Pasárgada

…Cheguei no momento da criação do mundo e resolvi não existir. Cheguei ao zero-espaço, ao nada-tempo, ao eu coincidente com vós-tudo, e conclui: No meio do nevoeiro é preciso conduzir o barco devagar.


Serei o que fui, logo que deixe de ser o que sou; porque quando fui forçado a ser o que sou, foi porque era o que fui.

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sexta-feira, 25 de abril de 2014

3.2. O encobrimento da descoberta freudiana

Inconsciente é o nome da ferida introduzida no narcisismo do homem. É o nome dado ao sujeito, tal como formulado no campo psicanalítico originado em Freud. O inconsciente é o lugar onde o pensamento se formula e se institui como pensamento organizado e organizador do mundo e da subjetividade. Entretanto, um desconhecimento completo da concepção freudiana sobre o inconsciente conduziu a uma verdadeira “vulgarização” (Lacan, 1978c, p. 192) e, até mesmo, a mais feroz e completa “deteriorização do discurso analítico” (Lacan,
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1978a, p. 109)”. Lacan não transige quanto aos termos que evoca para designar aqueles que, num repúdio ao dizer de Freud e ao que sua descoberta representa, vieram, em nome de uma nova teoria, “escamotear” (Lacan, 1985, p. 23) o campo fundado por Freud. A Psicologia do Ego produziu um escamoteamento da importância conferida por Freud aos processos inconscientes. O inconsciente foi desalojado em favor de um reducionismo que tomou a forma de supremacia conferida ao ego consciente. Os psicólogos do ego distanciaram-se do campo propriamente psicanalítico, introduzindo versões sobre o inconsciente que de modo algum se encontram presentes no pensamento de Freud. O termo inconsciente tem uma elaboração específica em Freud, que o diferencia de outras formulações a respeito do mesmo tema. Os psicólogos do ego apossaram-se dos termos técnicos psicanalíticos com a ilusão de estarem, deste modo, convergindo, sendo rigorosos e coerentes conceitualmente com os mesmos. Contudo, “[...] se a psicanálise não for os conceitos nos quais ela se formula e se transmite, ela não é a psicanálise, é outra coisa, mas então é preciso dizê-lo” (Lacan, 1985, p. 23).
O distanciamento produzido com relação ao conceito freudiano de inconsciente pelos teóricos da Psicologia do Ego redundou numa regressão a definições envelhecidas sobre o mesmo. Paralela e consequentemente, retrocederam a concepções pré-psicanalíticas sobre a subjetividade, aquelas que faziam da consciência o eixo ordenador central da personalidade, e que Freud veio justamente romper. De fato, a descoberta freudiana consistiu em colocar-se à contramão em relação à ordem vigente que fazia da consciência o centro totalizador do psíquico. A Psicologia do Ego apropriou-se da psicanálise tão somente para “[...] tornar a fusionar a psicanálise na psicologia geral” (id). Com efeito, para Rapaport (1982), “[...] no início da década de trinta, a influência da psicanálise sob o novo prumo que lhe deu a Psicologia Psicanalítica do Ego se expandiu para abranger toda a psicologia” (p. 21).
Por não poderem efetuar uma compreensão efetiva sobre o inconsciente freudiano os psicólogos do ego fizeram circular falsas noções. O modo mais corrente (posto que não único) que tomou forma o inconsciente no interior das teses da Psicologia do Ego consistiu em assimilá-lo as ditas tendências arcaicas primitivas. “[...] A idéia de que o inconsciente não passa de sede dos instintos” (Lacan, 1978b, p. 225) os conduziu a enraizar o inconsciente no

