NATIVIDADE DE MARIA
Esta festa mariana tem sua
origem na dedicação de uma igreja em Jerusalém. A piedade cristã sempre venerou
pessoas e acontecimentos que prepararam a vinda de Nossa Senhor. Maria ocupa um
lugar privilegiado, e seu nascimento é motivo de alegrias imensas.
Nessa
Basílica que se converteria na Igreja de Santana (século XII, São João
Damasceno saudou a virgem Menina: "Deus te salve, santuário divino na Mãe
de Deus ... Deus te Salve, Maria, dulcíssima filha de Ana". Ainda que o
Novo Testamento não conte dados diretos sobre a vida da Virgem Maria, uma
tradição oriental venerou seu nascimento desde meados do século V, fixando-se
no local da atual Basílica de Sant'Ana, em Jerusalém. A festa passou para Roma
no século VII, e foi aprovada pelo Papa Sérgio I. Sua festa de celebração não
tem uma origem clara, mas motivou que a festa da Imaculada Conceição fosse
celebrada dia 8 de dezembro (9 meses antes). O Papa São Pio X tirou esta festa
das festas de preceito.
A Festa da Natividade na Liturgia (D. Demétrio)
Não
existe em parte alguma na Bíblia a preocupação em saber o dia em que Maria
nasceu. Mas não se trata disto, evidentemente. A festa de sua
“natividade” segue outra lógica. Faz parte da constelação de celebrações,
colocadas no ciclo de um ano, harmonicamente distribuídas, de tal modo que se
relacionam entre si coerentemente.
Assim
faz a liturgia. Se ela coloca o nascimento de Jesus, por exemplo, no dia 25 de
dezembro, põe o nascimento de João Batista no dia 24 de junho, seis meses
antes, de acordo com o Evangelho. Portanto, as datas se escoram no Evangelho
como seu fundamento, mas se repartem no calendário de acordo com a providência
da fé, que as recorda e as insere no cotidiano da vida.
Desta
maneira, se colocamos a festa da “Imaculada Conceição” no dia oito de dezembro,
é coerente que o nascimento de Maria seja celebrado no dia oito de setembro,
isto é, nove meses depois do dia oito de dezembro. Assim, fica registrado o
fato normal, do nascimento, como para qualquer pessoa humana. Mas ele fica
ressaltado pelo testemunho do Evangelho, o qual garante que Maria foi “cheia de
graça”, fundamentando a convicção de sua concepção imaculada.
Estas
celebrações, cada qual com seu valor e sua intenção específica, acabam
mostrando o mais importante: o mistério de Cristo ilumina agora toda a
realidade e toda a história, que é simbolizada pelo ciclo de cada ano. Nossa
vida agora é iluminada por Cristo, “o sol nascente”, que ilumina toda a
humanidade. E como a lua se encarrega de refletir a luz do sol, e
torná-la mais humana e amena, assim Maria reflete em si mesma, e projeta para
nós, a mesma luz de Cristo, na qual podemos reconhecer nossa própria vida.
HOMILIA DE SÃO JOÃO DAMASCENO
SOBRE A NATIVIDADE DE
MARIA
Tradução: Seminário de
Sintra (Portugal)
A
Festa da Natividade de Nossa Senhora desde muito cedo que foi celebrada no
Oriente, e muitos textos dos Padres o atestam; este, que traduzimos, foi
pronunciado em Jerusalém, na Igreja situada sobre o local da Piscina Probática,
onde Jesus tinha curado o paralítico, e onde a tradição – atestada por alguns
apócrifos – situava a casa de Joaquim e de Ana, o que vem a explicar certas
alusões feitas ao longo do texto.
É
um grande texto panegírico da glória de Maria, por dela ter nascido o Salvador,
com expressões que chegam a parecer ter sido produzidas em estado de êxtase.
Usando dados do Antigo Testamento, dos Evangelhos e das Cartas, da tradição
oral, de outros teólogos e da própria liturgia bizantina, o nosso Doutor passa
em revista a importância para a salvação e para a Igreja do nascimento de
Maria, louvando «en passant» os seus pais, Joaquim e Ana. Um ponto muito
importante: chama e afirma – é dos primeiros a fazê-lo - Imaculada a Maria.
