Pasárgada

…Cheguei no momento da criação do mundo e resolvi não existir. Cheguei ao zero-espaço, ao nada-tempo, ao eu coincidente com vós-tudo, e conclui: No meio do nevoeiro é preciso conduzir o barco devagar.


Serei o que fui, logo que deixe de ser o que sou; porque quando fui forçado a ser o que sou, foi porque era o que fui.

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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Husserl e a Fenomenologia
Kaquinda Dias
O grande objetivo de Husserl com a criação da fenomenologia era o de encontrar um fundamento absolutamente evidente que pudesse servir de enunciado das ciências positivas (Luijpen, 1973). Na época da criação da fenomenologia, por Husserl, havia uma supervalorização do mundo objetivo (científico), uma crise das ciências, a qual, inclusive, serviu de tema de sua última obra "Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie: Eine Einleitung in die phänomenologische Philosophie" (1936). Mas o que não havia naquela época era a elucidação do objeto de estudo destas ciências, que fez com que elas alcançassem um campo indefinido de pesquisa e um grande status, chegando até mesmo a afirmar que o método científico seria capaz de pesquisar e julgar a própria existência do homem. O que acontecia na época da crise das ciências pode ser comparado a um físico que é crítico em relação à experiência científica, mas que não coloca em questão o que é científico, muito menos o que é uma experiência; ou seja, não questiona o próprio fundamento de sua ciência (Luijpen, 1973). O que começou a haver foi um afastamento do mundo tal como ele aparece ao sujeito; o que era científico, ou seja, o que era "verdadeiro" seria apenas o mundo como a ciência o via.
Husserl acreditava que era preciso uma teoria do conhecimento, uma elucidação do conhecer; era preciso ir à busca dos fundamentos deste conhecimento a fim de permitir-nos compreender a pretensão do conhecimento objetivo (Kelkel & Schérer, 1982), que ainda não havia sido esclarecido efetivamente naquela época. A fenomenologia, assim compreendida, significava um novo método na constituição da essência do conhecimento (Galeffi, 2000).
É bem verdade que a fenomenologia tem muito em comum com a filosofia cartesiana, ao menos no que diz respeito ao objetivo de elucidação das ciências. Ambas buscavam a reforma filosófica a fim de encontrar uma base absolutamente evidente para as ciências (Husserl, 1929). Aqui cabe destacar um ponto importante na distinção entre a consciência cartesiana e a consciência husserliana: o ego cartesiano, com o qual Descartes se encontrou ao final de seu método, era um ego fechado em si próprio que se constituía enquanto simples ato de pensar. Descartes, portanto, concebeu o eu do cogito como uma res cogitans, independente, que então descobriria o mundo exterior a partir de sua própria interioridade (Dartigues, 1992). O ego cartesiano, portanto, era uma coisa entre outras coisas do mundo (Husserl, 1929). A superação da filosofia cartesiana, por Husserl, foi marcada pela introdução do conceito de intencionalidade. Para Husserl, a máxima de Descartes "Penso, logo sou" é incompleta, uma vez que o pensar inevitavelmente nos remete ao pensado, ao intencionado: consciência é sempre consciência de algo (Husserl, 1929). A consciência cartesiana não nos remetia ao objeto, ao cogitatum; era uma consciência voltada para ela mesma. Daí é que Husserl pôde superar esta questão e esclarecer seu conceito de consciência, que seria o de um movimento em relação ao mundo, de um projetar-se no mundo. Este conceito é crucial para entender a relação do sujeito com o mundo, entender como o sujeito se constitui enquanto abertura ao mundo.
Mas qual era o grande objetivo de Husserl com a busca por este fundamento, com a busca pelo modo como o mundo e o sujeito se constituem em uma relação? O objetivo de Husserl era o de "voltar às coisas mesmas", voltar ao mundo-da-vida (Lebenswelt), ao mundo da experiência. A fenomenologia veio para denunciar este crescente distanciamento entre o mundo da vida e o mundo da ciência (Struchiner, 2007). Era preciso resgatar a noção de que o mundo científico é secundário – ele é produzido a partir da própria compreensão subjetiva dos cientistas. O real não é o mundo visto pelos olhos das ciências, mas aquilo que eu experiencio, aquilo que eu vivo (Martini, 1999). A fenomenologia, com estes objetivos, não está criticando a atividade científica propriamente dita, mas denunciado a idéia de que o sentido do mundo é dado cientificamente. A ciência tem muito pouco a nos oferecer no que se refere às questões da humanidade, uma vez que ela deixa de fora as questões essenciais do homem, as questões que dizem respeito ao seu modo de ser, promovendo, assim, o distanciamento entre o mundo que eu experiencio e o mundo que me é dado cientificamente (Husserl, 1997).