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real orgânico, assimilando-o às ditas tendências irracionais caóticas. Entreviram que em Freud o isso é uma instância inconsciente (e para eles a sua totalidade), para logo em seguida reduzirem-no a tendências biológicas primitivas. Para Hartmann (1969), o inconsciente corresponde aos “impulsos instintivos irracionais” (p. 54) não submetidos ainda ao processo de adaptação. Ainda aqui devendo ser compreendido, segundo o sentido conferido ao Wo es War, soll ich Werden freudiano por esta corrente psicológica, de um futuro domínio que as funções egóicas de adaptação devem vir exercer sobre o irracional. O isso, concebido como primitivo e sede dos impulsos irracionais, no decurso do desenvolvimento deverá ser dominado pela fortaleza egóica – tarefa adaptacionista. O ego deve desalojar o isso e ocupar O seu lugar, transformando-se em senhor absoluto no reino do psíquico. Em Freud, (1980 [1933]), “onde estava o id, ali estará o eu é uma obra de cultura – não diferente da drenagem do Zuidezee” (p. 102). Lacan (1978c), procedendo à crítica a estes adoradores do ego sustentou que “[...] a teoria do ego não passa de um enorme contra-senso: o retorno ao que a própria psicologia intuitiva vomitou” (p. 203).
Para os teóricos do ego foi absolutamente inalcançável supor um lugar de ordem e de organização diferente da consciência. Isto os conduziu a lançar o inconsciente no abismo do real orgânico que, a nosso ver, carece de predicação. O real orgânico, estando aquém do psíquico, nele só ingressando por delegação, carece do atributo de ser, quer consciente, quer inconsciente. Foi igualmente no marco de uma concepção biológica que a função do pensar foi elaborada pela escola norte-americana de psicanálise. Para Hartmann (1969), o pensamento é uma função biológica (p. 65). Procederemos à elaboração de uma breve síntese sobre esse tema no intuito de apontar a versão cognitivista que os psicólogos do ego imprimiram aos processos de pensamento, permitindo ao leitor parâmetros para o estabelecimento da distância conceptual que a mesma guarda em relação à psicanálise.
De acordo com Hartmann (1962), “aprender a pensar e aprender em geral são funções biológicas independentes que existem paralelas, e, em parte, independentes dos impulsos instintivos e das defesas” (p. 25). A atividade inteligente consciente é uma das funções mais precoces e mais necessárias ao ego em sua tentativa de controlar as atividades “impulsivas instintivas”, constituindo-se num componente indispensável ao processo de adaptação do