Sem
deixar de fazer também todo o desfiar das tipologias de Maria presentes no
Antigo Testamento, S. João Damasceno consegue louvar Nossa Senhora como poucos
o fizeram, fornecendo a base patrística para muitas das afirmações acerca de
Maria e do seu lugar no mistério da Redenção do homem que mais tarde vieram a
efectuar-se. A sua influência na Idade Média foi enorme, e pode mesmo dizer-se
que a intuição de base do Dogma da Assunção Corporal de Nossa Senhora ao céu
está já presente na obra do Damasceno.
Do
humilde monge e presbítero João Damasceno, discurso para o nascimento de Nossa
Senhora Santíssima, a Mãe de Deus e sempre Virgem Maria.
1.
Vinde, todas as nações, vinde, homens de todas as raças, línguas e idades, de
todas as condições: com alegria celebremos a natividade da alegria do mundo
inteiro! Se os gregos destacavam com todo o tipo de honras – com os dons que
cada um podia oferecer – o aniversário das divindades, impostos aos espíritos
por mitos mentirosos que obscureciam a verdade, e também o dos reis, mesmo se
eles fossem o flagelo de toda a existência, que deveríamos nós fazer para
honrar o aniversário da Mãe de Deus, por quem toda a raça mortal foi
transformada, por quem o castigo de Eva, nossa primeira mãe, foi mudada em
alegria? Com efeito, uma ouviu a sentença divina: «Darás à luz no meio de
penas»; a outra ouviu, por seu turno: «Alegra-te, oh Cheia de Graça». À
primeira disse-se: «Inclinar-te-ás para o teu marido», mas à segunda: «O Senhor
está contigo». Que homenagem ofereceremos então nós à Mãe do Verbo, senão outra
palavra? Que a criação inteira se alegre e festeje, e cante a natividade de uma
santa mulher, porque ela gerou para o mundo um tesouro imperecível de bondade,
e porque por ela o Criador mudou toda a natureza num estado melhor, pela
mediação da humanidade. Porque se o homem, que ocupa o meio entre o espírito e
a matéria, é o laço de toda a criação, visível e invisível, o Verbo criador de
Deus, ao se unir à natureza humana, uniu-se através dela a toda a criação.
Festejemos assim o desaparecimento da humana esterilidade, pois cessou para nós
a enfermidade que nos impedia a posse dos bens.
2.
Mas porque nasceu a Virgem Maria de uma mulher estéril? Àquele que é o único
verdadeiramente novo debaixo do sol, como coroamento das Suas maravilhas,
deviam ser preparados os caminhos por maravilhas, para que lentamente as
realidades mais baixas se elevassem de modo a serem as mais altas. E eis uma
outra razão, mais alta e mais divina: a natureza cedeu o lugar à graça, pois ao
vê-la tremeu, e não quis mais ter o primeiro lugar. Como a Virgem Mãe de Deus
devia nascer de Ana, a natureza não ousou prevenir o fruto da graça, mas
permaneceu ela própria sem fruto, até que a graça trouxesse o seu. Era
necessário que fosse primogénita aquela que deveria gerar «o Primogénito de
toda a criação, no Qual tudo subsiste». Oh Joaquim e Ana, casal venturoso! Toda
a criação está em dívida para convosco, porque através de vós ela pôde oferecer
ao Criador o dom – entre todos o mais excelso – de uma Mãe venerável, a única
digna d’Aquele que a criou. Ditosos os rins de Joaquim, de onde saiu uma
semente totalmente imaculada, e admirável o seio de Ana, graças ao qual se
desenvolveu lentamente, onde se formou e de onde nasceu uma tão santa criança!
Oh entranhas que levastes um céu vivo, mais vasto que a imensidade dos céus! Oh
moinho onde foi amassado o Pão vivificante, segundo as próprias palavras de
Cristo: «Se o grão de trigo não cair na terra e morrer, ficará só». Oh seio que
aleitaste aquela que alimentou o Aquele que alimenta o mundo! Maravilha das
maravilhas, paradoxo dos paradoxos! Sim, a inexprimível Encarnação de Deus,
cheia de condescendência, devia ser precedida por estas maravilhas. Mas como
prosseguirei? O meu espírito está fora de si, dividido que estou entre o temor
e o amor; o meu coração bate e a minha língua move-se: não posso suportar a
alegria, as maravilhas deitam-me por terra, o ardor apaixonado aprisionou-me
num arrebatamento divino. Que o amor vença, que o temor desapareça e que cante
a cítara do Espírito: «Alegrem-se os céus, exulte a terra»!