Portanto, a verdadeira proposta da fenomenologia é a de fazermos reaprender a ver o mundo tal como ele nos aparece, tal como ele é. Para isso, é preciso desenvolver a atitude fenomenológica; é preciso, como diria Heidegger (2002, p. 65), "deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo". A idéia não é de abandonar as descobertas científicas, mas de redescobrir o mundo sem as vestimentas teórico-científicas (Martini, 1999).

Compreensão implícita do mundo
A fenomenologia busca, portanto, descontaminar o mundo-da-vida dos resultados científicos, os quais implantaram uma pré-concepção básica em todos nós: a ideia de que tudo pode ser explicado cientificamente. Esquecemos que o mundo científico é apenas uma possibilidade, um simples modo de compreensão do mundo. O problema desta pré-concepção é a de que ela é um solo comum a muitos indivíduos, o que promove o não-questionamento acerca deste modo de representar o mundo (Martini, 1999). Husserl, então, irá dizer que o homem está mergulhado numa tese geral (Generalthesis) do mundo, numa fé ingênua na realidade do mundo tal como o percebo. Esta é a atitude natural, que está entrelaçada nos modos de ser dos homens enquanto permanecem como vivências num mundo cientificamente dado. A atitude natural, portanto, é a crença inquestionável da percepção do mundo tal como eu o vejo; é a sua compreensão implícita. Ela consiste numa concepção do mundo do senso comum, que é tanto do cientista como do homem da rua; consiste em pensar o mundo como algo que está sempre aí, que é algo que me contém, que é algo entre outras coisas (Dartigues, 1992). Assim como o físico que vive sob uma tese natural não coloca em questão e não interroga seu objeto de estudo, o homem não põe seu mundo, tal como ele o vivencia, em questão (Husserl, 1976). "Para o pensamento na sua atitude natural, não há enigma do conhecimento: há simplesmente coisas para conhecer" (Kelkel & Schérer, 1982, p. 36). O grande problema da consciência natural é que ela ignora-se a si mesma, e a sua ingenuidade acerca da realidade do mundo esconde-lhe a sua própria participação no mundo como doadora de sentido (Kelkel, & Schérer, 1982). O grande descontentamento de Husserl com o direcionamento das ciências foi, portanto, o fato de ela promover a desconstituição do sujeito na relação com o mundo.
Voltando ao objetivo da fenomenologia, podemos constatar que um de seus esforços se dá na tentativa de tirar o homem de sua atitude natural, fazê-lo reconhecer como constituinte do mundo que lhe aparece. Mas qual o método que promove o reconhecimento da consciência como doadora de sentido do mundo? Qual o método que promoveria a superação da atitude natural, a fim de conhecer as coisas tais como elas são? É aqui que começaremos a falar da redução fenomenológica.
A redução fenomenológica e o sentido do mundo
Husserl irá dizer que há duas maneiras de combater a influência da fé da atitude natural no mundo: a primeira consiste em tomar consciência dela através da reflexão e a pôr em questão; a outra consiste em operar um ato de liberdade, ou seja, operar uma mudança radical de atitude e suspender, sem negar, a tese geral da existência do mundo (Kelkel & Schérer, 1982). É da última que tomaremos questão, pois se trata da chamada redução fenomenológica ou epoché. A epoché, portanto, trata-se do esforço de voltar à experiência original e ao mundo original despojados da contaminação pelo mundo científico (Luijpen, 1973). Trata-se, portanto, de nos colocar na atitude fenomenológica, de colocar entre parênteses as teses cogitativas que foram operadas, e ao invés de vivermos nelas, de as operarmos, operemos atos de reflexão dirigidos a elas, a fim de captá-las como o ser absoluto que são (Husserl, 1950).
