KANT[1]
E OS PARALOGISMOS[2] DA RAZÃO PURA
Kaquinda
Dias
Introdução
Kant: um revolucionário ou um filósofo tradicional?
O tema
fundamental do kantismo, a chamada ideia crítica, aparece em 1781, com a
Crítica da Razão Pura. Essa obra que traz em seu bojo a principal temática da
filosofia do conhecimento kantiana tem como ideia central a rejeição da
metafísica tradicional, a metafísica de Wolff e Baumgartem, de Descartes e
Leibniz. O que conduziu Kant à ideia crítica não foi, entretanto, a rejeição
das conclusões metafísicas, mas sim, a consciência da incerteza dessas
conclusões e da fraqueza dos argumentos em que repousavam.
A
leitura de Hume, segundo Kant, foi o que o acordou de seu “sono dogmático” e o
impulsionou a repensar a metafísica. Com efeito, o empirismo céptico de Hume e,
em particular, a sua crítica da noção de causalidade, tornava incertas as
posições do racionalismo dogmático. Hume provara “de maneira irrefutável”,
segundo Kant, que “a razão é incapaz de pensar a priori, e por meio de
conceitos, uma relação necessária, tal como o é a conexão entre causa e efeito”
(Prolegômenos, Introdução). Segundo Hume, somente a experiência poderia ter
engendrado a noção de causa: é por estarmos habituados a ver um fenómeno Y
seguir de um fenómeno X que esperamos Y quando X é dado, e traduzimos esta
expectação subjectiva dizendo que X é a causa de Y. A partir de onde Hume
concluíra que a razão não possui a faculdade de pensar as relações causais e de
modo geral que “ todas as suas pretensas noções a priori são meras experiências
comuns falsamente rotuladas, o que equivale a afirmar que não há, nem pode
haver, qualquer espécie de metafísica” (Prolegómenos).
Assim,
pela análise das noções a priori do espírito, ou das chamadas ideias inatas, é que
o racionalismo de Descartes, de Leibniz e de Wolff pretendia atingir verdades
absolutas sobre os conceitos de Deus, alma e mundo e constituir uma metafísica.
A crítica de Hume, contudo, persuadiu Kant de que era necessário abandonar “o
velho dogmatismo carcomido”(Crítica da Razão Pura, A X). Contudo, Kant não era
muito simpático aos cépticos, que ele chamara de “espécie de nómada, que tem
horror a toda fixação sólida no chão.”(A IX). Para Kant, os dogmáticos
construíram seus edifícios metafísicos em solo movediço, onde tudo desmorona
antes de ser levado a termo; mas o cepticismo, ao qual se renderam muitos
pensadores do século XVIII, comete o erro de professar, pela metafísica, um
desprezo que não pode ser sincero, pois que “é inteiramente vão querer afectar
indiferença por um género de pesquisa cujo objecto não poderia ser indiferente
à natureza humana” (A X).
Dessa
forma, é com a metafísica que estão relacionados os problemas da existência de
Deus, da imortalidade da alma e da liberdade do homem no mundo: ideias sobre as
quais a razão humana é naturalmente levada a pensar, são essas questões, que
segundo Kant, não podemos evitar de forma alguma. De modo que a razão não pode
limitar-se à experiência; os próprios princípios que emprega no conhecimento
experimental conduzem-na inevitavelmente a sair dos limites de toda experiência
e conceber realidades transcendentes, tais como a de alma, do mundo considerado
em sua totalidade e o de Deus. É claro que nesse domínio, onde a experiência
está inteiramente ausente, a razão se vê completamente livre para obter
verdades que dependam apenas de si própria, como é o caso das verdades que
encontramos na Lógica, na Matemática e na Física, na medida em que essas são
verdades fundamentadas a priori na razão. Tais disciplinas enveredaram, aquelas
desde a Antiguidade, e esta, desde Galileu e Torricelli, pelo “caminho seguro
da ciência” (B XII), isto é, progridem infalivelmente. A metafísica, porém,
segundo Kant, estava continuamente enfrentando problemas quanto ao
estabelecimento daquelas verdades que afirmava formar o corpo de sua doutrina e
os pensadores metafísicos nunca pareciam chegar a um acordo em relação a essas
verdades, estando a metafísica em contínuo desacordo consigo mesma.
O
problema que Kant enfrenta é, pois, o seguinte: por que a metafísica não
apresenta o mesmo grau de certeza que a lógica, a matemática ou a física? E tão
grande é sua confiança na razão que não duvida que a questão comporta uma
resposta. O comprometimento de Kant se resume no propósito de reabilitar a
filosofia de assumir a defesa da razão contra o cepticismo. Mas ao invés de
propor um novo sistema metafísico, que sem dúvida teria a mesma sorte que os
outros, Kant irá atacar o problema pela raiz, interrogando-se sobre as próprias
possibilidades da razão.
Dessa
maneira, vemos o que significa a noção de crítica: um exame minucioso da razão
que tem por finalidade discernir e distinguir o que a razão pode fazer e quais
são seus limites. E, sendo essa crítica uma crítica da razão pura, ela se
pronunciará apenas sobre o valor dos conhecimentos puramente racionais, como
devem ser os da metafísica: “Não entendo com isso uma crítica dos livros e dos
sistemas, mas o da faculdade da razão como tal, em relação a todos os
conhecimentos a que esta possa aspirar independentemente de toda experiência,
e, por conseguinte, a decisão sobre a possibilidade ou impossibilidade de toda
uma metafísica em si, bem como a determinação tanto das fontes como dos limites
da mesma; e tudo isso a partir de princípios.”(A XXII).
Portanto,
ressalta Kant, era preciso buscar na própria razão as regras e os limites de
sua actividade, a fim de saber até que ponto pode-se produzir verdades válidas,
quais são, portanto, os limites do conhecimento.
De forma
geral, é assim que é vista a filosofia crítica de Kant, ou seja, como um ponto
final à metafísica, como uma filosofia que não apenas se contrapõe à
metafísica, mas que a destrói definitivamente. Este trabalho irá se concentrar
na análise dos paralogismos da razão pura, que estão na dialéctica e que
mostram claramente como a razão cai na armadilha de tentar produzir verdades
válidas sobre a alma e como, por não serem verdades que se pode conhecer, essas
afirmações sobre a alma não podem constituir uma ciência da alma ou uma
psicologia racional. Contudo, pela análise do conceito do eu penso,
verificaremos as ambiguidades, dificuldades e obscuridades do texto kantiano
nos paralogismos, dificuldades essas que têm sido discutidas e apontadas por
muitos estudiosos da obra kantiana. Além de expor os paralogismos, procurarei
mostrar o quanto Kant se aproxima e o quanto de facto se afastou dos
metafísicos tradicionais aos quais tão veementemente combateu, para, por fim
tentar mostrar que Kant na realidade nunca procurou se opor à metafísica em si,
mas apenas à metafísica tal como formulada pelos filósofos racionais do século
XVIII. Meu intuito será o de mostrar que Kant, de facto, era um filósofo mais
tradicional do que às vezes se supõe[3].
Kant queria mesmo era livrar a metafísica de certas impurezas e reposicioná-la
no que ele acreditava ser seu verdadeiro domínio. O “eu penso” e a psicologia
racional.
A
questão para a qual chamarei atenção nesse estudo sobre Kant se refere à
proposição “eu penso” que encontramos na dialéctica Transcendental. E essa
questão seria: como entender esse eu penso? Sabe-se que é a partir da
proposição “eu penso” considerada do ponto de vista transcendental, ou seja,
como condição exclusiva para que minhas representações pertençam a mim, que
Kant inicia sua crítica às pretensões racionalistas de fundar uma ciência da
alma ou uma psicologia racional.