3.
Hoje as portas da esterilidade abrem-se, e uma porta virginal e divina avança:
a partir dela, por ela, o Deus que está acima de todos os seres deve «vir ao
mundo» «corporalmente», segundo a expressão de Paulo, ouvinte dos segredos
inefáveis. Hoje, da raíz de Jessé saiu uma vergôntea, de onde surgirá para o mundo
uma flor substancialmente unida à divindade.
Hoje,
a partir da natureza terrena, um céu foi formado sobre a terra por Aquele que
outrora o tornara sólido separando-o das águas, elevando o firmamento nas
alturas. É um céu verdadeiramente mais divino e mais elevado que o primeiro,
porque Aquele que no primeiro céu criara o sol Se elevou a Si próprio neste
novo como um sol de justiça. Sim, há n’Ele duas Naturezas, apesar da loucura
dos Acéfalos, e uma só Pessoa, mesmo que os Nestorianos se encolerizem! A Luz
eterna, proveniente da Luz eterna antes de todos os séculos, o Ser, imaterial e
incorpóreo, tomou um corpo desta mulher, e como um esposo que sai para fora de
seu tálamo, assim fez Deus, tornando-se como tal filho da raça terrena. Como um
gigante Ele alegra-Se de percorrer os caminhos da nossa natureza, de Se
encaminhar, pelos Seus sofrimentos, para a morte, de atar o homem forte e lhe
arrancar os seus bens, isto é, a nossa natureza, e de reunir na terra celeste a
ovelha errante.
Hoje,
o «Filho do Carpinteiro», O Verbo universalmente activo d’Aquele que tudo
construiu por Ele, o Braço Poderoso do Deus Altíssimo, querendo afiar pelo
Espírito - que é como o seu dedo – a lâmina embotada da natureza, construiu
para Si uma escada viva, cuja base está firmada na terra, com o cimo a tocar os
céus: Deus repousa sobre ela. É dela a figura que Jacob contemplou, e por ela
Deus desceu da Sua imobilidade, ou melhor, inclinou-Se com condescendência,
tornando-Se assim «visível sobre a terra, e conversando com os homens». Estes
símbolos representam a Sua vinda ao meio de nós, o seu abaixamento
condescendente, a sua existência terrena, o verdadeiro conhecimento d’Ele
próprio, dado a todos aqueles que estão sobre a terra. A escada espiritual, a
Virgem, está fixa na terra, pois na terra ela tem a sua origem, mas a sua
cabeça eleva-se até ao céu. A cabeça de toda a mulher é o homem, mas para ela,
que não conheceu homem, Deus Pai ocupa o lugar de sua cabeça: pelo Espírito
Santo, Ele concluiu uma aliança e, como semente divina e espiritual, enviou o
Seu Filho e Verbo, força omnipotente. Em virtude do beneplácito do Pai, não é
por uma união natural, mas é superando as leis da natureza, pelo Espírito Santo
e pela Virgem Maria, que o Verbo Se fez carne e habitou entre nós. É por aqui que
se vê que a união de Deus com os homens se cumpre pelo Espírito Santo.
«Quem
puder entender, que entenda»; «Quem tem ouvidos para ouvir, que oiça».
Descartemos as representações corporais: a divindade jamais sofreu mudança, oh
homens! Aquele que sem alteração gerou Seu Filho a primeira vez segundo a
natureza, sem alteração O gera agora de novo segundo a economia. Disto é
testemunha a palavra de David, antepassado de Deus: «O Senhor disse-me:
"Tu és Meu Filho, Eu hoje te gerei"». Ora este «hoje» não tem cabimento
na geração antes de todos os séculos, pois esta deu-se fora do tempo.
4.
