiano é um sistema ordenado e organizado de acordo com as leis do deslocamento e da condensação, leis universais operando sobre representações singulares, conduziu Lacan (1988a) a propor que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” (p. 25), ou seja, no dizer de Lacan, o inconsciente freudiano é inteiramente constituído pela articulação dos significantes entre si, formando as cadeias inconscientes.
Com a descoberta do inconsciente Freud opera uma revolução denominada por Lacan (1985) de “copernicana” (p. 14). Ao afirmar que o inconsciente pensa, Freud desaloja a consciência como o único lugar de pensamentos organizados, alterando assim o privilégio

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concedido aos pensamentos conscientes, e, portanto, à noção presente no cogito “penso logo sou” no qual Descartes assevera reflexão do ser no ato de pensar.
Descartes (1987-1988), partindo da premissa de que “[...] todos os erros procedem dos sentidos” (p.13) e de que, portanto, todo conhecimento pautado nas percepções é enganoso, e, como tal, passível de ser posto em dúvida, foi conduzido a estabelecer que somente o pensamento racional pode oferecer uma base segura e objetiva de conhecimento, estabelecendo deste modo os próprios alicerces da ciência moderna. O estabelecimento da razão, definida como atributo essencial próprio e característico do homem, conduziu Descartes a estabelecer a distinção entre “natureza corpórea” e “natureza pensante”. Sabemos que esta distinção dá lugar à separação entre mente (alma) e corpo.
Pelo método da “dúvida hiperbólica”, que consiste em pôr metodicamente em dúvida tudo o que os órgãos dos sentidos estabelecem como verdade, e que, em realidade, não passam de “sonhos” e “quimeras”, Descartes chegou a uma certeza: a de que se ele duvida, ele pensa. Esse é o viés pelo qual Descartes chega a formulação da existência do ser no ato de pensar assim expressa: “Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que penso. [...] Ora, eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa” (p. 26).
Com Descartes tem início a idade de ouro da razão e da certeza da presença do ser no ato de pensar. A filosofia cartesiana contempla em suas indagações a noção de sujeito da razão, de um sujeito que por pensar “[...] é um espírito, um entendimento ou uma razão” (p. 26), inaugurando assim a idéia, presente até nossos dias, de um sujeito que se reflete a si próprio na superfície cristalina da consciência no momento em que pensa. A concepção de que o pensar é eminentemente racional e de que através da atividade de pensamento o eu apreendese a si próprio, conduziu a rigorosa equivalência, por um lado, do ser com o pensamento e, por outro, do pensamento com a consciência. Contemporaneamente, para muitas concepções psicológicas, se tornou consumado o fato de que ao nos referirmos à atividade de pensamento estamos, necessariamente, referindo-nos a uma atividade que só pode ser efetuada no plano da consciência, e, portanto, no plano do eu, na medida em que se formula “a equivalência do eu = consciência” (Lacan, 1985).
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Vallejo & Magalhães (1981), analisando o cogito cartesiano, sublinham que Descartes não propõe, por um lado, o ato de pensar, e, por outro, como dedução lógica implícita deste pensar, a inferência do ser. No cogito cartesiano tem-se, de acordo com esses autores, uma proposição que assevera a presença eminente do ser no próprio ato do pensamento. Ser é pensar, pensar é ser. Não se inferem mutuamente, não se justapõem, não se duplicam, se equivalem (p. 13-19).
Lacan (1985) afirma que o cogito cartesiano é “absolutamente fundamental no que diz respeito à nova subjetividade...” (p. 13). Descartes formulou, colocando pela primeira vez no centro do debate das teorias do conhecimento, a noção de ser definido como substância pensante, introduzindo a noção de categoria racional dos pensamentos conscientes. Freud, diversamente, introduz a idéia de uma ordem, de um sistema inconsciente perfeitamente organizado, capaz de subsistir fora da consciência, fazendo desta mero efeito de superfície.