Assim, Husserl inventou não uma técnica de reflexão, mas o único caminho para uma fenomenologia transcendental, que permita abrir o acesso a uma dimensão inteiramente nova da experiência (Kelker & Schérer, 1982). A máxima de Husserl,"regressar às coisas mesmas", só seria possível executando a redução fenomenológica. Portanto, ela se torna essencial para a fenomenologia, e inclui o sujeito-como-cogito como a mais original experiência do mundo vivido.
É verdade que Husserl operou a redução fenomenológica de um modo cartesiano, embora tenha feito com uma reformulação crítica das meditações de Descartes (Husserl, 1929). Mas a grande superação feita por Husserl foi encontrar a obviedade da existência do mundo; não a existência em si, mas com seu correlato: o ego em sua mais original experiência. A obviedade do mundo, portanto, fora colocada em questão: "o ser do mundo não mais pode constituir para nós um fato óbvio, mas somente um problema de vigência" (Husserl, 1929, p.5). Ao final de seu método, Husserl encontra-se como ego puro, em sua mais original abertura ao mundo; encontra o mundo como uma pretensão de ser, como um vir a ser, como algo desprovido de quaisquer juízos e valores. Assim, após a redução fenomenológica, o mundo permanece tal como era, conservando seus valores e significações; mas estes valores e significações são "fenomenalizados", ou seja, separados da atitude natural que os concebia como sendo "em si" (Dartigues, 1992). O mundo, agora desprovido de tudo que provia enquanto vivência ingênua para o ego, encontra-se como simples fenômeno. O ego puro, ao qual Husserl (1929) se encontra ao final de sua redução fenomenológica, nada mais é que o ego "[pelo qual] o ser deste mundo e qualquer essência têm para mim o sentido e vigência possível" (p.9).
Assim sendo, a epoché produz o retorno à consciência, através da qual os objetos aparecem na sua constituição como simples correlatos da consciência intencional. A consciência, agora em sua mais original abertura ao mundo, se mostra de tal forma que permite ser rigorosamente investigada na sua constituição, no modo como ela constitui os objetos e é constituída por eles, segundo uma relação dialética (Galeffi, 2000). Ela não é mais uma parte do mundo, mas o lugar de seu desdobramento no campo da intencionalidade. Isto pressupõe olhar para o mundo não como em si mesmo, mas como o que ele é para uma consciência, como simples fenômeno (Dartigues, 1992). O sujeito, agora como vivência em uma atitude fenomenológica, dirige o olhar ao resíduo fenomenológico da redução, ou seja, à consciência pura, suspendendo o interesse natural dedicado ao objeto.
É importante salientar que a redução fenomenológica não põe em dúvida o ser dos objetos, mas apenas seus atributos, ou seja, tudo o que é absorvido onticamente pela atitude natural do homem, tudo o que se faz presente como realidade para nossa consciência enquanto vivência ingênua. A epoché, portanto, não representa um ponto de vista cético, uma vez que a fenomenologia não nega jamais o "mundo" à maneira sofista, que põe em dúvida sua existência. É neste sentido que Kelkel e Shérer (1982) admitem a redução fenomenológica de Husserl como um método menos radical que o de Descartes, o qual punha em dúvida a própria existência do mundo. A epoché, que se traduz pela colocação do mundo entre parênteses, simplesmente nos proíbe qualquer julgamento a respeito do mundo; ponho a ciência fora de ação e não uso de sua validez, uma vez que nenhuma me dá um fundamento. (Depraz, Varela, & Vermersch, 2006). A epoché desvela, portanto, o conhecimento do que efetivamente existe ao introduzir a subjetividade.
Depraz et al. (2006) concluem que não basta explicitar os passos da redução fenomenológica: é preciso compreender o que significa viver fenomenologicamente. Isto não significa que a descrição do método não seja importante, mas o método é apenas um caminho que desemboca em um fim. Que fim é este?