Hoje é edificada a Porta do Oriente, que dará a Cristo «entrada e saída», e
«essa porta estará fechada». Nela está Cristo, «a Porta das Ovelhas», e «o Seu
nome é Oriente»: por Ele obtivemos acesso ao Pai das Luzes. Hoje sopraram as
brisas anunciadoras duma alegria universal. Alegre-se o céu nas alturas, que
debaixo dele «exulte a terra», que os mares do mundo bramam, porque no mundo
acaba de ser concebida uma concha, a qual pelo clarão celeste da divindade
conceberá em seu seio, gerando a pérola inestimável, Cristo. Dela sairá o «Rei
da Glória», revestido da púrpura de sua carne, para «visitar os cativos», e
«proclamar a libertação». Que a natureza transborde de alegria: a cordeirinha
vem ao mundo, graças à qual o Pastor revestirá a ovelha, tirando-lhe as túnicas
da antiga mortalidade. Que a virgindade forme os seus coros de dança, pois
nasceu a Virgem que, segundo Isaías, «conceberá e dará à luz um filho, que será
chamado Emmanuel, o que quer dizer "Deus connosco"». Aprendei, oh
Nestorianos, e fugi à vossa derrota: «Deus connosco»! Não é nem só um homem,
nem um mensageiro, mas o Senhor em Pessoa que virá e nos salvará.
«Bendito
o que vem em nome do Senhor», «o Senhor é Deus, e iluminou-nos»; «Celebremos
uma festa» para o nascimento da Mãe de Deus. Rejubila, Ana, «estéril que não
davas à luz; ri de alegria e de júbilo, tu que não tiveste as dores de parto»!
Rejubila, Joaquim: de tua filha «um menino nos nasceu, um filho nos foi dado
(...) e ser-lhe-á dado este nome: Anjo do grande Conselho (quer dizer, Salvação
do Universo) Deus Forte». Que Nestório fique vermelho e meta a mão sobre a
boca. A criança é Deus; portanto, como não seria ela a Mãe de Deus, ela que O
colocou no mundo? «Se alguém não reconhece por Mãe de Deus a Santa Virgem, está
separado da divindade». A frase não é minha, mas no entanto pertence-me:
recebi-a como precioso tesouro e herança teológica do meu pai Gregório, o
Teólogo.
5.
Oh Joaquim e Ana, casal bem-aventurado e verdadeiramente sem mancha! Pelo fruto
do vosso seio fostes reconhecidos, segundo a palavra do Senhor: «Pelos seus
frutos os reconhecereis». A vossa conduta foi agradável a Deus e digna daquela
que nasceu de vós. Tendo levado uma vida casta e santa, engendrastes a jóia da
virgindade, aquela que deveria permanecer Virgem antes, durante e depois do
parto, a única sempre Virgem de espírito, de alma e de corpo. Convinha, de
facto, que a virgindade saída da castidade produzisse a Luz única e monógena,
corporalmente, pela benevolência d’Aquele que A gerou sem corpo – o Ser que não
gera, mas que é eternamente gerado, para Quem ser gerado é a única qualidade
própria da Sua Pessoa. Oh que maravilhas, e que alianças estão neste menino! Oh
Filha da esterilidade, virgindade que engravida, nela se unirão divindade e
humanidade, sofrimento e impassibilidade, vida e morte, para que em todas as
coisas o menos perfeito seja vencido pelo melhor! E tudo isto para minha
salvação, oh Mestre! Amas-me tanto que não realizaste esta salvação nem pelos
anjos, nem por nenhuma outra criatura, mas tal como já a minha criação, também
a minha regeneração foi Tua obra pessoal. Assim, eu exulto, faço despertar a
minha alegria e o meu júbilo, volto à fonte das maravilhas, e embriagado de uma
torrente de alegria, toco de novo a cítara do espírito e canto o hino divino da
natividade.
6.
Oh Joaquim e Ana, casal castíssimo, «par de rolas» no sentido místico!
Observando a lei da natureza, a castidade, merecestes os dons que ultrapassam a
natureza: gerastes no mundo uma Mãe de Deus sem esposo. Depois de uma
existência santa e piedosa numa natureza humana, gerastes uma filha superior
aos anjos e que agora reina sobre eles. Oh Filha graciosíssima e dulcíssima, oh
lírio nascido entre os espinhos, da descendência nobilíssima e real de David!