Assim, a
questão que se põe é: como entender exactamente esse “eu penso” e no que ele se
difere do “eu penso” cartesiano? O quanto Kant de facto se afastara de
Descartes? Em algumas passagens nos Paralogismos, Kant se refere a um “eu
penso” considerado em sentido problemático, a um “eu penso” em geral, e ao
nosso ser pensante, como veremos a seguir. Por isso, após um breve exame sobre
o “eu penso” colocarei em confronto opiniões e leituras diferentes de alguns
comentadores de Kant sobre o que seja o “eu penso” kantiano e, mesmo, sobre
qual é sua função na análise dos Paralogismos da Razão Pura.
“O “eu
penso” é, pois, o único texto da psicologia racional de onde esta deverá
extrair toda a sua sabedoria” (A343/B401). Com essa afirmação, Kant aponta que
o solo sobre o qual repousa toda a estrutura da Psicologia Racional é o “eu
penso” ou a noção de um sujeito puro, absoluto. Mas a questão que se põe é: em
que medida o eu penso, a substância pensante, funda e sustenta o edifício da
Psicologia Racional?
A
Psicologia Racional parte do “eu penso” e o toma como um sujeito absoluto, é o
eu (enquanto consciência de si) convertido em substância, que actuaria como
fundamento do pensamento e do qual derivariam todos os fenómenos psíquicos
internos, de forma que a Psicologia Racional se constituiria como a ciência da
alma. Esta pretendia fazer-nos conhecer a natureza do sujeito. Sua origem se
deve à razão, que actuando como faculdade dos princípios busca o
incondicionado, ou seja, se lança na empreitada de encontrar para o
conhecimento condicionado do entendimento, o perfeito, o pleno, com o que se
completa a unidade do mesmo (cf. A345). Desta forma, a razão chega a conceitos
puros da razão ou ideias (cf. A348), que são conceitos aos quais não se pode
dar um objecto congruente nos sentidos (cf. A359). Quando a razão serve-se da
função do raciocínio categórico, chega necessariamente à noção da unidade
absoluta do sujeito pensante.
Para a
Psicologia Racional, é a partir do “eu penso” que se chega à ideia de alma como
uma substância simples, idêntica e capaz de manter-se em relação como os
objectos possíveis no espaço (pois se infere que o sujeito pensante seja uma
unidade ontológica substancial, a partir da ideia de que o que só pode ser
pensado como sujeito é substância), a qual figura como o princípio
incondicionado, como essência última do sujeito. É uma determinação objectiva
das coisas em si e, como tal, nos forneceria conhecimento.
Ainda
deve-se notar que a Psicologia Racional, por definição, não poderia apoiar-se
em nenhuma experiência, isto é, em nenhuma determinação do sentido íntimo, pois
que: “O menor objecto de percepção (o prazer ou desprazer, por exemplo) que
viesse juntar-se à representação geral da consciência de si mesmo logo
transformaria a psicologia racional em psicologia empírica.”(B401)
O “eu penso” é, pois, a
base sobre a qual assentam as asserções da Psicologia Racional em sua pretensão
de constituir-se ciência. Ora, uma ciência não é verdadeiramente ciência, a
menos que inclua juízos sintéticos. Mas o “eu penso” é um pensamento, e não uma
intuição; isto é, sua unidade é puramente analítica; a consciência que tenho de
mim mesmo enquanto sujeito único e idêntico não é, de forma alguma,
conhecimento. Por conseguinte, é somente através de um paralogismo que se pode
passar desta proposição analítica a proposições sintéticas, tais como o são as
conclusões da Psicologia Racional.
O diagnóstico kantiano
Conforme
mostraremos o primeiro paralogismo informa que se toma o sujeito em sentidos
diferentes nas premissas maior e menor. Na maior, o ser pensante é considerado
em geral, e, por conseguinte, tal como poderia ser dado na intuição. Na menor,
ao contrário, trata-se unicamente do ser pensando enquanto tem consciência de
pensar, do “eu penso” que pode acompanhar todas as minhas representações (este
“eu penso” kantiano, puramente formal), e nesse sentido ele não pode, de
maneira nenhuma, ser objecto de intuição. A conclusão, portanto, não pode
aplicar-se a ele, isto é, não é possível aplicar-lhe a categoria de substância.
Em
outras palavras, embora, o sujeito seja apenas sujeito e, de forma alguma,
objecto, não se pode concluir que seja uma substância. Por este ‘eu’, por este
‘ele’, ou por ‘esta coisa que pensa’, nada mais nos representamos do que um
sujeito transcendental dos pensamentos: e este sujeito não pode ser conhecido
senão pelos pensamentos, que sãos seus predicados”(B404).
O erro,
pois, consiste sempre em se confundir o eu transcendental com o eu empírico. O único
conhecimento que podemos ter de nós é o do eu empírico, diferentemente do que a
Psicologia racional defende. Segundo Kant, nós apenas nos percebemos tais como
nos aparecemos, e não tais como somos; só conhecemos o eu fenoménico, este eu
que percebe, experimenta e conhece o mundo, as coisas ao seu redor, na
experiência. Contudo, nunca chegamos a ter acesso a esse “eu” enquanto
substrato numénico, reclamado pela Psicologia Racional. Só há conhecimento
daquilo que é objecto, e o que constitui o objecto não é a minha consciência do
eu determinante, mas tão somente a do eu determinável (cf. B407). Separar o
sujeito do objecto é perdê-lo; o que conhece não pode ser conhecido senão
enquanto fenómeno. O “eu penso” só pode conhecer o que não é ele, mas mais ainda,
ele tampouco pode se conhecer em sua essência. Isso significa que mesmo o que é
fenoménico não é uma substância, como algo no espaço pode ser.
Entender
o “eu penso” como substância é um equívoco, pois ao fazermos isso, aplicamos de
forma ilegítima uma categoria do entendimento, visto que esta pode ser aplicada
apenas aos dados da intuição, mas não ao eu penso, que para Kant é pura actividade
formal de onde dependem as próprias categorias. A esse respeito, Kant nos diz
que: “De tudo isso se vê que a psicologia racional deve sua origem a um simples
mal-entendido. A unidade da consciência, que serve de fundamento às categorias,
é tomada aqui por uma intuição do sujeito enquanto objecto, a que se aplica a
categoria de substância.” (B421-22).
Dessa
maneira, Kant nos mostra não só que a base da Psicologia Racional seja o “eu
penso” (cartesiano), mas que também o acesso a esse substrato ontológico que
deriva da ideia de “eu penso” (cartesiano) é impossível. A ciência da alma, que
pretende ter como objecto de estudo a alma, este sujeito, este eu puro, está
fadada ao fracasso, pois sua deficiência é interna: a ela não é dado conhecer
este substrato numênico que postula, este sempre nos escapará. Logo, ao
extrapolar os limites do sensível, a psicologia racional terá como resultado
paralogismos da razão pura, nunca conhecimento de fato. Kant declara o projecto
de uma tal ciência inviável. O “eu penso” é a um tempo o fundamento da
psicologia racional, bem como sua própria chaga.
O controverso “eu penso”
O
problema, porém, é que a descrição kantiana do “eu penso” parece ambígua.
Existe de facto uma séria dificuldade em entender o “eu penso” nos
Paralogismos, uma vez que as próprias descrições kantianas do “eu penso” são
aparentemente contraditórias ou pelo menos conflituantes entre si. Ora Kant diz
que o “eu penso” é uma representação, ora diz que é um juízo ou um conceito.
Dessa forma, o leitor de Kant não é ajudado pelo próprio autor a entender o que
é o “eu penso”. Certamente, não é fácil analisar e compreender os sentidos do
“eu penso” nos Paralogismos.
