Husserl e a Fenomenologia
Kaquinda Dias
O grande objetivo
de Husserl com a criação da fenomenologia era o de encontrar um fundamento
absolutamente evidente que pudesse servir de enunciado das ciências positivas (Luijpen,
1973). Na época da criação da fenomenologia, por Husserl, havia uma supervalorização
do mundo objetivo (científico), uma crise das ciências, a qual, inclusive, serviu
de tema de sua última obra "Die Krisis der europäischen Wissenschaften und
die transzendentale Phänomenologie: Eine Einleitung in die phänomenologische Philosophie"
(1936). Mas o que não havia naquela época era a elucidação do objeto de estudo destas
ciências, que fez com que elas alcançassem um campo indefinido de pesquisa e um
grande status, chegando até mesmo a afirmar que o método científico seria capaz
de pesquisar e julgar a própria existência do homem. O que acontecia na época da
crise das ciências pode ser comparado a um físico que é crítico em relação à experiência
científica, mas que não coloca em questão o que é científico, muito menos o que
é uma experiência; ou seja, não questiona o próprio fundamento de sua ciência (Luijpen,
1973). O que começou a haver foi um afastamento do mundo tal como ele aparece ao
sujeito; o que era científico, ou seja, o que era "verdadeiro" seria apenas
o mundo como a ciência o via.
Husserl acreditava que era preciso uma teoria do conhecimento,
uma elucidação do conhecer; era preciso ir à busca dos fundamentos deste conhecimento
a fim de permitir-nos compreender a pretensão do conhecimento objetivo (Kelkel &
Schérer, 1982), que ainda não havia sido esclarecido efetivamente naquela época.
A fenomenologia, assim compreendida, significava um novo método na constituição
da essência do conhecimento (Galeffi, 2000).
É bem verdade que a fenomenologia tem muito em comum com
a filosofia cartesiana, ao menos no que diz respeito ao objetivo de elucidação das
ciências. Ambas buscavam a reforma filosófica a fim de encontrar uma base absolutamente
evidente para as ciências (Husserl, 1929). Aqui cabe destacar um ponto importante
na distinção entre a consciência cartesiana e a consciência husserliana: o ego cartesiano,
com o qual Descartes se encontrou ao final de seu método, era um ego fechado em
si próprio que se constituía enquanto simples ato de pensar. Descartes, portanto,
concebeu o eu do cogito como uma res cogitans, independente, que então descobriria
o mundo exterior a partir de sua própria interioridade (Dartigues, 1992). O ego
cartesiano, portanto, era uma coisa entre outras coisas do mundo (Husserl, 1929).
A superação da filosofia cartesiana, por Husserl, foi marcada pela introdução do
conceito de intencionalidade. Para Husserl, a máxima de Descartes "Penso, logo
sou" é incompleta, uma vez que o pensar inevitavelmente nos remete ao pensado,
ao intencionado: consciência é sempre consciência de algo (Husserl, 1929). A consciência
cartesiana não nos remetia ao objeto, ao cogitatum; era uma consciência voltada
para ela mesma. Daí é que Husserl pôde superar esta questão e esclarecer seu conceito
de consciência, que seria o de um movimento em relação ao mundo, de um projetar-se
no mundo. Este conceito é crucial para entender a relação do sujeito com o mundo,
entender como o sujeito se constitui enquanto abertura ao mundo.
Mas qual era o grande objetivo de Husserl com a busca por
este fundamento, com a busca pelo modo como o mundo e o sujeito se constituem em
uma relação? O objetivo de Husserl era o de "voltar às coisas mesmas",
voltar ao mundo-da-vida (Lebenswelt), ao mundo da experiência. A fenomenologia veio
para denunciar este crescente distanciamento entre o mundo da vida e o mundo da
ciência (Struchiner, 2007). Era preciso resgatar a noção de que o mundo científico
é secundário – ele é produzido a partir da própria compreensão subjetiva dos cientistas.
O real não é o mundo visto pelos olhos das ciências, mas aquilo que eu experiencio,
aquilo que eu vivo (Martini, 1999). A fenomenologia, com estes objetivos, não está
criticando a atividade científica propriamente dita, mas denunciado a idéia de que
o sentido do mundo é dado cientificamente. A ciência tem muito pouco a nos oferecer
no que se refere às questões da humanidade, uma vez que ela deixa de fora as questões
essenciais do homem, as questões que dizem respeito ao seu modo de ser, promovendo,
assim, o distanciamento entre o mundo que eu experiencio e o mundo que me é dado
cientificamente (Husserl, 1997).