A possibilidade da Redução fenomenológica
É preciso deixar claro que a redução não se propõe a ser uma tarefa passível de conclusão; ao contrário, se trata de um contínuo esforço na busca pela experiência mais verdadeira possível com o que aparece a mim. Segundo Depraz, et al. (2006), as fases para a redução fenomenológica são três. A primeira é a fase de suspensão (1), que se caracteriza pela ruptura com a atitude natural, ou seja, por uma mudança radical no tipo de atenção que o sujeito presta ao mundo vivido. Esta primeira fase pode se desenrolar de três maneiras: [1] quando um acontecimento externo é capaz de disparar a atitude suspensiva, como a morte de outrem ou uma surpresa estética; [2] por conta da mediação de outrem, quer se trate da ordem para realizar este gesto, quer por desempenhar o papel de modelo; [3] por conta do exercício individual com ordens que o sujeito dá a si mesmo, que pressupõem longos treinamentos, aprendizagem, até chegar à estabilização. Com a atitude suspensiva, é preciso avançar à segunda fase, que consiste em (2) converter a atenção do exterior ao interior como um ato voluntário, ou seja, consiste na "apercepção", na mudança na orientação da atividade cognitiva, no desprender-se do espetáculo do mundo a fim de se retornar ao mundo interior. Um grande obstáculo que precisa ser superado nesta segunda fase é o fato de nossa atitude cognitiva estar habitualmente direcionada ao mundo exterior, aos entes intramundanos. Nossa atenção está continuamente engajada na apreensão de informações provenientes do mundo, na busca por interesses ligados a nossa vida cotidiana; assim, temos nossa atenção naturalmente interessada no mundo, e jamais se desvia dele de forma espontânea.
A alternativa que esta fase propõe é muito inabitual e, portanto, complicada; esta outra direção para a atenção, desviada do mundo, que se volta para os pensamentos e à apercepção, raramente aparece para nós como uma possibilidade. O que esta fase propõe, então, é não somente modificar minha relação existencial com o mundo, mas também converter meu interesse natural ao objeto na direção ao ato que me permite intencioná-lo. Já a terceira fase consiste [3] no movimento de passar do ato voluntário, caracterizado na segunda fase, a um simples acolhimento da experiência, a uma simples escuta. Em outras palavras, ao invés de ir buscar, é preciso um deixar-vir, deixar-se revelar, deixar ser. É preciso um relaxamento de toda busca voluntária ao interior, e acolher de modo receptivo a experiência. Na realidade, este movimento se configura como um ato que mantém uma tensão entre a atenção dirigida ao mundo e o conteúdo não-preenchido imediato. Trata-se, dito de outra forma, de esperar o fenômeno sem conhecimento do conteúdo que irá se revelar para mim. O grande obstáculo deste terceiro passo é o de atravessar um tempo silencioso, atravessar um tempo vazio, da não-apreensão dos dados que estão para se apresentar à minha consciência.
É importante sinalizar que estas três fases não são excludentes, mas funcionam em relação umas com as outras e em conjunto, e os obstáculos em suas realizações podem ser constatados pela resistência e dificuldade em operar estas fases; é por isso que se necessitam estratégias que permitam efetuá-las. Mas mais além da dificuldade da realização da epoché, precisamos discutir os obstáculos pragmáticos de sua operação. Segundo Depraz et al. (2006), para alguns indivíduos, operar a epoché é sinônimo de se voltar ao que não se quer voltar, é correr o risco de entrar em contato com o conteúdo recalcado. Além disso, esta mudança de direção da atenção supõe uma diminuição no meu controle social, principalmente se eu estiver em contato com o outro. Mas talvez a maior dificuldade resida no fato da epoché implicar a mudança de atitude com relação ao mundo, uma mudança difícil por si só, uma mudança que talvez implicasse na reestruturação interna do próprio sujeito.
Na prática da psicoterapia, a operação da epoché se trata de o profissional abrir sua presença ao outro, lhe dar sua atenção, mas estar ao mesmo tempo com sua consciência voltada ao ato de conceber a fala de seu paciente, ou seja, estar ao mesmo tempo atento para os seus comentários interiores, colocando em questão a cada instante o que aparece em sua consciência. Isso, diria a psicanálise, é a atenção flutuante, é a observação aberta sem a procura da apreensão.
Enfim, a redução fenomenológica se constitui num esforço de voltar minha atenção ao interior, não para buscar alguma coisa, mas para apreender o que possa se manifestar, o que possa aparecer a mim, (Depraz, et al. 2006), a fim de não deixar que esta manifestação, deixada de lado pela minha consciência na atitude natural, julgue e apreenda o mundo sem a participação efetiva de minha consciência.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A manifestação do desejo e o sentimento de culpa na interface Descartes e Freud
Kaquinda Dias
Em As Paixões da Alma (1987), o pensador cartesiano, apresenta seis paixões primitivas - admiração, ódio, amor, tristeza, alegria e desejo - que originarão as paixões secundárias. O norte desta pesquisa consistirá na investigação específica da paixão desejo. Tal paixão se apresenta como:
(...) Uma agitação da alma provocada pelos espíritos que a tornam propensa a querer para o futuro as coisas que se lhe afiguram vantajosas, desse modo não se deseja somente a presença do bem ausente, mas também, a conservação do bem presente (...) e, além disso, a ausência do mal (DESCARTES, 1987, p. 156).