Por ti a realeza encheu-se com o sacerdócio; por ti foi cumprida «a mudança da
Lei», e revelado o espírito escondido sob a letra, pois que a dignidade
sacerdotal passou da tribo de Levi à de David. Oh Rosa nascida dos espinhos do
judaísmo, que enche o universo de um perfume divino! Oh filha de Adão e Mãe de
Deus! Ditosos os rins e o seio de onde surgistes! Ditosos os braços que te
levaram, os lábios que experimentaram os teus castos beijos, os lábios de teus
pais, para que em tudo tu fosses eternamente virgem. Hoje é para o mundo o
início da salvação. «Aclamai o Senhor, terra inteira, cantai, exultai, tocai
instrumentos». Elevai a vossa voz, «fazei-a escutar sem temor», porque na Santa
Probática nos nasceu uma Mãe de Deus, de quem quis nascer o Cordeiro de Deus,
que tira o pecado do mundo.
Tremei
de alegria, oh montanhas, naturezas racionais, voltadas para o cume da
contemplação espiritual: a montanha do Senhor, refulgente, vem ao mundo,
ultrapassando todas as montanhas e todas as colinas, isto é, os anjos e os
homens; dela, sem intervenção da mão do homem, Cristo quis desprender-Se, Ele
que é a Pedra Angular, Pessoa Una, que aproxima em Si aquilo que está distante:
a divindade e a humanidade, os anjos e os homens, os gentios e o Israel carnal
num só Israel espiritual. «Montanha de Deus, montanha de abundância, montanha
que Deus escolheu para Seu repouso. Os carros de Deus vêm aos milhares, com
seres refulgentes» da graça divina, querubins e serafins. Oh cume mais santo
que o Sinai, não coberto nem por fumo, nem por trevas, nem por tempestades, nem
sequer por fogo perecível, mas pelo esplendor que ilumina do Santíssimo
Espírito. No Sinai, o Verbo de Deus tinha gravado a Lei sobre tábuas de pedra,
pelo Espírito, dedo divino; aqui, pela acção do Espírito Santo e pelo sangue de
Maria, o próprio Verbo encarnou, dando-se á nossa natureza como um remédio de
salvação mais eficaz. Antes, era o maná; aqui, está Aquele que deu o maná e a
sua doçura.
Que
a morada célebre que Moisés construiu no deserto com matérias preciosas de todo
o tipo, e ainda antes dela a morada do nosso pai Abraão, se apaguem diante da
morada de Deus, viva e espiritual. Ela foi o repouso, não só da energia divina,
mas da Pessoa do Filho, que é Deus, presente substancialmente. Que a arca
recoberta de ouro reconheça que não tem nada de comparável com Maria, e da
mesma forma a urna de ouro com o maná, o candelabro, a mesa e todos os objectos
do culto antigo: eles foram honrados porque todos a prefiguravam, como sombras
do verdadeiro protótipo.
7.
Hoje, o Criador de todas as coisas, Deus Verbo, fez um livro novo, saído do
coração do Pai para ser escrito, como se fosse por uma cana, pelo Espírito, que
é a língua de Deus. Esse livro foi dado a um homem que conhecia as letras, mas
que não o lia. José, com efeito, não conheceu Maria, nem a significação do
mistério em si. Oh filha toda santa de Joaquim e de Ana, que escapaste aos
olhares dos Principados e das Potestades e aos «assédios inflamados do
maligno», e que viveste no tálamo do Espírito, para seres guardada intacta e te
tornares esposa de Deus e Mãe de Deus por natureza! Oh filha toda santa, que
apareceste nos braços de tua mãe, tu és o terror das potências de rebelião! Oh
filha toda santa, alimentada do leite maternal, e rodeada das legiões
angélicas! Oh filha amada de Deus, honra de teus pais, gerações de gerações te
proclamam bem aventurada, como tu própria o afirmaste com verdade! Oh filha
digna de Deus, beleza da natureza humana, reabilitação de Eva, nossa primeira
mãe! Por teu nascimento, aquela que tombara foi redimida. Oh filha toda santa,
esplendor do sexo feminino! Se a primeira Eva, com efeito, foi culpada de
transgressão, e se por sua causa «a morte fez a sua entrada no mundo» (porque
ela se colocou ao serviço da serpente contra o nosso primeiro pai), Maria, que
se fez a serva da vontade divina, enganou a serpente enganadora e introduziu no
mundo a imortalidade.