Portanto, a verdadeira proposta da fenomenologia é a de
fazermos reaprender a ver o mundo tal como ele nos aparece, tal como ele é. Para
isso, é preciso desenvolver a atitude fenomenológica; é preciso, como diria Heidegger
(2002, p. 65), "deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como
se mostra a partir de si mesmo". A idéia não é de abandonar as descobertas
científicas, mas de redescobrir o mundo sem as vestimentas teórico-científicas (Martini,
1999).
Compreensão implícita do mundo
A fenomenologia
busca, portanto, descontaminar o mundo-da-vida dos resultados científicos, os quais
implantaram uma pré-concepção básica em todos nós: a ideia de que tudo pode ser
explicado cientificamente. Esquecemos que o mundo científico é apenas uma possibilidade,
um simples modo de compreensão do mundo. O problema desta pré-concepção é a de que
ela é um solo comum a muitos indivíduos, o que promove o não-questionamento acerca
deste modo de representar o mundo (Martini, 1999). Husserl, então, irá dizer que
o homem está mergulhado numa tese geral (Generalthesis) do mundo, numa fé ingênua
na realidade do mundo tal como o percebo. Esta é a atitude natural, que está entrelaçada
nos modos de ser dos homens enquanto permanecem como vivências num mundo cientificamente
dado. A atitude natural, portanto, é a crença inquestionável da percepção do mundo
tal como eu o vejo; é a sua compreensão implícita. Ela consiste numa concepção do
mundo do senso comum, que é tanto do cientista como do homem da rua; consiste em
pensar o mundo como algo que está sempre aí, que é algo que me contém, que é algo
entre outras coisas (Dartigues, 1992). Assim como o físico que vive sob uma tese
natural não coloca em questão e não interroga seu objeto de estudo, o homem não
põe seu mundo, tal como ele o vivencia, em questão (Husserl, 1976). "Para o
pensamento na sua atitude natural, não há enigma do conhecimento: há simplesmente
coisas para conhecer" (Kelkel & Schérer, 1982, p. 36). O grande problema
da consciência natural é que ela ignora-se a si mesma, e a sua ingenuidade acerca
da realidade do mundo esconde-lhe a sua própria participação no mundo como doadora
de sentido (Kelkel, & Schérer, 1982). O grande descontentamento de Husserl com
o direcionamento das ciências foi, portanto, o fato de ela promover a desconstituição
do sujeito na relação com o mundo.
Voltando ao objetivo
da fenomenologia, podemos constatar que um de seus esforços se dá na tentativa de
tirar o homem de sua atitude natural, fazê-lo reconhecer como constituinte do mundo
que lhe aparece. Mas qual o método que promove o reconhecimento da consciência como
doadora de sentido do mundo? Qual o método que promoveria a superação da atitude
natural, a fim de conhecer as coisas tais como elas são? É aqui que começaremos
a falar da redução fenomenológica.
A redução fenomenológica e o sentido
do mundo
Husserl irá dizer
que há duas maneiras de combater a influência da fé da atitude natural no mundo:
a primeira consiste em tomar consciência dela através da reflexão e a pôr em questão;
a outra consiste em operar um ato de liberdade, ou seja, operar uma mudança radical
de atitude e suspender, sem negar, a tese geral da existência do mundo (Kelkel &
Schérer, 1982). É da última que tomaremos questão, pois se trata da chamada redução
fenomenológica ou epoché. A epoché, portanto, trata-se do esforço de voltar à experiência
original e ao mundo original despojados da contaminação pelo mundo científico (Luijpen,
1973). Trata-se, portanto, de nos colocar na atitude fenomenológica, de colocar
entre parênteses as teses cogitativas que foram operadas, e ao invés de vivermos
nelas, de as operarmos, operemos atos de reflexão dirigidos a elas, a fim de captá-las
como o ser absoluto que são (Husserl, 1950).