Esse
ponto é amplamente reconhecido pelos comentadores. Por exemplo, Walsh, em ‘Crítica
da Metafísica de Kant[4],
afirma que a dialéctica é a parte da Crítica em que Kant lançará luz sobre
alguns conceitos que apareceram na Analítica de forma confusa ou ambígua,
especialmente no que diz respeito ao misterioso “eu penso”, que muitas vezes é
descrito como uma ‘representação’, um ‘conceito’ e um ‘juízo’ o qual é ao mesmo
tempo a expressão da unidade da apercepção e a base sobre a qual os metafísicos
constroem a pseudo-ciência Psicologia Racional. Para Walsh, Kant faz um uso
muito livre da expressão cartesiana “eu penso”.
Bennett,
em Dialetica de Kant[5],
apresenta outra leitura sobre o que seja o “eu penso” a partir do que ele chama
de base cartesiana. Esse comentador defende a ideia de que o “eu penso” expressa
o papel peculiar do sujeito como a fronteira de seu mundo na base cartesiana,
como veremos mais adiante.
Já
Brook, em Kant and the Mind[6],
afirma que, embora a definição kantiana para o “eu penso” não seja clara,
trata-se de entender que o “eu penso” não é um conceito ou uma descrição, mas
sim uma proposição vazia.
Por
outro lado, segundo Landim em seu artigo “Do “eu penso” cartesiano ao “eu
penso” kantiano”[7], o
“eu penso” pode ser entendido como um juízo que denota um acto exclusivo do
entendimento e que tem um significado diferente não só do “eu penso” descrito
na Dedução Transcendental, como também do “eu penso” considerado como
proposição empírica.
Assim,
além das aparentes hesitações e oscilações kantianas, o leitor de Kant se
depara com as mais diferentes interpretações dos comentadores sobre o “eu penso”.
Apresentarei, no capítulo 3 algumas das importantes interpretações do “eu
penso” nos Paralogismos e as discutirei criticamente, após expor o texto
kantiano. Numa primeira parte, apresentarei o que chamo de preliminares para
uma análise adequada do “eu penso” nos Paralogismos. Na segunda, farei uma
apresentação dos textos relevantes de Kant, passando pela discussão crítica dos
comentadores na terceira parte. Na quarta, dedico-me a expor a assim chamada
psicologia de Kant. Procuro fazer uma análise do que eram e do que se tornaram
as noções de psicologia empírica e psicologia racional após o ataque de Kant à
metafísica racional, para concluir meu trabalho mostrando que na realidade,
mesmo após efectuar a virada crítica, Kant sempre foi um metafísico que, ao efectuar
o ataque à psicologia racional na dialéctica Transcendental e às outras partes
componentes da metafísica tradicional, na realidade tinha como objectivo de
restaurar a metafísica tradicional no que ele acreditou ser seu campo legítimo
de actuação (ou seja, o campo da ética) para assim preservá-la dos debates
inférteis que assomavam seu domínio no campo do conhecimento[8].
Assim,
investigarei especialmente a crítica à metafísica tradicional e a teoria da
verdade que resulta dessa crítica. Serão contrastados os aspectos positivos e
negativos da teoria kantiana, visando compreender como, à limitação do
conhecimento à experiência, corresponde igualmente a possibilidade de superação
desses limites pela afirmação da lei moral, embora esse seja um tópico a ser
desenvolvido em um estudo posterior.
1 - Preliminares para uma discussão crítica de Kant
1.1 - O lugar dos paralogismos no interior da Dialéctica:
A
Analítica definiu a “terra da verdade” (A235/B294): ela nos permitiu saber sob
quais condições podemos afirmar correctamente que nossos pensamentos têm
objectos e que nossos juízos são capazes de verdade. Essas condições são
aquelas da experiência possível e os resultados da Analítica mostram que elas
são necessárias tanto quanto suficientes para o conhecimento. Disso se segue
que os limites do conhecimento coincidem com os limites da experiência e que as
afirmações da metafísica transcendente são infundadas.
Contudo,
até aí apenas a primeira metade da empreitada crítica está completa, pois é na
dialéctica que Kant fornecerá uma crítica detalhada à metafísica transcendente.
Enquanto na Analítica, Kant se posiciona contra a concepção empirista da
experiência em apoio à afirmação racionalista de que a razão pura é necessária
para o conhecimento, na dialéctica ele se volta contra a concepção racionalista
do escopo da razão, em apoio à afirmação empirista de que deve haver a experiência
dos objectos para que eles sejam conhecidos.
Há uma
série de razões por que essa empreitada é necessária. A mais óbvia é que um
exame da metafísica transcendental é exigido para uma solução conclusiva para o
problema da metafísica e a defesa completa de sua teoria do conhecimento.
À
primeira vista, parece que Kant poderia simplesmente permitir que seu veredicto
contra a metafísica transcendente repousasse nos resultados da Analítica. Mas,
num exame mais minucioso, não seria aconselhável para ele manter essa linha. A
relação de Kant com a metafísica transcendente é muito mais complexa do que a
de outros alvos de sua crítica. Kant não rejeita afirmações sobre objectos
não-empíricos, mas, para ele, estes não são, de forma alguma, cognoscíveis. O
caso, porém, é que sua teoria da origem a priori das categorias o compromete a
afirmar que pensar sobre objectos não-empíricos é possível, mas que o escopo de
nosso pensamento excede o de nosso conhecimento possível. A objecção kantiana
ao conhecimento transcendente se volta inteiramente sobre a lacuna entre o
pensamento e o conhecimento. Nesse momento da obra kantiana encontramos uma das
bases de sua crítica à razão quando esta se lança para além dos domínios do
mundo fenoménico, ou seja, quando é razão pura. Kant aí denunciaria essa
extensão ilegítima do uso da razão e com isso questiona a própria condição de
possibilidade de conhecer, ou ainda, podemos dizer que ele põe em xeque o
estatuto do que pode ser conhecido pela razão humana. Seria exactamente essa característica
que inaugura o modo de pensar kantiano, ou seja, sua filosofia transcendental.
A dialéctica
seria, conforme Kant, uma “lógica da ilusão, à qual se opõe, na filosofia
crítica, uma crítica da ilusão Dialéctica” (CRP A62/B86). Desse modo, a dialéctica
é uma lógica da ilusão em oposição a uma lógica da verdade que, no caso, seria
a Analítica Transcendental. Analisarei essa lógica da ilusão, porém vale
salientar que, como pode haver diversos tipos de ilusão, é interessante mostrar
a qual irei me reportar. A ilusão empírica – as ilusões ópticas por exemplo -
provém da influência da imaginação sobre o entendimento, é facilmente vencida e
não é objecto desse estudo . Da mesma maneira, segundo Kant, a ilusão lógica
não resiste à prova: bastaria ser mais cauteloso em relação às regras da lógica
para que os raciocínios sofísticos (o que chamaremos de agora em diante de
paralogismos) caiam por terra. A aparência ou ilusão de que trataremos não é do
tipo lógico, mas do tipo transcendental[9],
a qual é muito mais tenaz, pois “(...) não cessa com ter sido descoberta e com
se haver reconhecido claramente a sua inanidade pela crítica transcendental.
(...) A causa disso é que há em nossa razão (considerada subjectivamente, isto
é, como faculdade de conhecimento do homem) certas regras fundamentais e
máximas referentes ao seu uso, as quais têm exacta aparência de princípios
objectivos, fazendo com que a necessidade subjectiva de uma certa ligação de
nossos conceitos, exigida pelo entendimento, passe por uma necessidade objectiva
da determinação das coisas em si” (B 353).
Desse
modo verificamos que temos de nos haver aqui com uma ilusão natural e,
portanto, inevitável. Não bastaria apenas denunciá-la para que se dissipe,
porque responde a uma necessidade ou exigência do nosso espírito. Examinarei,
pois, esse tipo especial de ilusão atentando para os paralogismos da razão
pura.
A
dialéctica Transcendental, como já foi esboçado, é o estudo das ilusões
transcendentais e das suas fontes. Nos deteremos numa apresentação dos principais
conceitos ligados ao exame da Dialéctica, que nos ajudarão a compreender as
ilusões transcendentais.