Freud “está seguro de que um pensamento está lá, pensamento que é inconsciente, o que quer dizer que se revela como ausente. É a esse lugar que ele chama, uma vez que lida com outros, o eu penso pelo qual vai revelar-se o sujeito.” (Lacan, 1988a, p. 39).
Descartes homologa o ser com o pensamento, postulando ainda que ambos se situam no mesmo lugar. Neste sentido, podemos dizer que, com a descoberta do inconsciente, Freud opera uma segunda revolução, na medida em que postula que o ser e o pensar não se situam no mesmo lugar. O que Freud descobre e Lacan formaliza é que há uma ruptura tópica do pensar com o ser, assinalando assim a não convergência entre ambos. O sujeito não pode refletir-se a si mesmo, não pode apreender-se a si próprio no momento em que pensa, assim, “penso onde não existo, portanto existo onde não penso” (Lacan, 1978b, p. 248). O inconsciente é puro pensamento. Os pensamentos inconscientes operam sem intervenção da entidade egóica. Não há um sujeito agente que comande os pensamentos inconscientes, “[...] o pensamento inconsciente se define simplesmente por ser um pensamento sem sujeito” (Pommier, 1989, p. 41). Para Lacan (1978b), Freud designa pelo termo pensamento os elementos significantes postos em jogo no inconsciente e os encadeamentos sucessivos de que eles são capazes (p. 247).

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O inconsciente, compreendido como um sistema submetido à pura dinâmica relacional posta em jogo no encadeamento entre representações recalcadas, não requer a presença de nenhum eu substância pensante. “[...] O pensamento é possível sem que nenhum ‘eu penso’ intervenha...” (Safouan, s.d., p. 16). A primeira tópica freudiana consiste no estabelecimento da noção de um sujeito definido pela ruptura, pelo estiramento, e, como tal, profundamente marcado por uma cisão. Na primeira tópica freudiana os sistemas inconsciente, consciente e pré-consciente assinalam o lugar desta divisão (Spaltung). A noção de sujeito fendido remete simplesmente a impossibilidade do sujeito definir-se a si próprio no momento em que pensa.
No inconsciente não há um sujeito agente que regule a combinatória associativa das representações entre si. O sujeito é aprisionado por uma cadeia significante que o determina. O sujeito é inteiramente determinado a partir desta “outra cena” onde se localiza o desejo inconsciente. Ele é assujeitado a um movimento de pura dinâmica articulatória que, opera à sua revelia, descentrando-o. O sujeito freudiano é marcado pela divisão e, como tal, é o que está posto à margem de um centro ordenador central. É este descentramento radical do sujeito, implicado no conceito de inconsciente freudiano, que faz obstáculo a qualquer forma de síntese integrativa na consciência. A sintaxe inconsciente se contrapõe a síntese consciente. O sujeito não comanda a sintaxe formadora das cadeias de pensamentos inconscientes, é por elas comandado, na medida em que o inconsciente é uma ordem autônoma em relação ao sistema consciente.
Estas elaborações freudianas a propósito do inconsciente conduziram Lacan (1985) a afirmação de que com “Freud faz irrupção uma nova perspectiva que revoluciona o estudo da subjetividade e que mostra justamente que o sujeito não se confunde com o indivíduo [...].
Freud nos diz – o sujeito não é a sua inteligência, não está no mesmo eixo, é excêntrico. O sujeito como tal, funcionamento como sujeito, é algo diferente de um organismo que se adapta. O sujeito está descentrado com relação ao indivíduo” (p. 126).