Assim, Husserl
inventou não uma técnica de reflexão, mas o único caminho para uma fenomenologia
transcendental, que permita abrir o acesso a uma dimensão inteiramente nova da experiência
(Kelker & Schérer, 1982). A máxima de Husserl,"regressar
às coisas mesmas", só seria
possível executando a redução fenomenológica. Portanto, ela se torna essencial para
a fenomenologia, e inclui o sujeito-como-cogito como a mais original experiência
do mundo vivido.
É verdade que
Husserl operou a redução fenomenológica de um modo cartesiano, embora tenha feito
com uma reformulação crítica das meditações de Descartes (Husserl, 1929). Mas a
grande superação feita por Husserl foi encontrar a obviedade da existência do mundo;
não a existência em si, mas com seu correlato: o ego em sua mais original experiência.
A obviedade do mundo, portanto, fora colocada em questão: "o ser do mundo
não mais pode constituir para nós um fato óbvio, mas somente um problema de vigência" (Husserl, 1929, p.5). Ao final
de seu método, Husserl encontra-se como ego puro, em sua mais original abertura
ao mundo; encontra o mundo como uma pretensão de ser, como um vir a ser, como algo
desprovido de quaisquer juízos e valores. Assim, após a redução fenomenológica,
o mundo permanece tal como era, conservando seus valores e significações; mas estes
valores e significações são "fenomenalizados", ou seja, separados da atitude
natural que os concebia como sendo "em si" (Dartigues, 1992). O mundo,
agora desprovido de tudo que provia enquanto vivência ingênua para o ego, encontra-se
como simples fenômeno. O ego puro, ao qual Husserl (1929) se encontra ao final de
sua redução fenomenológica, nada mais é que o ego "[pelo qual] o ser deste
mundo e qualquer essência têm para mim o sentido e vigência possível" (p.9).
Assim sendo,
a epoché produz o retorno à consciência, através da qual os objetos aparecem na
sua constituição como simples correlatos da consciência intencional. A consciência,
agora em sua mais original abertura ao mundo, se mostra de tal forma que permite
ser rigorosamente investigada na sua constituição, no modo como ela constitui os
objetos e é constituída por eles, segundo uma relação dialética (Galeffi, 2000).
Ela não é mais uma parte do mundo, mas o lugar de seu desdobramento no campo da
intencionalidade. Isto pressupõe olhar para o mundo não como em si mesmo, mas como
o que ele é para uma consciência, como simples fenômeno (Dartigues, 1992). O sujeito,
agora como vivência em uma atitude fenomenológica, dirige o olhar ao resíduo fenomenológico
da redução, ou seja, à consciência pura, suspendendo o interesse natural dedicado
ao objeto.
É importante
salientar que a redução fenomenológica não põe em dúvida o ser dos objetos, mas
apenas seus atributos, ou seja, tudo o que é absorvido onticamente pela atitude
natural do homem, tudo o que se faz presente como realidade para nossa consciência
enquanto vivência ingênua. A epoché, portanto, não representa um ponto de vista
cético, uma vez que a fenomenologia não nega jamais o "mundo" à maneira
sofista, que põe em dúvida sua existência. É neste sentido que Kelkel e Shérer (1982)
admitem a redução fenomenológica de Husserl como um método menos radical que o de
Descartes, o qual punha em dúvida a própria existência do mundo. A epoché, que se
traduz pela colocação do mundo entre parênteses, simplesmente nos proíbe qualquer
julgamento a respeito do mundo; ponho a ciência fora de ação e não uso de sua validez,
uma vez que nenhuma me dá um fundamento. (Depraz, Varela, & Vermersch, 2006).
A epoché desvela, portanto, o conhecimento do que efetivamente existe ao introduzir
a subjetividade.
Depraz et al.
(2006) concluem que não basta explicitar os passos da redução fenomenológica: é
preciso compreender o que significa viver fenomenologicamente. Isto não significa
que a descrição do método não seja importante, mas o método é apenas um caminho
que desemboca em um fim. Que fim é este?
A possibilidade da Redução fenomenológica
É preciso deixar
claro que a redução não se propõe a ser uma tarefa passível de conclusão; ao contrário,
se trata de um contínuo esforço na busca pela experiência mais verdadeira possível
com o que aparece a mim. Segundo Depraz, et al. (2006), as fases para a redução
fenomenológica são três. A primeira é a fase de suspensão (1), que se caracteriza
pela ruptura com a atitude natural, ou seja, por uma mudança radical no tipo de
atenção que o sujeito presta ao mundo vivido. Esta primeira fase pode se desenrolar
de três maneiras: [1] quando um acontecimento externo é capaz de disparar a atitude
suspensiva, como a morte de outrem ou uma surpresa estética; [2] por conta da mediação
de outrem, quer se trate da ordem para realizar este gesto, quer por desempenhar
o papel de modelo; [3] por conta do exercício individual com ordens que o sujeito
dá a si mesmo, que pressupõem longos treinamentos, aprendizagem, até chegar à estabilização.