A sede
da ilusão transcendental é a razão pura, que nos cumpre distinguir, agora, do
entendimento. A sensibilidade é, em Kant, a faculdade das intuições (ou o que
se percebe imediatamente no mundo fenoménico), o entendimento (verstand) é a
faculdade das regras, enquanto a razão (Vernunft) é a faculdade dos princípios
(B355).
Para
Kant, todo nosso conhecimento começa pelos sentidos, donde passa ao entendimento
para terminar na razão que, por sua vez, elabora a matéria da intuição e a
reduz “à mais alta unidade do pensamento”. Assim todo pensamento consistiria em
ligar, unificar. O entendimento, através dos seus conceitos, reduz à unidade a
multiplicidade dada na intuição e opera, assim, segundo certas regras. Mas
estas mesmas regras, a razão as toma como ponto de partida para atingir uma
unidade mais elevada, que é a dos princípios (B359). Kant nos esclarece sobre
esse ponto afirmando que, se o entendimento pode ser definido como a faculdade
de reduzir os fenómenos à unidade por meio de regras específicas para tal, a
razão é a faculdade de reduzir à unidade as regras do entendimento sob certos
princípios, ou seja, a razão sempre se refere aí ao entendimento, nunca
imediatamente à experiência ou a um objecto e nisso consiste boa parte do nosso
problema.
A
unidade alcançada pelo entendimento nunca vai além de um encadeamento de factos,
mas a razão tende a ultrapassar o entendimento. E isso ocorre porque a razão
também é poder de síntese e sua actividade assenta em conceitos, e não em
intuições.
Essa
busca da mais alta unidade a que me referi acima pode verificar-se já no uso
lógico da razão, ou seja, no raciocínio. Efectivamente, raciocinar é
compreender uma proposição particular sob uma condição geral que a contém,
juntamente com muitas outras. Raciocinar é, pois, julgar, mas tomando por
matéria, não as representações, mas as proposições; portanto é levar mais longe
a busca da unidade do que o entendimento o faz.
Sobre
essa ideia, Kant nos esclarece que razão e entendimento diferem entre si, pois
esse último tem como objecto o finito e o condicionado, os fenómenos da
experiência, por exemplo, ao passo que a razão tem como objecto o infinito e o
incondicionado (B364). Ou ainda, para sermos mais específicos, a razão seria o
intelecto quando este vai além do limite da experiência possível. Mas cabe
dizer que é a razão pura, isto é, a razão aplicada fora dos domínios da
experiência, que se lança em busca do incondicionado, considerado como a
condição última de todas as condições. E o incondicionado, por sua vez, é a
recusa do inacabado, da dependência, é a exigência de uma conclusão, de uma
perfeição, de um ideal.
A
dialéctica transcendental, assim, estuda não o intelecto e suas leis, mas a
razão e suas estruturas. Em Kant, a razão tem: a) um significado geral, que é o
que indica a faculdade cognoscitiva em geral; b) um significado mais específico
e, nesse caso, serve para unificar o pensamento e o conhecimento. Ao contrário,
então, da concepção dos filósofos racionalistas, em especial dos alemães como
Wolff, o entendimento não era sinónimo de razão, mas uma faculdade humana que
não se identifica com o entendimento porque não nos dá conhecimento apenas
permite pensar sobre conceitos[10].
O entendimento por sua vez permitiria termos conhecimento porque lida com
intuições da experiência e com conceitos.
Visto
que o conceito possibilita uma ligação do múltiplo dado na intuição sensível, a
ideia vai mais além da experiência fenomenal; é uma exigência do remate dos
nossos conceitos. É que as sínteses operadas pelo entendimento na experiência
não bastam à razão; o mundo empírico não nos satisfaz, uma vez que não passa de
um conjunto de fenómenos, e não um todo único. A exigência da razão é a de
representar a si o universo como uma totalidade acabada. Por certo, a razão,
com suas ideias[11],
não apreende nenhum objecto, mas esta ideia de universo, este ideal de um
universo acabado e perfeito, impele o espírito a levar adiante, sem cessar, as
suas sínteses empíricas. O conceito, obra do entendimento, é um conhecimento
limitado; a ideia, obra da razão, é menos um conhecimento do que uma directiva;
ela determina, não um objecto, mas um sentido ou rumo (B385-386). E tanto é
assim que, em seu uso prático, isto é no domínio da moral, que se localiza o
ponto basilar das ideias. Mas convém desde já chamar atenção para o facto de
que é somente por causa dessa recusa da razão de contentar-se com o que é, ou
nessa exigência de perfeição que, no plano puramente especulativo que damos um
significado moral para o mundo, segundo Kant.
Mas qual
é o resultado desse esforço em demanda do incondicionado? Quais são essas ideias
que a razão pura não pode deixar de formar? Elas podem ser descobertas considerando
as diversas maneiras pelas quais se pode remontar à totalidade das condições do
condicionado dado e estas diferentes maneiras são definidas pelas categorias[12]
da relação (A323).
Em
outras palavras, a primeira busca do incondicionado é a de um sujeito que outra
coisa não seja senão sujeito, gerando a ideia da unidade absoluta do sujeito
pensante, ou seja, a ideia de alma. A segunda é a de uma causa que outra coisa
não seja senão causa, indo culminar na ideia da unidade absoluta da série das
condições do fenómeno, ou seja, na ideia de mundo. A terceira é a da
determinação de todos os conceitos em relação a um conceito supremo que os
englobe em sua totalidade; termina na ideia da unidade absoluta da condição de
todos os objectos do pensamento em geral, ou seja, na ideia de Deus.
A alma,
o mundo (enquanto unidade metafísica) e Deus são, pois as três ideias da razão
pura, e a aparência dialéctica vem do facto de se tomá-las por determinações objectivas
das coisas em si, e não por simples ligações subjectivas de nossos conceitos.
Mas, se nada nos podem dar a conhecer, tais ideias têm pelo menos uma espécie
de realidade, visto serem ideias da razão, ou seja, frutos de um raciocínio
necessário: “A realidade transcendental (subjectiva) dos conceitos puros da razão
tem como base, pelo menos, o facto de sermos conduzidos a tais ideias por um
raciocínio necessário”(B397). Este tipo de raciocínio é chamado necessário por
Kant, pois tem um fundamento transcendental que nos impele naturalmente a
estabelecer uma conclusão formalmente inválida a esses raciocínios. Estes
raciocínios fazem parte de uma ilusão transcendental que consiste no facto de
atribuirmos erroneamente um valor objectivo a conceitos sem prestar atenção a
suas condições de validade. Formamos um raciocínio perfeitamente lógico, mas
aplicando-o sub-repticiamente, conferindo-lhe um valor de conhecimento,
transferimos incorrectamente as estruturas subjectivas de nosso pensamento para
a objectividade do mundo. A “necessidade” desse raciocínio, reside num carácter
“natural e inevitável” da ilusão a que a razão é levada. A razão é levada a
engendrar raciocínios falsos que não deixam de existir nem quando esta os
reconhece, pois a razão tende naturalmente ao incondicionado, é este movimento
que produz necessariamente esses raciocínios sofísticos.
Todavia,
este raciocínio necessário, que resulta da própria natureza da razão, não passa
de um sofisma, isto é, de uma falácia, erro de raciocínio, e é ao estudo desses
raciocínios sofísticos que Kant consagra a segunda parte da Dialéctica Transcendental,
intitulada “Dos raciocínios dialécticos da razão”. Os sofismas que conduzem à
ideia de alma, e que são chamados paralogismos da razão pura, constituem a
Psicologia racional. A ideia de mundo, objecto da Cosmologia racional, inspira
os raciocínios contraditórios chamados antinomias da razão pura, os quais são
igualmente verdadeiros ou igualmente falsos. E enfim, a Teologia racional, que
trata do ideal da razão pura, ou seja, de Deus, contém os sofismas pelos quais
se pretende demonstrar a existência de um Ser supremo.