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indivíduo. O pensamento é considerado por ele como uma atividade intelectual, um fator de inteligência e uma função primária do ego, cuja significação de utilidade biológica, no sentido de conservação do indivíduo, é inegável. Razão pela qual há “[...] estreita relação da função do pensamento mais elevado com as tarefas de adaptação, síntese e diferenciação” (p. 86).
O pensamento humano se especifica, para a referida escola, por ser pensamento inteligente, constituindo-se num processo altamente especializado no estabelecimento de relações causais e “[...] no estabelecimento de relações entre os meios e os fins” (p. 87). É esta bem equacionada proporção entre os meios disponíveis e as metas a serem atingidas o que permitiria às ações humanas o seu quinhão de ação racionalmente planejada. A ação, planejada e dirigida, é uma especialidade do ego na sua tarefa de adaptação, sendo no terreno da relação do pensamento com a ação que se esclarece “a função biológica do pensamento” (p. 89).
Na medida em que pensar racionalmente “[...] significa logicamente pensar de modo correto” (Hartmann, 1969, p. 55), e pensar de modo correto significa efetuar corretamente o conhecimento do mundo externo real, o que por sua vez implica na possibilidade de seu controle, para Hartmann, o protótipo do pensamento organizado é aquele que se produz no pensamento científico. O pensamento científico racional, produto do conhecimento, é aquele que se formula com base na apreensão da realidade (Hartmann, 1962, p. 92). Por um lado, a função intelectual do pensamento é o recurso de que dispõe o homem, dotado potencialmente de juízo, razão, compreensão e discernimento, para realizar o conhecimento objetivo sobre o real. Por outro, e não de menor importância, a função intelectual é o recurso que possibilita a transparência e a apreensão espontânea do eu pela consciência. O pensamento reflete na consciência o eu, de modo que para Hartmann (1962) “o objeto predominante do pensamento é o sujeito mesmo” (p. 91). Fica assim firmado, com a Psicologia do Ego, que “a psicologia do pensar é principalmente psicologia do ego” (Rapaport, 1962, p. 97), e que, portanto, o homem pensa com seu eu. Entretanto, “Freud nos diz – o sujeito não é a sua inteligência, não está no mesmo eixo, é excêntrico” (Lacan, 1985, p. 16).
Acreditamos que a diferença de posicionamento entre uma teoria empirista da associação e a teoria freudiana salta aos olhos. Em Freud a ênfase recai na estrutura simbólica
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que caracteriza o inconsciente e no aspecto formal pelo qual seus elementos se combinam. No empirismo a ênfase é posta no conhecimento contínuo e crescente que se produz com base na experiência sensível.
O empirismo é uma teoria epistemológica que tem por princípio que o conhecimento depende da experiência que o indivíduo tem com o mundo exterior. Para os empiristas “o conhecimento é obtido por soma e associação das sensações na percepção e tal soma e associação dependem da frequência, da repetição e da sucessão dos estímulos externos e de nossos hábitos.” (Chaui, 1996, p. 120). Acreditamos também, de acordo com Lacan, que neste particular, como em outros tantos, “encontra-se aí a união onde a psicanálise se dobra em direção a um behaviorismo cada vez mais dominante em suas ‘tendências atuais’” (1978b, p 221). A diferença que vai de um a outro posicionamento – a psicanálise e a Psicologia do Ego –, é a de um que se fundamenta nos pensamentos inconsciente, de outro, que se fundamenta nos pensamentos conscientes. Como era de se esperar as alterações produzidas no campo teórico da psicanálise pela Psicologia do Ego conduziram a que sua técnica fosse profunda e gravemente alterada, uma vez que é verdade que teoria e técnica são inseparáveis. Em Função e Campo da Fala e da Linguagem, Lacan (1978c) se propôs a “[...] tarefa de falar da fala” (p. 102). Seu objetivo era de (re)assentar os princípios sob os quais Freud havia, desde sempre, ordenado a experiência psicanalítica em torno da fala do sujeito, uma vez que “a técnica da livre associação aponta ao fato de que a psicanálise só tem um meio – a fala do paciente” (p. 112). Lacan avança a tese fundamental, e que se constituirá no traço distintivo de sua obra, da importância da função da palavra (dimensão subjetiva singular) e da linguagem em psicanálise (determinação simbólica universal), apontando que o desvio praticado na psicanálise, pela segunda e terceira geração de analistas, com relação ao inconsciente conduziu ao desvio de sua prática, no que esta se ordena em torno da função da fala e da linguagem.
A obra de Lacan consistiu no esforço em sistematizar e estabelecer a íntima e estreita relação do inconsciente com a estrutura da linguagem, demonstrando que em Freud não se trata de outra coisa no que concerne ao inconsciente: linguagem pictórica do sonho, linguagem simbólica do sintoma. O sintoma é uma formação do inconsciente produzida por

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deslocamento e condensação, constituindo-se essencialmente em palavra amordaçada pela ação do recalque e que conduz à conclusão de que “somos doentes de palavras, partimos daí e não de afetos protopáticos. e eu não posso deixar de lembrar [...] que o desafio da psicanálise é desfazer pela palavra o que foi feito pela palavra” (Czemak, 1991, p. 43). Afirmar que o inconsciente é estruturado como uma linguagem é afirmar que ele está submetido a determinadas leis que ordenam sua estrutura e sua organização, e de que o inconsciente forma, portanto, um texto lógico e coerente, do mesmo modo que a linguagem. Razão pela qual Lacan pode chegar a dizer que as leis da metáfora e da metonímia, presentes na linguagem, são homólogas às leis do deslocamento e da condensação. O inconsciente tem, em sua estrutura e modo de funcionamento, uma estrutura comparável à da linguagem. A homologação do eu à consciência por toda uma geração de analistas que sucedeu Freud foi o maior equívoco efetuado em relação à psicanálise, convertendo-se numa rota de desvio cujos rumores se fazem ainda ouvir em nossos dias através das correntes psicanalíticas derivadas da Psicologia do Ego. Como consequência inevitável dessa homologação o conceito e mesmo a menção do termo inconsciente foi, a pouco e pouco, sendo abolido do arcabouço conceptual e técnico da Psicologia do Ego. Quando o inconsciente é mencionado nessa teoria é para fazer referência aos processos mentais ditos irracionais, opostos aos racionais da consciência. Esta virada teórica praticada na psicanálise pela Psicologia do Ego veio refletir-se de modo pontual no manejo técnico, posto a íntima relação que os une. A promoção do ego como centro de controle de todo comportamento adaptado, sua elevação a sistema central da personalidade, determinou uma técnica centrada na função da consciência, objetivando o fortalecimento do ego contra as forças “instintivas do id”, motivando assim as vias por onde a psicanálise se rendeu às novas finalidades, as ortopédicas propriamente. No dizer de Hartmann (1962), “[..].a missão básica do homem é adaptar-se a estrutura social e colaborar em sua construção [...]. A submissão social é uma forma especial de obediência ao ambiente e implica no conceito de adaptação” (p. 47-48).
Lacan alertará que a direção da cura é coisa completamente diversa. Na prática da psicanálise, eticamente orientada e pautada no inconsciente, trata-se de outra coisa que de orientação de consciência, de outra coisa que promoção de adaptação. Contrariamente ao que se postulou na Psicologia do Ego, partimos do pressuposto de que no ponto de entificação