A manifestação do desejo coloca o homem em processo de duplo desenvolvimento. Quando a alma é acometida por esta paixão, torna o corpo mais bem disposto e, concomitantemente, isso torna os desejos da alma mais fortes e mais ardentes (DESCARTES, 1987, p. 170).
Destaca-se que a paixão desejo agita o coração com muito mais intensidade do que as outras paixões, e abastece o cérebro com mais espíritos, os quais, ao se dirigirem a partir daí para os músculos, fazem com que os sentidos se tornem mais aguçados e todas as partes do corpo adquiram mais mobilidade (DESCARTES, 1987, p. 164). Por se caracterizar como um sentimento que atinge o corpo tão fortemente pode-se compreender o desejo como uma manifestação imprescindível ao desenvolvimento das outras paixões e suas ações decorrentes.
De acordo com Descartes, o desejo possui uma característica peculiar se comparado às demais paixões. Enquanto essas geralmente se apresentam a partir de seus opostos - amor e ódio, tristeza e alegria, o desejo não se manifesta por antítese, mas como uma paixão que tende ao bem e se afasta do mal. Entretanto, existem algumas paixões que podem acompanhar o desejo e encaminhá-lo em direção ao que é bom ou, ainda, manifestar-se em sua forma negativa, como desejo enfraquecido. Ao tender para o bem, o desejo comumente surge em conjunto com o amor, a esperança e a alegria; ao afastar-se do bem e se enfraquecer, o desejo vacila e associa-se ao temor, desespero e langor. Neste sentido, o filósofo assinala que não há paixão contrária ao desejo; o que muda e diferencia suas manifestações são seus objetos e associações a outras paixões.
Contudo, quando a possibilidade de realização do desejo é pequena manifesta-se o temor e o medo. O temor pode aparecer também como ciúme e advém das coisas que são difíceis de serem alcançadas. O temor pode transformar o desejo em desespero. (...) Porém, quando consideramos se há (...) pouca probabilidade de conseguir o que se deseja, (...) aquilo que se nos afigura existir pouco estimula o temor, de que o ciúme constitui uma espécie (DESCARTES, 1987: 144).
Uma associação do desejo a ser destaca é sua relação com o amor. Quando há possibilidade de adquirir algo que se encontra distante, a paixão amor se concentra na elaboração da idéia do objeto amado. O amor junto do desejo pode, ainda, inibir o desenvolvimento do sujeito. O desejo, que tem como característica essencial impulsionar o corpo pode ser sublimado pelo efeito do amor e originar o surgimento do langor.
“(...) O amor ocupa de tal forma a alma em considerar o objeto amado, que emprega todos os espíritos que se encontrarem no cérebro em representar-lhe a imagem e detém todos os movimentos das glândulas que não sirvam para tal efeito. E cumpri notar, no tocante ao desejo, que a propriedade que lhe atribuí de tornar o corpo mais móvel só lhe convém quando se imagina que o objeto desejado é tal que se pode desde esse momento fazer algo que sirva para adquiri-lo; pois se, ao contrário, se imagina que é impossível naquele momento fazer algo de útil para isso, toda a agitação do desejo permanece no cérebro, sem passar de modo algum aos nervos, e sendo aí inteiramente empregada em fortalecer a idéia do objeto amado, deixa o resto do corpo languescente”. (DESCARTES, 1987 [1649], p. 271)
Para Descartes, o langor se exprime como uma tendência do sujeito de ficar sem realizar movimento. A causa do langor, embora possa derivar de outras paixões, como ódio, tristeza ou alegria, na maioria das vezes, advém da união do amor ao desejo, enfraquecendo-o e tornando o sujeito inerte.