Estas
três divisões correspondem às três questões fundamentais da Metafísica: a
imortalidade (que se pretende estabelecer na Psicologia racional), a liberdade
(de cuja existência ou não-existência se pretende decidir na Cosmologia
racional), e Deus (cuja existência se tenta provar na Teologia racional).
1.2 - O conceito de alma em Kant:
Pensadores
como Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Wolff e um sem número de outros
nomes estiveram durante praticamente toda a história da filosofia às voltas com
a questão sobre o que seria a alma. Kant também aborda a temática da alma,
contudo seu interesse se centra mais numa crítica desse conceito. Vejamos
porquê.
Como
vimos, a primeira das três ideias da razão é a alma, bem como que Psicologia
Racional teria como objecto ou “único texto” (A343/B401) o “eu penso”.
O “eu”
enquanto “... ser pensante, objecto do sentido interno” é o que Kant chama de
alma (A342). O conceito de alma em Kant, assim, aparece no capítulo primeiro da
dialéctica como designando um sujeito absoluto, um ser que não é objecto da
experiência fenomenal, como o corpo o seria. Dessa maneira este “eu penso”,
enquanto sujeito absoluto do qual derivam todos os fenómenos psíquicos
internos, seria a alma.
A investigação
da substância pensante, ou desse sujeito absoluto do “eu penso” que a
Psicologia racional empreende para Kant, está fadada ao fracasso, pois toma o
sujeito de “eu penso” como objecto de conhecimento, estendendo o uso das
categorias para além de sua legítima aplicação, isto é, o problema aqui reside
no facto de que a psicologia racional tenta provar que a
alma seja uma substância,
numericamente idêntica, simples e capaz de manter-se em relação com todos os
objectos possíveis no espaço (A345/B403).
Vejamos
como se dá o primeiro enunciado da Psicologia racional: no primeiro paralogismo
mostra-se que o “eu” que pode acompanhar o pensamento é substância. Enquanto
Kant afirma que “fora da significação lógica do eu, não temos nenhum
conhecimento do sujeito em si, que, na qualidade de substrato, esteja na base
desse sujeito lógico, bem como de todos os pensamentos. Entretanto, pode-se
certamente admitir a proposição ‘a alma é substância’, se nos resignarmos a que
este nosso conceito não leve mais além ou não possa ensinar nada das conclusões
habituais da doutrina racional da alma, como, por exemplo, a duração constante
da alma em todas as modificações e mesmo na morte do homem e que, portanto,
designa apenas uma substância na ideia, mas não na realidade”(A350). O erro,
portanto, é atribuir a categoria de substância ao que é conceito puro, ao qual
não corresponde nenhuma intuição. Isso significa que não nos conhecemos
enquanto substratos numénicos, ou seja, nosso “eu” em si, mas como fenómenos,
como seres que se encontram no espaço e no tempo e que é determinado conforme
as doze categorias[13].
A alma,
esse eu que transcende os limites da experiência, não pode ser conhecida por
nós. De modo algum constitui um princípio de conhecimento transcendente, como
se pretendia pela metafísica tradicional, porque fora dos limites da
experiência não nos é possível obter conhecimento.
Kant,
assim, analisa o conceito de alma, tal como concebido pela metafísica
tradicional, criticamente negando a possibilidade de que dele possam se extrair
consequências de valor epistemológico para nós. Isso, contudo, não significa
que ele rejeita o conceito de alma ou o nega. Kant lhe confere um outro
estatuto, que não é o de objecto do conhecimento, mas da moral.
A alma
como uma ideia da razão, ganha um uso regulador com Kant e passa a valer como
uma espécie de regra, sob a qual nossas acções devem se nortear. A ideia de
alma, assim como as outras ideias, passam a ter outra função, como princípio
heurístico, como horizonte moral que guie as acções e a vontade humana sob
forma de lei.
A alma
não pode ser conhecida pela razão teórica, mas pode ser determinada pela razão
prática. O que significa que a busca pelo incondicionado, esse inevitável
lançar-se da razão humana ao transcendente ganha seu sentido e tem sua validade
assegurada quando se trata do campo da moral.
Tendo em
vista a existência de uma alma imortal, um Deus que a tudo preside e um mundo
enquanto totalidade, enquanto absoluto metafísico, as acções humanas podem ser
dirigidas visando à harmonia e paz em comunidade, assim o mundo ganha um
sentido para os homens.
O
conceito de alma, portanto, é transferido do campo da razão teórica no qual era
vazio de significado, para exercer função de princípio normativo com a razão
prática.
Kant, ao
operar essa transição, nos oferece um uso legítimo desses conceitos e delimita
o campo da possibilidade de nosso conhecimento. Assim, a noção de sujeito em
Kant nascerá dessa transição. A nova concepção de sujeito apresentada por Kant
não só impedirá a formulação da metafísica com estatuto de ciência, mas fará
uma revolução epistemológica que apresentarei em seguida.
Notemos,
todavia, que, se a Crítica conclui ser impossível demonstrar que a alma é
imortal, ela conclui, da mesma maneira, pela impossibilidade de se provar que
não o seja. Ela traça, no conhecimento de si, um limite intransponível à razão
especulativa, impedindo-a “tanto de lançar-se no seio de um materialismo sem
alma”, como “de perder-se visionariamente num espiritualismo que não tem para
nós fundamento algum na vida.”
1.3 - A concepção de sujeito em kant no contexto da filosofia moderna.
Assim se
situará a análise dos paralogismos nesse trabalho, que busca mostrar que os
paralogismos são os primeiros raciocínios dialécticos apresentados no contexto
da Arquitectónica da Crítica, porque é a partir do sujeito (do eu) que os
Racionalistas construíram suas teses metafísicas e só se pode derrubar o
edifício da Metafísica Moderna, a partir de Descartes e Locke, em sua pretensão
de tornar-se ciência pela sua base, o sujeito. Kant mostra que é por causa de
uma concepção inadequada da noção de sujeito que se originam os raciocínios
dialécticos do eu. Como esses raciocínios (que são ilusões transcendentais)
encontram sua base e origem na ideia de sujeito (eu) tal como concebida nos
racionalistas, Kant os exporá e analisará em primeiro lugar.
Na
chamada “Revolução Copernicana”[14]
atribuída a Kant pelo modo como este inverte o papel do sujeito no processo do
conhecer, podemos identificar toda uma reestruturação não só do papel do
sujeito no conhecimento – agora como um elemento activo e participante desse
processo -como também da própria acepção de conhecimento e de sujeito.
Ao
deslocar o sujeito para uma função activa em relação à produção do
conhecimento, Kant tira também do sujeito aquela posição epistémica
privilegiada concedida por Descartes e outros filósofos. O sujeito não escapa à
investigação crítica, porque para Kant este sujeito absoluto e intocável dos
racionalistas é tão obscuro e problemático quanto o mundo enquanto uma
totalidade ou Deus. Este sujeito, para quem é postulada uma alma imortal, este
sujeito que origina o “eu penso” cartesiano, conforme Kant nos mostra, origina
também as ilusões transcendentais do eu. Por isso, Kant fornece uma nova acepção
de sujeito e consequentemente, teremos em primeiro lugar a análise dos
paralogismos da razão pura na Crítica.
Assim
como antes o sujeito tinha um lugar primeiro e privilegiado pelos
racionalistas, agora na dialéctica ele também será analisado em primeiro lugar,
pois dele decorrem os demais raciocínios dialécticos. Porque é somente por
pensar o sujeito num lugar incorrecto e de um modo incorrecto é que todo o
sistema do conhecimento e domínio da ciência encontra-se em disputas inférteis,
sem consolidação e a ciência não se define nem se fortalece e também é só assim
que a metafísica pode se pretender uma ciência.