Na elaboração freudiana o eu (moi) não está referido à função de conhecimento objetivo, não é sede de conhecimento imediato da realidade do mundo exterior, tampouco pode refletir-se de modo imediato na consciência. O eu é caracterizado por uma ignorância

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profunda. Nada sabe sobre os processos de pensamentos que o agitam. Ignora tudo sobre o universo simbólico do desejo que, por habitá-lo, o determina no menor de seus atos. O eu é pensado quando pensa pensar. A psicanálise surge com a descoberta do inconsciente e pela formalização conceptual específica que Freud lhe confere, juntamente com os conceitos fundamentais que lhes são derivados e correlatos. A descoberta do inconsciente constitui-se numa ferida narcísica infligida ao homem (Freud, 1980 [1925], p. 274), colocando em pauta que embora a consciência participe do psíquico não o totaliza e nem a ele se identifica. Freud descobre a existência de processos psíquicos que não podem ser identificados à consciência. A psicanálise vem, pois, colocar em pauta a existência de uma ordem psíquica de estatuto inconsciente.
A descoberta da existência de pensamentos inconscientes efetuada por Freud constituise numa ruptura com o modo tradicional de pensar a subjetividade. Freud descobre que o eixo da subjetividade não se ordena em torno da consciência e que se “[...] incorre em petição de principio asseverar que ‘consciente’ é um termo idêntico a ‘psíquico’” (Freud, 1980 [1912b], p. 327).
Observemos, portanto, em consequência, como esta inclinação de julgamento pode, segundo Freud, manifestar-se entre os filósofos. De um lado, estes imaginam o inconsciente como algo místico, inapreensível e inatingível, o que torna obscura a relação ao psíquico; de outra, obstáculo epistemológico, eles assimilam a priori, por hipótese de trabalho, o psíquico ao consciente, e assim excluem dele, portanto, o inconsciente. Trata-se antes de um erro bem conhecido de raciocínio denominado de ‘petição de princípio’, que consiste em responder por antecipação a uma questão – o que poderia esclarecer o fato de que, para alguns filósofos, a expressão ‘fenômenos psíquicos inconscientes’ lhes pareceria um absurdo e uma contradição nos termos (Aguiar, p. 20)[1].
Descartes, aventurando-se na investigação dos processos de conhecimento, chegou à proposição do cogito “penso logo sou”, asseverando que o pensamento é eminentemente racional e que reflete em ato o ser. Entretanto, para Lacan (1985), “mesmo que efetivamente
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seja verdade que a consciência é transparente a si própria e que é apreendida como tal, fica patente que, nem por isso o [eu] lhe é transparente” (p. 13).
Com Descartes firma-se a racionalidade dos processos de pensamento, e a consciência se estabelece como lugar privilegiado de todo processo de conhecimento. Tornou-se, deste modo, um princípio, aceito por muitos, conceber-se o eu como uma entidade substancial que, por essência e definição, se constitui como agente de todo conhecimento. Com Descartes origina-se o discurso próprio do domínio da ciência moderna, como discurso de cunho racionalista. A noção de que a consciência é sede de pensamentos objetivos racionais conduziu, na contemporaneidade, a idéia da existência de uma realidade objetiva que poderia ser apreendida como tal pela razão. A consciência passa a ser concebida como o lugar onde se dá a apreensão objetiva daquilo que se apresenta como realidade cognoscível. Temos, portanto, na contemporaneidade, de um lado, a idéia de indivíduo concebido como agente dos processos de pensamento, e, de outro, a idéia da existência de uma realidade que se ofereceria como objeto passível de ser apreendido pela consciência através do processo de pensamento racional. Realidade e indivíduo são, portanto, compreendidos como duas entidades substanciais com existência independente uma da outra, estabelecendo-se, deste modo, de um lado, a idéia de uma correspondência perfeita e unívoca entre os pensamentos racionais conscientes e a realidade. De outro, uma correspondência entre o ser e o ato de pensamento. A consciência é firmada como o lugar onde o mundo se apresenta como cognoscível ao ser.
O ideal que caracteriza a contemporaneidade, atravessada pelo saber científico, põe em cena um ideal específico ao nosso tempo. O discurso da ciência, enquanto discurso sem sujeito, impõe, como lógica intrínseca a seu discurso, a idéia de apreensão plena da realidade, dita objetiva, de forma imediata, isto é, sem a intervenção mediadora da instância simbólica da linguagem. A ciência positivista só reconhece como saber válido cientificamente aquele produzido diretamente sobre a realidade objetiva, preconizando que a participação da subjetividade só poderia realizar sobre a mesma uma cópia imperfeita que não passaria de mero simulacro, razão pela qual na ciência o sujeito deve ser abolido.
