Todo mundo já sabe
“A Igreja precisa de uma reforma urgente”
(afirma
jesuíta egípcio em carta dirigida a Bento XVI)
O jesuíta
egípcio mais destacado nos âmbitos eclesial e intelectual, Henri Boulad, lança um SOS para
a Igreja de hoje em uma carta dirigida a Bento XVI. A carta
foi transmitida através da Nunciatura no Cairo. O texto
circula em meios eclesiais de todo o mundo.
Henri Boulad é autor de Deus e o
mistério do tempo (Edições Loyola, 2006) e O homem diante da liberdade
(Edições Loyola, 1994), entre outros.
A carta está publicada no sítio Religión
Digital, 31-01-2010.
A tradução é do Cepat.
Eis a carta.
Santo Padre:
Atrevo-me a dirigir-me
diretamente a Você, pois meu coração sangra ao ver o abismo em que a nossa
Igreja está se precipitando. Saberá desculpar a minha franqueza filial,
inspirada simultaneamente pela “liberdade dos filhos de Deus” a que São Paulo
nos convida e pelo amor apaixonado à Igreja.
Agradecer-lhe-ei também que
saiba desculpar o tom alarmista desta carta, pois creio que “são menos cinco” e
que a situação não pode esperar mais.
Permite-me, em primeiro lugar,
apresentar-me. Sou jesuíta egípcio-libanês do rito melquita e logo farei 78
anos. Há três anos sou reitor do Colégio dos jesuítas no Cairo, após ter
desempenhado os seguintes cargos: superior dos jesuítas em Alexandria, superior
regional dos jesuítas do Egito, professor de Teologia no Cairo, diretor da
Cáritas - Egito e vice-presidente da Cáritas Internacional para o Oriente Médio
e a África do Norte.
Conheço muito bem a hierarquia
católica do Egito por ter participado durante muitos anos de suas reuniões como
Presidente dos Superiores Religiosos de Institutos no Egito.
Tenho relações muito próximas com cada um deles, alguns dos quais são ex-alunos
meus. Por outro lado, conheço pessoalmente o Papa Chenouda III,
que via com frequência. Quanto à hierarquia católica da Europa, tive a ocasião
de me encontrar pessoalmente muitas vezes com alguns de seus membros, como o cardeal
Koening, o cardeal Schönborn, o cardeal
Martini, o cardeal Daneels, o
arcebispo Kothgasser, os bispos diocesanos Kapellari
e Küng, os demais bispos austríacos e outros bispos de outros
países europeus. Estes encontros se produzem por ocasião das minhas viagens
anuais para dar conferências pela Europa: Áustria, Alemanha, Suíça, Hungria,
França, Bélgica... Nestas ocasiões me dirijo a auditórios muito diversos e à
mídia (jornais, rádios, televisões...). Faço o mesmo no Egito e no Oriente
Próximo.
Visitei cerca de 50 países nos
quatro continentes e publiquei cerca de 30 livros em aproximadamente 15
línguas, sobretudo em francês, árabe, húngaro e alemão. Dos 13 livros nesta
língua, talvez Você tenha lido Gottessöhne, Gottestöchter
(Filhos, filhas de Deus), que o seu amigo o Pe. Erich Fink, da
Baviera, lhe fez chegar a suas mãos.
Não digo isto para me
vangloriar, mas para lhe dizer simplesmente que as minhas intenções se fundam
em um conhecimento real da Igreja universal e de sua situação atual, em 2009.
Volto ao motivo desta carta e
tentarei ser o mais breve, claro e objetivo possível. Em primeiro lugar,
algumas constatações (a lista não é exclusiva):
2. Seminários e noviciados se
esvaziam no mesmo ritmo, e as vocações caem vertiginosamente. O futuro é
sombrio e há quem se pergunte quem irá substituir os sacerdotes. Cada vez mais
paróquias europeias estão a cargo de sacerdotes da Ásia ou da África.
3. Muitos sacerdotes abandonam o
sacerdócio e os poucos que ainda o exercem – cuja idade média ultrapassa muitas
vezes a da aposentadoria – têm que se encarregar de muitas paróquias, de modo
expeditivo e administrativo. Muitos deles, tanto na Europa como no Terceiro
Mundo, vivem em concubinato à vista de seus fiéis, que normalmente os aceitam,
e de seu bispo, que não pode aceitá-lo, mas que tem em conta a escassez de
sacerdotes.
5. Isto não poderá ser feito
senão mediante uma renovação em profundidade da teologia e da catequese, que
deveriam ser repensadas e reformuladas totalmente. Um sacerdote e religioso
alemão que encontrei recentemente me dizia que a palavra “mística” não é
mencionada uma única vez no Novo Catecismo. Não podia
acreditar nisso. Temos de constatar que a nossa fé é muito cerebral, abstrata,
dogmática e se dirige muito pouco ao coração e ao corpo.
6. Em consequência, um grande
número de cristãos se volta para as religiões da Ásia, as seitas, a nova era,
as igrejas evangélicas, o ocultismo, etc. Não é de estranhar. Vão buscar em
outros lugares o alimento que não encontram em casa, têm a impressão de que
lhes damos pedras como se fossem pão. A fé cristã, que em outro tempo outorgava
sentido à vida das pessoas, é para elas hoje um enigma, restos de um passado
que acabou.