Para
entendermos a transição do conceito de sujeito dos racionalistas ao adoptado
por Kant, traçarei um percurso que se inicia com Descartes, passa por Locke e
termina em Kant. Descartes fala, não exactamente de um sujeito, mas de uma ‘res
cogitans’. O famoso ‘Cogito ergo sum’ seria uma operação que me permitiria
suspender a dúvida sobre minha própria existência quando eu tenho a experiência
de pensar. O ‘cogito nos forneceria’, assim, a certeza de que posso ter um
acesso preciso e indubitável a mim mesmo pelo pensamento. Mas o facto é que
nesse primeiro momento eu sei que tenho consciência de mim mesmo pelo
pensamento que é por sua vez sempre claro e distinto. No entanto, esse tomar
consciência de si ainda não é concebido por Descartes como sujeito. Ao dizer
que enquanto penso, sou, isto é, ao se ter a certeza de que existo como
pensamento, Descartes não afirma com isso que, se penso, sou um sujeito que
pensa, ou seja, compreende, imagina, sente, actua no mundo, vê, corre, dorme,
etc. Em vez disso, a única coisa que diz é que eu sou uma coisa que pensa, uma ‘res
cogitans’.
Dessa
forma, o sujeito compreende a si como ‘cogitatio’, uma substância singular que
se distingue de outra, a ‘res extensa’, a ideia de sujeito é entendida sob o
modo do “eu penso”. Mas, mesmo assim, Descartes não chega, até onde se sabe, a
falar de sujeito propriamente. O que acontece é que os filósofos discípulos de
Descartes introduziram a ideia de ‘consciência’ na disseminação das teses
cartesianas, transformando o ‘eu’ cartesiano em ‘eu consciente’[15]
e este último em sujeito-objecto de uma metafísica da alma, uma psicologia
racional, que é um dos objectos de crítica kantiana.
O
sujeito cartesiano é, pois, uma substância pensante, um sujeito que tem sua
existência assegurada pelo pensamento, ou melhor, pela certeza do pensamento.
Todas as coisas ao seu redor, objectos materiais e num ponto de vista mais
amplo até a realidade a sua volta, podem ser objecto de dúvida quanto a
existirem ou não, porém a certeza de que sou, de que existo, me é dada pelo
pensamento, não pelos dados sensíveis, portanto isso é certo e indubitável.
Esse
sujeito, cuja existência é garantida pela operação do cogito, é pois um sujeito
que se destaca num lugar de privilégio existencial sobre todas as demais coisas
no mundo, mas além disso – e essa é uma decorrência dessa ideia - esse sujeito
se conhece antes e melhor que todas as outras coisas ao seu redor. Por isso, a
noção de conhecimento em Descartes depende em toda sua estrutura dessa
concepção de um sujeito absoluto que tem acesso epistémico privilegiado a si.
Todo o edifício do conhecimento para Descartes se fundamenta aí e é a partir
dessa noção de sujeito que ele inaugura sua filosofia racionalista.
Locke ao
contrário, caminha na contracorrente e sua noção de sujeito ou de alma se
relaciona com o sensível, com a experiência. Para ele, a mente não possui
qualquer outro conteúdo além das ideias extraídas em primeiro plano da
experiência, ideias essas que ela associa, dissocia, combina e ordena. E essas
ideias não são o que definem a mente, o sujeito, mas a experiência que as
originou. As ideias[16]
para Locke não são meros conteúdos inatos dos quais se desenvolverão os germes
do conhecimento, mas produto da experiência, seja interna (reflexão) ou externa
(sensível), que servirão de base para a produção de conhecimento. Dessa forma,
sua concepção sobre sujeito já se mostra diferente da cartesiana por não admitir
um sujeito que é como uma instância epistemológica basilar em relação ao
conhecimento como um todo. Locke também oferece resistência à ideia de uma
substância pensante absoluta, isto é, auto-suficiente, independente da
experiência, independente de ser produto da experiência. Responde ele a
Descartes que temos aí uma ilusão: não se deve associar o pensamento a uma
substância independente da experiência e que existe por si porque isso seria
confundir o que é uma operação mental (pensar em si, pensar que se tem
consciência de si enquanto pensa) por um ente real. Toma-se um processo mental
por um fenómeno, tal é o erro cartesiano. Daí sua recusa em aceitar as ideias
inatas de Descartes na explicação dos fundamentos do conhecimento.
O sujeito lockeano não é
uma “coisa que pensa”, mas é a comunhão de uma dimensão psicológica (ser
consciente), uma dimensão lógica (identidade) e uma perspectiva moral (a
responsabilidade), além da estética (o prazer). São esses elementos que
reencontraremos na composição do(s) sujeito(s) kantiano(s). E Kant também
retoma de Locke a função da unidade da consciência de si, ou o “Eu penso que
pode acompanhar todas as minhas representações” dado que tanto para Locke
quanto para Kant temos a consciência em unidade.
A
diferença entre Locke e Kant em relação ao sujeito e também a diferença entre
Kant e Descartes é que o “eu penso” é uma função puramente lógica. Não temos aí
um “eu penso” que designe uma substância pensante (uma alma) que independe da
experiência para existir e que originará uma noção de conhecimento e ciência
baseados na precisão e certeza do intelecto puramente; tampouco que designe um
conteúdo psicológico na consciência de si e uma memória que garanta identidade
consigo mesma e responsabilidade moral no caso de Locke.
O sujeito
kantiano na realidade se divide em dois: o sujeito fenomenal (que actua no
mundo, um ser mais moral) e um sujeito que chamamos de “eu transcendental”, do
qual nada posso saber enquanto tal, mas que em contrapartida é através dele que
posso conhecer. Temos, pois um eu empírico de um lado, ou um eu que pertence ao
mundo fenoménico e que pode ser apreendido e compreendido como um fenómeno e um
eu que permite que todas as minhas representações sejam minhas de facto e que,
portanto, viabiliza o processo do conhecimento, mas que ele mesmo não pode ser
conhecido por ser uma função intelectual de unidade.
O “eu
penso” kantiano actua dessa forma, como um índice da consciência de si (se nos
remetermos a Locke) que pode acompanhar todo acto cognitivo ou toda operação
mental, isto é, as sínteses da percepção podem através dessa função ser
unificadas em um acto que não é mais da ordem da percepção mas de uma
apercepção[17],
que Kant denomina apercepção transcendental.
Esse eu
penso, essa consciência de si é, então, condição de possibilidade do
conhecimento, mas não pode tomar-se a si mesma por objecto de conhecimento, ou
como coloca Kant, “afectar a si mesma”. Se esse “eu” tomar-se a si como objecto
de conhecimento seria como o sujeito psicológico de Locke e portanto, empírico
(A342/B400).
A
distinção que Kant faz entre um eu empírico e um eu transcendental inaugura seu
idealismo transcendental, uma vez que já que não temos acesso imediato aos
objectos exteriores, mas os acessamos por meio das representações (sensibilidade
e percepções) conferindo o estatuto puramente fenoménico do conhecimento.
Kant nos
revela um sujeito transcendental, um sujeito, um eu que opera exclusivamente na
esfera do conhecimento, um sujeito que é responsável pela nossa formação e
apreensão de conhecimento. Nessas perspectivas que o sujeito participa activamente
da constituição do conhecimento junto aos fenómenos ao seu redor que também são
condições para obtenção de conhecimento. Mas o que caracteriza o eu
transcendental é que ele não é um sujeito do qual se pode conhecer as
propriedades metafísicas como a simplicidade, imaterialidade ou
incorruptibilidade, conforme Kant nos aponta nos paralogismos da Razão Pura,
mas é concebido como uma unidade de juízo e reflexão. Temos aí, pois, a
denúncia kantiana de que é impossível que a metafísica se constitua como
ciência algum dia. Kant, contudo, admite que o fazer metafísica, que o
lançar-se ao incondicionado, é natural para a razão humana, por isso tem lugar
na esfera das acções humanas, ou no caso, no domínio da moral, porque nesse
âmbito, Kant afirma que precisamos de um Deus ou da ‘certeza’ da existência da
alma para nortear nossas acções e relações. Não podemos conhecer a alma ou a
Deus, como queriam os racionalistas, pois, Kant adopta a distinção leibniziana
entre percepção e apercepção. Mas a apercepção leibniziana propriamente está na
Crítica em forma de apercepção empírica, ou sentido interno que é “a
consciência de si mesmo de acordo com as determinações de nosso estado em
percepção interna” (A107). Junto a ela está a apercepção transcendental que
para Kant é o que torna possível a faculdade de julgar, é a faculdade de
“fazermos de nossas próprias representações o objecto de nosso pensamento”
(Falsa subtileza das quatro figuras silogísticas[18]).