Oh
filha sempre Virgem, que pode conceber sem intervenção humana, porque Aquele
que concebeste tem um Pai Eterno! Oh filha da raça terrena, que levas em teus
braços divinamente maternais o Criador! Os séculos rivalizavam entre si para
saber qual deles se honraria de te ver nascer, mas o desígnio fixado
antecipadamente de Deus, «que fez os séculos» colocou fim a essa rivalidade, e
os últimos tornaram-se os primeiros, eles a quem foi atribuída a felicidade da
tua Natividade. Na verdade, tu és mais preciosa que toda a criação, pois só de
ti o Criador recebeu em partilha as primícias da nossa matéria humana. A Sua
Carne foi feita da tua carne, o Seu Sangue do teu sangue; Deus alimentou-Se do
teu leite, e os teus lábios tocaram os lábios de Deus. Oh maravilhas
incompreensíveis e inefáveis! Na presciência da tua dignidade, amou-te o Deus
do universo; porque te amou, predestinou-te, e nos «últimos tempos», chamou-te
à existência, e constituiu-te Mãe para gerar um Deus e alimentar o Seu próprio
Filho e Verbo.
8.
Diz-se que os contrários servem de remédio contra os contrários, mas os
contrários não nascem uns dos outros. Mesmo se cada ser é na sua natureza um
tecido de contrários, ele próprio provém da predominância da causa que o fez
nascer. De facto, da mesma forma que o pecado, ao operar para mim a morte por
meio do bem, mostra em extremo a sua natureza pecaminosa, da mesma forma o
Autor dos bens, pelo meio dos contrários desses bens, opera para nós o bem que
Lhe é natural, porque «onde abundou o pecado, superabundou a graça». Se
tivéssemos conservado a nossa primeira comunidade com Deus, não teríamos
merecido a Segunda, maior e mais extraordinária. De facto, pelo pecado, fomos
julgados indignos da primeira união, porque não conservámos o dom recebido. Mas
pela compaixão de Deus fomos perdoados e tomados sob a Sua guarda, para que a
comunhão fosse assegurada, porque nos quer conservar unidos a Ele, sem nenhuma
beliscadura, Aquele que nos recebeu sob a Sua protecção.
Sim,
toda a terra pejava de fornicações, e o povo do Senhor, possuído «pelo espírito
de fornicação», errava longe do Senhor seu Deus, longe d’Aquele que o tinha
adquirido «com mão forte e braço poderoso», que com sinais e prodígios o tinha
feito sair da «casa da escravidão» do Faraó, o tinha conduzido através do Mar
Vermelho e guiado «por uma nuvem de dia, e noite inteira por um luzeiro de
fogo». O seu coração voltava-se para o Egipto, e o povo do Senhor tornou-se
«aquele que não é o povo do Senhor»; aquele que obtinha misericórdia, tornou-se
aquele que não a merecia, e aquele que era amado, tornou-se aquele que não era
amado.
Eis
então a razão pela qual uma Virgem vem agora ao mundo, como adversária da
ancestral fornicação; ela foi dada como esposa ao próprio Deus, e gerou a
misericórdia de Deus. Assim foi estabelecido como povo de Deus aquele que até
aí não era o Seu povo; excluído da Sua misericórdia, obteve misericórdia; não
amado, é agora amado. Dela nasce o Filho Bem-Amado de Deus, no Qual Ele colocou
as Suas complacências.
9.
«Uma vinha de belos sarmentos» foi gerada no seio de Ana, e ela produziu um
fruto cheio de doçura, fonte de um néctar abundante de vida eterna para os
habitantes da terra. Joaquim e Ana fizeram-se semeadores de justiça, e
recolheram um fruto de vida. Eles foram iluminados pela luz do conhecimento,
procuraram o Senhor, e daí lhes veio um fruto de justiça. Que a terra tenha
confiança! «Filhos de Sião, alegrai-vos no Senhor vosso Deus, porque o deserto
ficou verdejante»: aquela que era estéril deu o seu fruto; Joaquim e Ana, como montanhas
místicas, fizeram brotar vinho doce. Permanece na alegria, oh Ana venturosa,
por teres dado à luz uma mulher, porque essa mulher será a Mãe de Deus, porta
da luz, fonte de vida, e reduzirá nada a acusação que pesava sobre a mulher.