7. No plano moral e ético, os
ditames do Magistério, repetidos à saciedade, sobre o matrimônio, a
contracepção, o aborto, a eutanásia, a homossexualidade, o matrimônio dos
sacerdotes, as segundas uniões, etc., já não dizem mais nada a ninguém e
produzem apenas desleixo e indiferença. Todos estes problemas morais e
pastorais merecem algo mais que declarações categóricas. Necessitam de um
tratamento pastoral, sociológico, psicológico e humano... em uma linha mais
evangélica.
9. Os países mais católicos de
antes – a França, “primogênita da Igreja”, ou o Canadá francês ultra-católico –
deram uma guinada de 180º e caíram no ateísmo, no anticlericalismo, no
agnosticismo, na indiferença. No caso de outros países europeus, o processo
está em marcha.
Pode-se constatar que quanto mais dominado e protegido pela
Igreja esteve um povo no passado, mais forte é a reação contra ela.
10. O diálogo com as outras
igrejas e religiões está em preocupante retrocesso hoje. Os grandes progressos
realizados há meio século estão sob suspeita neste momento.
Diante desta constatação quase
demolidora, a reação da igreja é dupla:
– Tende a minimizar a gravidade
da situação e a consolar-se constatando certo dinamismo em sua facção mais
tradicional e nos países do Terceiro Mundo.
– Apela para a confiança no
Senhor, que a sustentou durante 20 séculos e será capaz de ajudá-la a superar
esta nova crise, como o fez nas precedentes. Por acaso, não tem promessas de
vida eterna?
A isto respondo:
– Não é apoiando-se no passado
nem recolhendo suas migalhas que se resolverão os problemas de hoje e de
amanhã.
– A aparente vitalidade das
Igrejas do Terceiro Mundo é equívoca. Segundo parece, estas novas Igrejas, mais
cedo ou mais tarde, atravessarão as mesmas crises que a velha cristandade
europeia conheceu.
– A Modernidade é irreversível,
e é por ter esquecido isso que a Igreja já se encontra hoje em semelhante
crise. O Vaticano II tentou recuperar quatro séculos de atraso, mas tem-se a
impressão de que a Igreja está fechando lentamente as portas que se abriram
então, e é tentada a voltar para Trento e o Vaticano
I, mais que voltar-se para o Vaticano III.
Recordemos a declaração de João Paulo II tantas vezes repetida:
“Não há alternativa para o Vaticano II”.
– Até quando continuaremos
jogando a política do avestruz e a esconder a cabeça na areia? Até quando
evitaremos olhar as coisas de frente? Até quando seguiremos dando as costas,
encrespando-nos contra toda crítica, em vez de ver ali uma oportunidade de
renovação? Até quando continuaremos postergando ad calendas graecas
uma reforma que se impõe e que foi abandonada durante muito tempo?
– Somente olhando decididamente
para frente e não para trás a Igreja cumprirá sua missão de ser “luz do mundo,
sal da terra e fermento na massa”. Entretanto, o que infelizmente constatamos
hoje é que a Igreja está no final da fila da nossa época, depois de ter sido a
locomotiva durante séculos.
– Repito o que dizia no começo
desta carta: “São menos cinco” – fünf vor zwölf! A História não espera,
sobretudo em nossa época, em que o ritmo se embala e se acelera.
– Qualquer operação comercial
que constata um déficit ou disfunção se reconsidera imediatamente, reúne
especialistas, procura recuperar-se, mobiliza todas as suas energias para
superar a crise.
– Por que a Igreja não faz algo
semelhante? Por que não mobiliza todas as suas forças vivas para um aggiornamento radical? Por quê?
– Por preguiça, desleixo,
orgulho, falta de imaginação, de criativadade, omissão culpável, na esperança
de que o Senhor as resolverá e que a Igreja conheceu outras crises no passado?
– Cristo, no Evangelho, nos
alerta: “Os filhos das trevas são mais espertos que os filhos da luz...”.
Então, o que fazer? A Igreja tem
hoje uma necessidade imperiosa e urgente de uma tripla reforma:
1. Uma reforma teológica
e catequética para repensar a fé e reformulá-la de modo coerente para
os nossos contemporâneos.
Uma fé que já não significa
nada, que não dá sentido à existência, não é mais que um adorno, uma
superestrutura inútil que cai por si mesma. É o caso atual.
2. Uma reforma pastoral
para repensar de cabo a rabo as estruturas herdadas do passado.
3. Uma reforma
espiritual para revitalizar a mística e repensar os sacramentos com
vistas a dar-lhes uma dimensão existencial e articulá-los com a vida.
Teria muito a dizer sobre isto.
A Igreja de hoje é muito formal, muito formalista. Tem-se a impressão de que a
instituição asfixia o carisma e que o que em última instância conta é uma
estabilidade puramente exterior, uma honestidade superficial, certa fachada.
Não corremos o risco de que um dia Jesus nos trate de “sepulcros caiados”?
Para terminar, sugiro a
convocação de um Sínodo geral a nível da Igreja universal, do
qual participarão todos os cristãos – católicos e outros – para examinar com
toda franqueza e clareza os pontos assinalados anteriormente e os que forem
propostos. Este Sínodo, que duraria três anos, terminaria com uma Assembleia
Geral – evitemos o termo “concílio” – que sintetizasse os resultados
desta pesquisa e tirasse daí as conclusões.
Termino, Santo Padre,
pedindo-lhe perdão pela minha franqueza e audácia e solicito a vossa paternal
bênção. Permita-me também dizer-lhe que vivo estes dias em sua companhia,
graças ao seu extraordinário livro Jesus de Nazaré,
que é objeto da minha leitura espiritual e de meditação cotidiana.
Seu afetíssimo no Senhor,
Pe. Henri Boulad, SJ
Produções Pasárgada
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