O discurso da ciência contemporânea veicula a ilusão de possibilidade de um saber puro, sem sujeito. No discurso da ciência o objeto é apresentado como possuidor de existência
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e realidade concreta autônoma em relação ao sujeito que percebe – sujeito e objeto constituindo-se em duas entidades substanciais autônomas. Este é o ideal interno ao discurso da ciência, e que se constitui na sua essência. A ciência pressupõe a existência de uma realidade em si, e de que a mesma se apresenta ao ser do homem como realidade passível de ser apreendida tal qual. A ciência sustenta a premissa de um saber que emana do próprio real e que se reflete, através da atividade do pensamento racional, na superfície da consciência. O saber científico na contemporaneidade sustenta, portanto, a ilusão de um saber pleno que, sendo sem fissura, “[...] é um saber sem desejo, isto é, sem falta” (Jerusalinsky, 1994, p. 3).
A propósito do absoluto do saber J. Hipollite dirige-se a Lacan colocando-lhe o seguinte questionamento: “[...] será que estamos a todo momento no saber absoluto? Ou será que o saber absoluto é um momento?” (Lacan, 1985, p. 95). Essa questão resulta tanto mais interessante quando considerada à luz do contexto no qual ela se articula, e que é aquele em que Lacan procede à análise e argumentação do conceito freudiano de pulsão de morte e do estatuto imaginário do eu (moi), num interessante e elucidativo diálogo com as linhas de pensamento filosóficas que centram o debate relativo à questão do psíquico centrando-o na consciência. Nesse contexto, Lacan destaca a reviravolta de perspectiva colocada pela descoberta freudiana do inconsciente, e que tem por efeito produzir um descentramento do sujeito em relação à consciência. A revolução operada por Freud Lacan denominou de revolução copernicana.
Freud e Lacan procederam à distinção radical e vigorosa da psicanálise para com as linhas de pensamento filosóficas, e para com as escolas psicológicas que nela se apoiam, que sustentam a concepção de ego consciente. Distinção que ganha ainda mais em força e vigor quando se coloca em pauta que “o inconsciente escapa totalmente a este círculo de certezas na qual o homem se reconhece como eu” (p. 15).
Diversamente da visão própria ao discurso da ciência positivista, que pretende chegar a saber tudo sobre o real, na elaboração lacaniana da psicanálise o real pertence ao registro do impossível, isto é, o real não é passível de ser apreendido pelo simbólico como tal, ele pertence ao reduto da pulsão de morte, ao limite do que as palavras podem nomear. Para a psicanálise a realidade dita objetiva – a realidade da ciência positivista –, do mesmo modo
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que os planetas, não tem luz própria, esta lhe vem de empréstimo do simbólico e do desejo que nele tem lugar. Isso implica em dizer que o objeto e o sujeito não se constituem em categorias autônomas um para com o outro.
A ciência positivista consiste no projeto de um possível saber pleno sobre o real, como se o objeto portasse em si mesmo uma essência, propriedades atributivas naturais e como se dele emanassem qualidades apreensíveis que, lhes sendo imanentes, poderiam ser capturadas pelo pensamento consciente. Deste modo, o objeto é colocado como possuidor de uma existência autônoma e com atributos de significação independente da cadeia relacional estabelecida com o desejo inconsciente.
É na medida da abolição do desejo que a ciência se constitui num discurso cuja premissa básica é de poder abolir a presença do sujeito. No ato mesmo de abolição do desejo, o discurso da ciência constitui-se, contemporaneamente, num discurso regido pela lógica segundo a qual não é o desejo que cria seus objetos, mas sim que estes tem existência autônoma. Com efeito, a ciência positivista preconiza a idéia de um conhecimento racional e objetivo, postulando que o objeto é fonte de conhecimento e que não padece das amarras relacionais que o desejo impõe, sustentando-se na premissa de que “[...] há um saber encarnado no real” (Lajonquère, 1994, p. 62).