Os
homens nobres do povo desejarão vê-la, e diante dessa mulher os reis das nações
prostrar-se-ão, oferecendo-lhe presentes. Entregá-la-ás a Deus, rei universal,
adornada da beleza das suas virtudes como de «brocados de ouro», ornada da
graça do Espírito, de cuja glória ela se reveste. A glória da mulher é o homem,
e é-lhe dada a partir de fora; mas a glória da Mãe de Deus é interior, e é
fruto do seu seio.
Oh
mulher amabilíssima, três vezes bem-aventurada! «Bendita és tu entre as
mulheres, e bendito o fruto do teu ventre»! Oh mulher, filha do Rei David e Mãe
de Deus, Rei do Universo! Oh divina e vivente obra-prima, na qual Deus Criador
Se alegrou, de quem o espírito é governado por Deus e atento somente a Ele, e
de quem todo o desejo se eleva apenas Àquele que é o único amável e desejável,
que não te encolerizas senão contra o pecado e contra aquele que o fez nascer!
Terás uma vida superior à natureza, porque não é para ti que a terás, já que
também não é para ti que tu nasceste. Terás antes a tua vida para Deus, e é por
causa d’Ele que vieste à vida, por causa de Quem servirás à salvação universal,
para que o antigo desígnio de Deus, a Encarnação do Verbo e a nossa
divinização, se cumpra através de ti. A tua vontade é alimentares-te das
palavras divinas e fortificares-te com a sua seiva, como «oliveira fecunda na
casa de Deus», como «árvore plantada à beira das águas» do Espírito, como
árvore da vida, que deu o seu fruto no tempo que lhe foi destinado: o fruto que
é o Deus Encarnado, Vida eterna de todos os seres. Guardas todos os pensamento
gostoso e útil para a alma, mas todo aquele que é supérfluo e que seria um
perigo para a alma tu o rejeitas ainda antes de o provar. Os teus olhos «estão
sempre voltados para o Senhor», olhando a luz eterna e inacessível. Teus
ouvidos escutam a palavra de Deus e deleitam-se com a cítara do Espírito; foi
por eles que o Verbo entrou para Se fazer Carne. Tuas narinas respiram
deliciadas o aroma dos perfumes do Esposo, que é Ele próprio um perfume,
espontaneamente derramado para perfumar a Sua humanidade: «O teu nome é um
perfume que se espalha», diz a Escritura. Os teus lábios louvam o Senhor, e
estão ligados aos Seus lábios. A tua língua e o teu palato discernem as
palavras de Deus e saciam-se com a suavidade divina. Oh coração puro e sem mácula,
que vê e deseja o Deus imaculado!
É
neste seio que o Ser ilimitado veio habitar; do seu leite se alimentou Deus, o
Menino Jesus. Oh porta de Deus, sempre virginal! Eis as mãos que suportam Deus,
e esses joelhos que são um trono mais elevado que os querubins: por eles «as
mãos fracas e os joelhos trémulos» foram fortalecidos. Os seus pés são guiados
pela lei de Deus como por uma lâmpada que brilha, e correm após Ele sem se
voltarem, até que tenham feito chegar aquela que ama junto do Bem-Amado. Em todo
o seu ser ela é o tálamo do Espírito, a Cidade de Deus Vivo, que «alegra os
canais do rio», isto é, as correntes dos carismas do Espírito: «Toda bela, toda
próxima de Deus». Dominando os querubins, mais alta que os serafins, próxima de
Deus: é a ela que esta palavra se aplica!
10.
Oh maravilha que ultrapassa todas as maravilhas: uma mulher é colocada mais
alto que os serafins, porque Deus surgiu abaixado «um pouco inferior aos
anjos»! Que o sapientíssimo Salomão se cale, e não torne a dizer: «Nada de novo
debaixo do sol». Oh Virgem cheia da graça divina, templo santo de Deus, que o
Salomão espiritual, o Príncipe da Paz, construiu e habita, o ouro e as
pedrarias não te dão mais beleza, mas mais que o ouro, é o Espírito que te dá o
teu esplendor. Por pedrarias, tens a pérola preciosíssima, Cristo, a Brasa da
divindade. Suplica-Lhe que toque os nossos lábios, para que, purificados, Lhe
cantemos, com o Pai e o Espírito, a natureza única da Divindade em três
Pessoas: «Santo, Santo, Santo, Senhor Deus dos Exércitos».