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egóica do indivíduo jaz o que faz obstáculo à pegada da verdade do desejo inconsciente, e que jamais foi realmente apreendida pelos psicólogos do ego a ética freudiana no tratamento analítico, “[...] ainda que nesse plano seja clara a intenção freudiana, que nunca é a de conformidade às normas sociais ou morais, mas sempre a de confrontação do sujeito com a verdade de seu desejo” (Juranville, 1987, p. 28).
A função da fala e da linguagem em psicanálise foi abandonada. Na Psicologia do Ego a linguagem converteu-se em sistema de sinais linguísticos postos ao serviço da função de comunicação. Desconhecendo-se a função da linguagem, esta foi transformada em sistema de comunicação posta ao serviço dos interesses do ego. Negligenciou-se o valor da linguagem como condição do inconsciente, em sua estrutura bem como em suas manifestações.
Desprezou-se a primazia dada à palavra na técnica da psicanálise em favor de um privilégio concedido a linguagem concebida como conjunto de sinais dos quais o sujeito pode servir-se com a intenção de comunicar ao receptor sua mensagem. Essa é a teoria clássica da comunicação que assenta a escuta na cadeia cronológica linear dos enunciados. O eixo do enunciado é o eixo privilegiado no qual o desejo inconsciente, presente na enunciação, permanecendo não reconhecido, aliena o sujeito de sua relação e responsabilidade com a sua verdade. No enunciado, o sujeito é joguete de sua fala vazia; é servo de sentidos postos, já dados e que funcionam como álibi que lhe permite permanecer na mais fundamental ignorância do desejo que, por habitá-lo, o move. Convém ao analista ser rigoroso na escolha do eixo sobre o qual incide sua escuta.
A escuta do analista, endereçada ao sujeito da enunciação, estabelece o sujeito que aí fala. “[...] o ouvinte, sua resposta, seu aval, sua interpretação decide do sentido do que é dito, e ainda mais, a própria identidade de quem fala” (Miller, 1988, p. 72). O que, aliás, nos lembra, se preciso fosse, que o conceito de inconsciente não pode ser separado da presença do analista (Lacan, 1988a, p. 122-123), nisto em que é na e pela transferência que o inconsciente vem à luz enquanto “atualização da realidade do inconsciente.” (p. 130).
No segundo Encontro de Psicanálise do Vale do Itajaí (1994), a propósito da função da fala na direção do tratamento psicanalítico, Norberto C. Irusta evocava que “falar é já

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automaticamente submeter-se ao risco de ter que ser compreendido. E aí onde estou arriscado a ser compreendido, compreendido...mal! Por isso em psicanálise a questão não é de compreensão, senão de escuta.” De fato, com compreensão e explicações razoáveis do porque das condutas de um sujeito nós “[...] aumentamos o seu conhecimento, mas nada mais alteramos nele” (Freud, 1937a, p 266).

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