Sempre que a paixão desejo vacila, a capacidade de desenvolver atividades é diminuída ou, até mesmo sublimada se, por exemplo, o enfraquecimento do desejo culminar em langor. Nesse momento, é comum a ocorrência do sentimento de culpa, especialmente quando a atenuação do desejo provém de sua relação com o medo, que segundo Freud é a principal paixão que faz incidir a culpa.
Embora Descartes não tenha abordado especificamente a questão da culpa, as sensações de desejo, de satisfação, de remorso e de arrependimento têm direta relação com esse sentimento. O desejo uma vez realizado gera momentaneamente satisfação. Essa também pode se manifestar por meio da realização de um bem. Porém, a busca pela realização do desejo pode gerar o remorso se houver dúvida quanto à sua satisfação. Assim, a alma faz questionamentos na tentativa de identificar a natureza do desejo e sua consequente satisfação. Devido a tal dúvida ou a falta de reconhecimento do desejo é comum o aparecimento do remorso. Quando a alma se convence que algum mal foi realizado surge o arrependimento. Se o remorso pode ou não resultar em culpa, o arrependimento, por sua vez, é o reconhecimento deste sentimento. Até as paixões mais nobres são passíveis de culpa, pois um ato benéfico em prol do próprio sujeito pode resultar em dano para outro. Por conseguinte, surge a culpa como uma espécie de tristeza resultante da satisfação de um desejo que se configurou como uma ação má.
Neste sentido, é possível perceber como as considerações acerca do desejo auxiliam na compreensão do sentimento de culpa. O desejo compreendido como uma vontade de adquirir um bem que ainda não se possui ou evitar um mal que julga possível de sobrevir se vincula ao futuro no sentido de orientar para sua satisfação, ainda que momentânea. Freud, ao desenvolver a questão do desejo, também o relaciona com a satisfação; neste sentido o desejo não é uma simples necessidade biológica. Assim, o desejo, além do aspeto físico abre caminho para manifestação das pulsões, já que auxilia na ligação entre psíquico e somático.
Se para Descartes são as paixões - percepções inevitáveis - que fazem a vinculação entre corpo e alma, para Freud, é a pulsão aquilo que faz fronteira entre o psíquico e o somático (FREUD, 1972: 171). A pulsão se manifesta como uma constante fonte de excitação do organismo, da qual não se pode fugir. Dito de outro modo, o corpo faz o psíquico trabalhar e esse suplemento se inscreve como pulsão. Essa proposição vem do fato de ser impossível fugir da pulsão (MURTA, 2009:13).
Nota-se que, assim como não é possível escapar da pulsão, também não é possível satisfazê-la e extingui-la totalmente. Sempre se manifestam novas pulsões visto que a satisfação obtida é sempre menor que a satisfação desejada. O excedente é fator de impulsão, porque também é ele que gera a falta que, por sua vez, revigora a exigência da satisfação (MURTA, 2009: 15) e esse movimento mantém o desejo constante. Pois, mesmo que uma pulsão seja saciada, a satisfação exigida será sempre maior que a alcançada, fazendo com que o desejo se revele novamente.
Para evitar os percalços da constante busca por satisfação e felicidade, Freud destaca que o aparelho psíquico trabalha no sentido de tender ao equilíbrio. Essa tendência e a produção daí decorrente são expressões do princípio do prazer e do trabalho conjunto das pulsões de vida e das pulsões de morte (MURTA, 2009:15). As pulsões de morte pertencem/possuem exigência de satisfação total que culmina em destruição; destarte, as pulsões de vida e possibilitam apenas satisfação parcial. Deve-se destacar que as pulsões só podem ser compreendidas enquanto correlatas. Para elucidar a questão da satisfação e da felicidade destaca-se a obra freudiana Mal Estar na Civilização (1996).
Freud afirma que o ego e o mundo externo ainda não são diferenciados pelo recém-nascido. Com o passar do tempo, o bebê começa a perceber que enquanto algumas fontes de excitação ligadas ao seu corpo emanam prazer a qualquer instante, outras fontes de prazer se distanciam e só re-aparecem após o choro. Um fator que auxilia na diferenciação do ego com exterior são as infinitas sensações de sofrimento e desprazer. Surge, então, uma tendência a isolar do ego tudo o que pode tornar-se fonte de desprazer, a lançá-lo para fora e criar um puro ego em busca de prazer, que sofre o confronto de um ‘exterior’ estranho e ameaçador (FREUD, 1996: 76). Assim, por meio das restrições e pelos desprazeres oriundos da experiência é possível distinguir entre o que pertence ao ego - aspeto interno do homem - e o que decorre do mundo empírico.