Na Crítica da Razão Pura, a apercepção transcendental desempenha o papel de
unidade a priori que permite formular juízos (unir uma intuição a um conceito)
do conhecimento, como o princípio do conhecimento humano. Entretanto, Kant
afirma que existe o emprego regulativo para as ideias da Razão Pura: a moral.
Por isso, podemos dizer que Kant nunca de facto destruiu ou abandonou a
metafísica. Ele apenas a situou onde acreditava ser seu verdadeiro domínio.
2 Apresentação dos textos relevantes de Kant
A
Psicologia racional, da qual um dos maiores representantes é Descartes, é um
ramo da Metafísica Tradicional, a qual diz ser capaz de conhecer o eu (ou alma,
daí o termo psicologia, estudo da alma, psique) e suas características que
seriam a de uma substância indivisível, imaterial, incorruptível e imortal. A
psicologia racional é distinta da empírica entre outras coisas porque se baseia
unicamente na apercepção[19]
do “eu penso” (cogito cartesiano). Sendo o “eu penso” uma representação não
empírica, a psicologia racional se esforça para responder a seguinte questão:
“Qual é a constituição daquilo que pensa?” (A398) em termos a priori.
A partir
disso é que Kant investigará as quatro principais asserções da psicologia a
respeito da alma, as quais ele denominou de paralogismos, pois para Kant um
paralogismo é um silogismo inválido (A341, B399), a primeira forma que a ilusão
transcendental toma, isto é, a ilusão sobre o eu e que serão classificados como
o da substancialidade da alma, o da simplicidade, o da identidade e o da relação
exterior (A395). Desses conceitos decorrerão outros como a imaterialidade,
incorruptibilidade, espiritualidade, comércio psicofísico, animalidade e
imortalidade.
A
Psicologia Racional tem como sua pretensão fazer-nos conhecer a natureza do
sujeito, isto é, do sujeito absoluto, considerado como substância do eu, como
alma. Suas proposições determinam a alma do ponto de vista da relação, ou seja,
quando diz que a alma é uma substância pensante; do ponto de vista da
qualidade, ao afirmar que a alma é simples; da quantidade, ao afirmar que a
alma é uma e idêntica; e finalmente do ponto de vista da modalidade, afirmando
que a existência da alma é mais certa que a do corpo. Na primeira edição da
Crítica (cf. A348-405), Kant estudara, sucessivamente, os quatro paralogismos
da psicologia racional (os da substancialidade, da personalidade, da
simplicidade e da idealidade). Na segunda edição, contenta-se com uma crítica
geral. Isso porque, em última análise, os diferentes argumentos se baseiam num
só e mesmo sofisma, que se faz mister pôr em evidência[20].
Por
definição, a psicologia racional, não pode apoiar-se em nenhuma experiência ou
em nada da experiência. (B401) Para Kant, porém, uma ciência não é
verdadeiramente uma ciência a menos que inclua juízos sintéticos, ou seja,
juízos que nos ofereçam conhecimento. Ora, como se vê na Dedução Transcendental
das Categorias , o “eu penso” é um pensamento, e não uma intuição; isto é, sua
unidade é puramente analítica; a consciência que tenho de mim mesmo enquanto
sujeito único e idêntico não é, de forma alguma, um conhecimento[21].
Por conseguinte, é só através de um paralogismo que se pode passar desta
proposição analítica a proposições sintéticas, tais como o são as conclusões da
psicologia racional. O ponto central do primeiro Paralogismo é nos apresentar a
alma não somente como algo existente, mas como um substrato último, mais
essencial do sujeito, que equivaleria ao eu. Teríamos, pois algo de permanente
aí. A experiência do sujeito interno nos é dada como permanente. Comentadores
de Kant, como Gardner[22],
defendem que não há nada de permanente na experiência do eu. Tudo que é dado no
sentido interno é uma sucessão de aparências que precisam se sujeitar a uma
unidade.
Mesmo
assim, seria preciso que o conceito de substância tivesse uma intuição
correspondente na experiência e, assim, a conclusão da psicologia racional
poderia ser justificada, caso o conceito de substância fosse empregado na
sintetização do eu. Porém, conforme o que Kant já demonstrou, tudo o que é
envolvido no processo de sintetização do eu é o “eu penso” enquanto apercepção
transcendental. E esta é uma condição para a aplicação do conceito de
substância juntamente as outras categorias.
Segundo
a interpretação de Sebastian Gardner, tudo o que esse paralogismo nos diz é que
se um objecto X corresponde a uma representação Y e Y é um sujeito lógico,
então X é uma substância.
A
inferência que é permitida é condicional sobre um objecto já dado: ela diz que
se um objecto X é dado e sua representação é um sujeito lógico, logo X é uma
substância. A premissa maior, entendida correctamente, não nos fala nada sobre
as condições sob as quais objectos podem ser dados. Não se pode, pois autorizar
uma inferência de representações para objectos como a Psicologia Racional supõe
e reclama.
Essa
inferência do primeiro paralogismo é a pedra de toque, o fundamento da
psicologia racional, sem o qual esta não se sustentaria (vide B410-413).
Acredito que apenas o primeiro paralogismo já seria suficiente para mostrar
todo o intento, conteúdo e falha da psicologia racional, mas Kant para tornar
sua exposição mais completa e segura, segue mostrando como o mesmo padrão dialéctico
é repetido nas outras inferências sobre a alma. Vamos então segui-lo.
2.1 - Primeiro paralogismo:
Esse
paralogismo fundamental, como já vimos, se apresenta assim:
1. O que é pensado sujeito de juízo e não
pode ser predicado de nada mais, é substância.
2. Eu como um ser pensante sou sempre o
sujeito de meus pensamentos.
3. Portanto, eu, como um ser pensante (alma),
sou substância.
O
argumento é, à primeira vista, convincente. Kant explica, contudo, que não é
válido (A349-51/B410-13). O paralogismo aqui consiste em tomar o sujeito em
sentidos diferentes na premissa maior e na menor. Na maior, o ser pensante é
considerado em geral e, por conseguinte, tal como poderia ser dado na intuição.
Na menor, ao contrário, trata-se unicamente do ser pensante enquanto tem
consciência de pensar, do “eu penso” que acompanha todas as minhas
representações, e neste sentido não pode, de maneira nenhuma, ser objecto de
intuição. A categoria de substância, portanto, não pode aplicar-se a ele.
Em
outras palavras, o sujeito é apenas sujeito, e de maneira alguma objecto; o
pensamento se define por um acto, e não por propriedades. O erro da Psicologia
Racional, então, consistiria em um equívoco sobre o sujeito; uma confusão do
sentido lógico do termo com seu sentido extra-lógico. Kant afirma que o ‘eu’ é
sempre algo do qual as coisas são predicadas, e não pode nunca ser predicado de
nada mais. Então é verdade que o ‘eu’ deve sempre ser reconhecido como sujeito
de pensamento. Mas, de acordo com Kant, isso é adequadamente entendido como uma
asserção sobre o papel lógico da representação ‘eu’: ela nos diz que o ‘eu’
deve ocupar uma posição de sujeito de qualquer juízo. Então, o que é verdadeiro
é somente que o ‘eu’ deve ser reconhecido como sujeito no que Kant chama de o
sentido ‘lógico’ do sujeito. Dessa forma, pode-se entender melhor o que Kant,
na Dedução Transcendental, diz com «o “eu penso” pode acompanhar todas as
minhas representações». Pois que esse “eu penso”, esse ‘eu’ significa a unidade
transcendental da apercepção ou, em outras palavras, esse ‘eu’ não significa um
sujeito de carne e osso, mas é “a forma da apercepção que pertence a toda experiência
e a precede” (CRP A354). É, pois, a forma que acompanha toda e qualquer
representação que um sujeito possa ter, para que essa possa pertencer a ele.