A propriedade substantiva, suposta essência do real, é, entretanto, um juízo atributivo conferido pelo desejo. Dizendo de outra forma, é primeiro no olhar do observador, olhar escavado pelo vazio do desejo, que o real da ciência parece ser portador de um saber sem falha. Para a psicanálise, contudo, é a força do desejo que injeta sobre a realidade um saber, tão provisório quanto parcial. Para Freud (1980 [1930]), “nunca dominaremos completamente a natureza, e o nosso organismo corporal, é ele mesmo parte dessa natureza...” (p. 85). Freud faz desta parcela da natureza inconquistável uma fonte de sofrimento constante e não passível de resolução, a despeito de todos os avanços verificados no campo da ciência ao longo da civilização. “O sentimento oceânico” de um perfeito domínio sobre a realidade faz da ciência um discurso que se constitui no ideal próprio à modernidade. O ideal contemporâneo, calcado na ciência, repousa no projeto de controle e domínio do real pelo homem, consolidando a premissa de que “o real é racional e independente do sujeito que conhece, e o sujeito é o ego
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substância que, à maneira de um espelho, reflete o saber das coisas” (Lajonquière, 1994, p. 62).
O indivíduo, entendido como substância pensante consciente, é um produto da modernidade originada no cogito cartesiano. A partir do cogito cartesiano se firmou e consolidou a premissa de acordo com a qual o eu, por ser racional, é eminentemente consciente. Portanto, entre as teorias psicológicas norteadas pelo cartesianismo e a psicanálise que as revoluciona há, de fato, uma distância que não é meramente métrica “A noção de sujeito enquanto sujeito cognoscente, agente do processo de conhecimento e como tal referido a um objeto suposto e cognoscível, ou seja, apreeensível pelo conhecimento racional e pela atividade de investigação científica, é um produto da modernidade. Seu protótipo pode ser representado pelo Ego cartesiano” (Marques Neto, 1994, p.152). Desse modo, embora muitas teorias, e em particular a teoria da Psicologia do Ego, afirmem encontrar em Freud os fundamentos que as sustentam, a rigor elas se encontram mais próximas de uma concepção psicológica sobre o indivíduo do que de uma concepção freudiana sobre o sujeito. Isso é sobremaneira verdadeiro quando consideramos que conservam como central em suas teorias a antiga estrutura sujeito e objeto, assim como também a noção de que os fenômenos conscientes constituem a totalidade dos processos psíquicos em acordo e consonância hegemônica com a realidade percebida, e em desacordo absoluto com o posicionamento freudiano. Para Freud (1980 [1933]) “as estrelas são, na verdade, magníficas, porém, quanto à consciência, Deus executou um trabalho torto e negligente, pois da consciência a maior parte dos homens recebeu apenas uma quantia modesta, ou mal recebeu o suficiente para ser notado” (p. 85).



[1] No original em francês: “Remarquons dès lors comment cette inclinaison de jugement peut, d’après Freud, se manifester chez les philosophes. D’une part, ceux-ci imaginent l’inconscient comme quelque chose de mystique, insaissable et intangible, ce qui rend obscure la relation au psychique; de l’outre, obstacle épistémologique, ils assimilent a priori par hypothèse de trtavail, le psychique au conscient, et ainsi en excluent donc l’inconscient. Il s’agissait plutôt d’une erreur bien conuê de raisonnement appelée petition de principe, qui consiste à s’accorder par avance ce qui est en quation – ce qui pourrait éclairer le fait que, pour certains philosophes, l’expression ‘phénoméne psychique inconscient’ pouvait leur paraître une absurdité et une contradiction dans les termes”.

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