Na relação ego e mundo exterior, a manifestação do sentimento de felicidade é sempre limitada pela constituição humana, já a infelicidade é a experiência mais habitual. Ou seja, a felicidade assim como a pulsão, ou o desejo, nunca é totalmente satisfeita. A compreensão de felicidade em Freud se traduz sob dois aspetos, a saber: evitar o sofrimento e ter experiências de prazer. O que pedem eles [os homens] da vida e o que desejam nela realizar? A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se por obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer (FREUD, 1996: 84). A própria vida seria regida por essa constante busca de satisfação, ou seja, pelo princípio do prazer, o qual domina o funcionamento do aparelho psíquico de qualquer homem, desde o início de sua vida. A felicidade, compreendida como a satisfação das necessidades represadas pelo homem, é sempre representada por um prazer episódico que, se prolongado, se transforma em fonte de prazer muito leve.
Neste sentido, é possível observar a relação entre a felicidade, a busca pelo prazer e o afastamento do sofrimento, com o desejo cartesiano. Todos os primeiros desejos (...) consistiram em receber as coisas que lhe eram vantajosas e rechaçar as que lhe eram prejudiciais (DESCARTES, 1987:170). Deste modo, o desejo impulsiona todo o corpo para o afastamento, mesmo que momentâneo, do mal e para a aproximação do bem.
Em contraste ao princípio do prazer, o princípio de realidade faz o sujeito perceber as exigências do mundo externo. Neste sentido, a satisfação alcançada é sempre menor que a desejada, ou seja, nossas possibilidades de felicidade são sempre restringidas por nossa constituição; e o sentimento de infelicidade é sempre mais fácil de experimentar (...) (MURTA, 2009:17). A momentânea sensação de felicidade que o sujeito experimenta manifesta-se como alívio diante do desprazer causado por intensos sofrimentos. O agravamento deste quadro leva o homem a diminuir seus desejos relacionados à felicidade e ao prazer. De tal modo, o princípio do prazer se transforma em princípio de realidade, que leva o homem a crer que é feliz pelo simples fato de ter afastado o sofrimento e a infelicidade. Portanto, o intento em evitar a dor coloca o princípio do prazer em segundo plano.
Em Mal Estar na Civilização (1996), se encontram três possíveis fontes de sofrimento humano: o poder superior das forças naturais, que podem voltar-se contra nós com forças esmagadoras e impiedosas (FREUD:85); a fragilidade e a decadência de nossos próprios corpos; e, por fim, o sofrimento que o autor reconhece como mais penoso: a dificuldade dos homens se adequarem às regras que buscam ajustar os relacionamentos com os seus, seja, na família, no Estado ou na sociedade. Para evitar o desprazer advindo dos relacionamentos sociais, o psicanalista destaca duas possibilidades: ou o sujeito se afasta da vida em comunidade e experimenta, em certa medida, a felicidade da quietude, ou se rende às condições impostas pela vida em comunidade, negando seus instintos para o bem de todos.
Para o afastamento do sofrimento, Freud (1996) destaca que o homem busca satisfações substitutivas, tais como a religião e o amor, que se contrastam com o princípio da realidade e diminuem a desgraça do indivíduo frente ao mundo exterior. (...) Cada um de nós se comporta, sob determinado aspeto, como um paranoico, corrige algum aspeto do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade (89). Outro caminho para fuga do mundo externo é via substâncias tóxicas que tornam o homem insensível à realidade circundante.
A ocorrência da frustração diante da sociedade sobrevém dos sacrifícios dos instintos que todos os humanos impõem a si mesmo para tentar viver em comunidade. Afinal, o homem possui consideráveis quotas de agressividade e o aparecimento destas ameaçaria a sociedade a se desintegrar. Neste sentido, a civilização encerra seus esforços para conter a agressividade do homem, distanciando-o de suas pulsões e de seus desejos.