Santo
é o Pai, que quis que em ti e por ti se cumprisse o mistério que predeterminara
antes de todos os séculos. Santo é o Forte, o Filho de Deus, e Deus Monógeno,
que hoje te faz nascer, primogénita de uma mãe estéril, para que, sendo Ele
próprio Filho Único do Pai e «Primogénito de toda a criatura», possa nescer de
ti, como Filho único de uma Virgem-Mãe, «Primogénito de uma multidão de
irmãos», semelhante a nós e por ti participante da nossa carne e do nosso
sangue. Apesar disso, não te fez nascer de um só pai ou de uma só mãe, para que
ao único Monógeno fosse reservado em perfeição o privilégio de Filho Único: Ele
é, com efeito, Filho Único, somente Ele de um Pai só, somente Ele de uma Mãe
só.
Santo
é o Imortal, o Espírito de toda a santidade, que pelo orvalho da Sua Divindade
te guardou intocada pelo fogo divino: é isto que significou antecipadamente a
sarça ardente.
Eu
te saúdo, oh Porta das Ovelhas, morada santíssima da Mãe de Deus. Eu te saúdo,
oh Porta da Ovelhas, domicílio ancestral da tua rainha, antigamente redil das
ovelhas de Joaquim, mas hoje tornada Igreja do rebanho espiritual de Cristo e
imitação do céu. Outrora recebias uma vez por ano um anjo de Deus, que agitava
as águas e devolvia a saúde a um só homem, livrando-o do mal que o paralisava;
agora recebes multidões de potências celestes que celebram connosco a Mãe de
Deus, Abismo de Maravilhas, fonte da cura universal. Tu recebeste, não um anjo
servidor, mas o «Anjo do Grande Conselho», descido sem ruído algum sobre o velo
de lã como uma chuva de bondade, Aquele que renovou toda a natureza, doente e a
ponto de se perder, com uma saúde inalterável e uma vida sem velhice: por Ele,
o paralítico que em ti jazia saltou como um veado. Eu te saúdo, oh preciosa
Porta das Ovelhas, e que se multiplique a tua graça!
Eu
te saúdo, Maria, filha dulcíssima de Ana. De novo para ti o amor me impele.
Como descrever o teu caminhar cheio de seriedade, os teus vestidos, a graça de
teu rosto, a maturidade do discernimento num corpo juvenil? A tua forma de
estar foi modesta, distante de todo o luxo e de toda a indolência; o teu
caminhar era grave, sem precipitação, sem preguiça; o teu carácter era sério,
temperado de júbilo, de uma perfeita reserva a propósito dos homens – disto é
testemunho a inquietação que te surgiu aquando da proposta inesperada do anjo.
A teus pais dócil e obediente, tinhas humildes sentimentos nas mais altas
contemplações, palavra amável, provinda de uma alma pacífica. Em resumo: que
outra digna morada senão tu para Deus? Com razão todas as gerações te proclamam
bem-aventurada, oh glória insigne da humanidade! Tu és a honra do sacerdócio, a
esperança dos cristãos, a planta fecunda da virgindade, porque é através de ti
que o renome da virgindade se estendeu aos confins do mundo. «Bendita és tu entre
as mulheres, e bendito o Fruto do teu ventre». Aqueles que confessam a tua
maternidade divina são benditos, e malditos aqueles que a negam.
12.
Joaquim e Ana, casal abençoado, recebei de mim estas palavras de aniversário.
Oh filha de Joaquim e de Ana, oh Soberana, acolhe a palavra deste teu servo
pecador, mas inflamada pelo amor, e para quem tu és a única esperança de
alegria, a protectora da vida e, junto de teu Filho, a reconciliadora e firme
garantia da salvação. Possa tu aliviar-me do fardo dos meus pecados, dissipar a
névoa que obscurece o meu espírito e o peso que me agarra à matéria. Possas tu
deter as tentações, governar felizmente a minha vida e conduzir-me pela mão até
à felicidade do Alto. Concede ao mundo a paz, e a todos os habitantes ortodoxos
desta cidade uma alegria perfeita e a salvação eterna, pelas orações de teus
pais e de todo o Corpo da Igreja. Assim seja, assim seja! «Salve, oh cheia de
graça, o Senhor está contigo! Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o
fruto de teu ventre», Jesus Cristo, o Filho de Deus. A Ele a Glória, com o Pai
e o Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amém.
Fontes:
http://www.universocatolico.com.br