Com a atitude suspensiva, é preciso avançar à segunda fase, que consiste em (2)
converter a atenção do exterior ao interior como um ato voluntário, ou seja, consiste
na "apercepção", na mudança na orientação da atividade cognitiva, no desprender-se
do espetáculo do mundo a fim de se retornar ao mundo interior. Um grande obstáculo
que precisa ser superado nesta segunda fase é o fato de nossa atitude cognitiva
estar habitualmente direcionada ao mundo exterior, aos entes intramundanos. Nossa
atenção está continuamente engajada na apreensão de informações provenientes do
mundo, na busca por interesses ligados a nossa vida cotidiana; assim, temos nossa
atenção naturalmente interessada no mundo, e jamais se desvia dele de forma espontânea.
A alternativa
que esta fase propõe é muito inabitual e, portanto, complicada; esta outra direção
para a atenção, desviada do mundo, que se volta para os pensamentos e à apercepção,
raramente aparece para nós como uma possibilidade. O que esta fase propõe, então,
é não somente modificar minha relação existencial com o mundo, mas também converter
meu interesse natural ao objeto na direção ao ato que me permite intencioná-lo.
Já a terceira fase consiste [3] no movimento de passar do ato voluntário, caracterizado
na segunda fase, a um simples acolhimento da experiência, a uma simples escuta.
Em outras palavras, ao invés de ir buscar, é preciso um deixar-vir, deixar-se revelar,
deixar ser. É preciso um relaxamento de toda busca voluntária ao interior, e acolher
de modo receptivo a experiência. Na realidade, este movimento se configura como
um ato que mantém uma tensão entre a atenção dirigida ao mundo e o conteúdo não-preenchido
imediato. Trata-se, dito de outra forma, de esperar o fenômeno sem conhecimento
do conteúdo que irá se revelar para mim. O grande obstáculo deste terceiro passo
é o de atravessar um tempo silencioso, atravessar um tempo vazio, da não-apreensão
dos dados que estão para se apresentar à minha consciência.
É importante
sinalizar que estas três fases não são excludentes, mas funcionam em relação umas
com as outras e em conjunto, e os obstáculos em suas realizações podem ser constatados
pela resistência e dificuldade em operar estas fases; é por isso que se necessitam
estratégias que permitam efetuá-las. Mas mais além da dificuldade da realização
da epoché, precisamos discutir os obstáculos pragmáticos de sua operação. Segundo
Depraz et al. (2006), para alguns indivíduos, operar a epoché é sinônimo de se voltar
ao que não se quer voltar, é correr o risco de entrar em contato com o conteúdo
recalcado. Além disso, esta mudança de direção da atenção supõe uma diminuição no
meu controle social, principalmente se eu estiver em contato com o outro. Mas talvez
a maior dificuldade resida no fato da epoché implicar a mudança de atitude com relação
ao mundo, uma mudança difícil por si só, uma mudança que talvez implicasse na reestruturação
interna do próprio sujeito.
Na prática da
psicoterapia, a operação da epoché se trata de o profissional abrir sua presença
ao outro, lhe dar sua atenção, mas estar ao mesmo tempo com sua consciência voltada
ao ato de conceber a fala de seu paciente, ou seja, estar ao mesmo tempo atento
para os seus comentários interiores, colocando em questão a cada instante o que
aparece em sua consciência. Isso, diria a psicanálise, é a atenção flutuante, é
a observação aberta sem a procura da apreensão.
Enfim, a redução
fenomenológica se constitui num esforço de voltar minha atenção ao interior, não
para buscar alguma coisa, mas para apreender o que possa se manifestar, o que possa
aparecer a mim, (Depraz, et al. 2006), a fim de não deixar que esta manifestação,
deixada de lado pela minha consciência na atitude natural, julgue e apreenda o mundo
sem a participação efetiva de minha consciência.