O autor afirma que o sentimento de culpa associa-se a renúncia às satisfações instintivas e se origina do medo. Ao se reportar a Descartes (1987), pode-se compreender o medo como um excesso de covardia, de assombro e de receio, que é sempre vicioso (...) (213). Para Freud, a culpa pode provir do medo da autoridade. Outra origem da culpa advém do medo do superego; neste caso, além da renúncia às satisfações instintivas, exige punição, pois (...) a continuação dos desejos proibidos não pode ser escondida do superego (FREUD, 1996: 95).
Na ocorrência do sentimento de culpa, proveniente do medo de autoridade, há renúncia à própria satisfação para que não ocorra perda do amor da autoridade. Deste modo, ao efetuar a renúncia (...) ficava-se, por assim dizer, quite com a autoridade e nenhum sentimento de culpa permanecia (FREUD, 1996: 126). O amor se apresenta, neste sentido, como uma busca pela felicidade a partir do relacionamento emocional com objetos do mundo externo, que podem ser compreendidos a partir da figura da autoridade.
De tal modo, a obtenção da felicidade advém da busca de toda satisfação em amar e ser amado (FREUD, 1996:89). A manifestação mais comum do amor se apresenta como o amor sexual, capaz de proporcionar intensas experiências de prazer e fornecer ao homem um modelo para busca da felicidade. No entanto, é comum ao sujeito experimentar o sofrimento enquanto ama, bem como, sentir-se desamparado e infeliz quando perde o objeto amado e o seu amor. Para evitar tais sofrimentos recorre à renúncia das satisfações instintivas e evita-se a perda do amor e o sentimento de culpa.
Além da renúncia às satisfações instintivas devido ao medo da autoridade, ao se considerar os esforços que a civilização emprega para não se destruir, destaca-se uma motivação interna para ocorrência da culpa, o superego. Este pode ser compreendido como uma instância psíquica que tem por função domar as pulsões agressivas dos homens. Neste sentido, o superego seria constituído a partir do sentimento de culpa, ou seja, pelo ônus de nossos avanços enquanto civilização a partir da negação de nossos impulsos e pelo afastamento da felicidade. Para melhor compreensão do aspeto interno da culpa, Freud esclarece:
O superego é um agente que foi por nós inferido e a consciência constitui uma função que, entre outras, atribuímos a esse agente. A função consiste em manter a vigilância sobre as ações e as intenções do ego e julgá-las, exercendo sua censura. O sentimento de culpa, a severidade do superego, é, portanto, o mesmo que a severidade da consciência. É a perceção de que o ego tem de estar sendo vigiado - avaliação da tensão entre os seus próprios esforços e as exigências do superego. O medo desse agente crítico (medo que está no fundo de todo relacionamento), a necessidade de punição, constitui uma manifestação instintiva por parte do ego (...) (FREUD, 1996:128).

A renúncia instintiva, efetuada no primeiro caso, não possui mais efeito. Deste modo, a infelicidade gerada pelo sentimento de culpa não possui motivador externo (castigo da autoridade ou perda do amor), a infelicidade interna motivada pelo superego pode tornar-se permanente com o sentimento de culpa.
Destaca-se que a educação e a cultura são fatores externos fundamentais na formação do superego. O superego cultural, fruto dos costumes de uma sociedade, tem como exigência a ética. Tanto o superego individual, quanto o cultural formam uma consciência moral, ou seja, possuem o mesmo intuito de conter os instintos para a não dissolução da civilização. O sentimento de culpa pode acarretar tanto um ato violento concretizado quanto um ato violento pretendido.
Em conclusão, o sentimento de culpa deriva da ambivalência do sentimento: ou agir agressivamente ou abster-se da ação que, indiferente da intenção, resulta em culpa. Outra motivação deste sentimento será a constante luta entre Eros e o instinto de destruição. Neste sentido, a possibilidade da infelicidade externa, representada pela perda de amor e castigo da autoridade externa é substituída por uma permanente infelicidade imposta pelo sentimento de culpa. Assim, ao conter os instintos o sentimento de culpa cumpre sua finalidade e mantém a integridade da civilização.

Referências Bibliográficas
1 - Descartes, R. As Paixões da Alma. Tradução de Pascale Darcy. São Paulo: Martins Fontes. 1987 [1649].
2 - Freud, Sigmund, Mal estar na civilização. Obras completas, Rio de Janeiro: Imago1996 [1929] v. X.
3 - Murta, C. Humanização, vida e morte. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação à Distância, 2009.