E disso não se segue que o
‘eu’ seja um substrato numénico. Prova disso é que Kant já nos mostrou na
Dedução Transcendental que nada se segue sobre a natureza do eu como um objecto,
além de que o “eu penso” é uma unidade puramente formal.
A
barreira que Kant ergue entre o sentido lógico e o real de sujeito, pela qual
as inferências da psicologia racional são invalidadas, depende de sua descrição
das condições de aplicação do conceito de substância e, de forma mais geral,
das condições sob as quais objectos podem ser dados, no que, de acordo com
Kant, a psicologia racional não consegue entender. (A349-50, A399-400,
B407-412).
2.2 - Segundo Paralogismo:
Passarei
agora ao segundo paralogismo (A351-2, B407). O facto de que o pensamento
essencialmente envolve unidade permite a psicologia racional reclamar que o “eu”
não é apenas uma substância, mas uma substância simples e indivisível.
Kant
afirma (A352-6, A400-1, B408) que embora seja verdade que o “eu pensante” não
pode ser composto – se as diferentes partes do meu pensamento fossem
distribuídas entre diferentes partes de mim, elas não formariam um pensamento
só - disso não se segue que o eu possui a unidade de um objecto indivisível. A
unidade do pensamento não implica a unidade do sujeito pensante, excepto no
sentido tautológico (analítico) que um ser que pensa não deve ser composto de
um modo que seja inconsistente com a unidade do pensamento. Assim, a unidade do
eu é, de novo, somente lógica, puramente formal.
Tudo o
que ‘eu sou simples’ realmente mostra é que a representação ‘eu’ não contém
nenhum conteúdo de nenhuma sorte.
A ideia
dos psicólogos racionais, por oposição, seria algo do seguinte tipo: porque o
‘eu’ é completamente vazio, supõe-se que este deve denotar um objecto simples.
Na realidade, dizer que
o ‘eu’ é simples significa
somente dizer que “penso alguma coisa, como completamente simples, porque, na
realidade, não sei dizer nada mais, a não ser que é alguma coisa” (A400).
2.3 - Terceiro paralogismo:
O mesmo
tipo de erro a respeito das características da apercepção para as de
substância, leva a psicologia racional a afirmar que o ‘eu’ se refere a uma
mesma pessoa, uma substância que tem consciência de sua identidade através do
tempo e da mudança, sendo este o terceiro paralogismo (A361-2,B408). A
psicologia racional infere a personalidade do ‘eu’ do facto de que eu sou
consciente de minha identidade durante o tempo que não sou consciente de mais
nada. Novamente, Kant afirma (A362-6, B408-9) que essa inferência envolve uma
confusão de um uso lógico e não-lógico dos conceitos, neste caso o conceito de
identidade.
Para
tornar esse ponto mais esclarecedor, Kant emprega a seguinte analogia
(A363n-64n): Algumas de esferas são colocadas numa linha, a primeira a ser
jogada comunicará seu movimento à sua sucessora e assim por diante, como num
jogo de sinuca. De forma similar, para tudo o que conhecemos, no caso do ‘eu’ é
perfeitamente possível, para toda série de sucessão, substâncias numericamente
distantes comunicarem suas representações e consciências à seguinte. Na
realidade, a unidade de consciência através do tempo é totalmente compatível
com mudança de identidade da substância e não há nenhuma inferência legítima da
unidade da apercepção para aquela da coisa pensante através do tempo.
3.4 - Quarto paralogismo:
Um erro
final é cometido pela Psicologia Racional – o quarto paralogismo (B409) – quando
esta converte a verdade de que eu posso distinguir minha própria existência
como um ser pensante de outras coisas fora de mim incluindo meu corpo, na
asserção de que minha existência é independente da do meu corpo (o que
claramente nos remete ao argumento cartesiano do dualismo psicofísico).
Diante
da crítica da noção racionalista de substância, em especial de Descartes, como
podemos entender a necessidade da refutação do dualismo psicofísico efectuada
por Kant no quarto paralogismo? Considerando as diferenças entre a primeira e
segunda edição da Crítica, farei uma análise mais detida desse paralogismo
tratando separadamente as duas edições. Para tanto, acompanharei a exposição do
quarto paralogismo por Kant, analisarei seus argumentos e exporei a crítica
kantiana ao paralogismo, para que se possa esclarecer a questão que tenho em
vista e relacionar o quarto ao primeiro paralogismo.
Para
construir o paralogismo, na primeira edição, Kant utilizará as teses da
filosofia da consciência cartesiana que são também teses do idealismo empírico:
1) o que ocorre em nós é imediatamente percebido; 2) somente o que é
imediatamente percebido é indubitável. O paralogismo nos mostrará que essas
teses, quando em conjunto, resultarão na dúvida sobre o mundo exterior.
Se reconstruirmos o quarto
paralogismo, chegaremos ao seguinte argumento:
1. O que é imediatamente percebido é
indubitável.
2. A existência dos objectos externos, isto é,
de objectos fora de nós não é percebida imediatamente.
3. A percepção de objectos externos é um
efeito da existência desses objectos, que são a causa da percepção.
4. Um
efeito, no entanto, pode ter várias causas, conhecidas e desconhecidas.
Segue-se
então a conclusão céptica: o conhecimento da existência dos objectos externos é
incerto.
A primeira
premissa do paralogismo exprime uma tese fundamental da filosofia da
consciência cartesiana, pois a descoberta e a prova do eu existo como ser
pensante só é possível pela tese da indubitabilidade dos actos de consciência e
do eu penso. Se o “eu penso” é indubitável é porque não é possível negar que se
pensa sem exercer um acto de pensamento, o que significa que o acto do
pensamento se liga à consciência do acto, ou seja, não há como pensar sem estar
consciente desse acto, por isso não há como negar ou duvidar do acto de
pensamento.
No
paralogismo, Kant se vale de outra terminologia, mas com o mesmo sentido, e
opõe aquilo que ocorre em nós[23]
ao que existe fora de nós.
Na
segunda tese, temos que lidar com o sentido da expressão fora de nós, que
parece ser ambíguo, para que compreendamos seu significado. Como Kant mesmo
assinala[24],
essa expressão pode ser usada em dois sentidos: num sentido transcendental,
como designando objectos cuja existência independe de condições epistêmicas e,
sob este aspecto, designando objectos “distintos de nós” (coisas em si); num
sentido empírico, como designando objectos submetidos às relações espaciais (fenómenos)
e, sob esse aspecto, designando objectos (fenómenos) exteriores a nós.
A prova
do paralogismo usa, porém, da ambigüidade dessa expressão para mostrar a
dubitabilidade do conhecimento de objectos externos. Para Kant, a expressão
fora de nós, designa objectos espaciais. Mas, para demonstrar que esses objectos
não são percebidos imediatamente, é necessário dar um outro sentido à expressão
objecto fora de nós. Agora, essa expressão designará os objectos cuja
existência independe de condições epistêmicas. Desse modo, para demonstrar que
a existência dos objectos externos (fora de nós) não pode ser percebida
imediatamente e que, por conseguinte, a existência deles é dubitável, prova-se
que os objectos são fora de nós, já que “fora de nós” significa, neste caso,
independente de condições epistêmicas, seguindo-se, portanto, que as condições
da representação destes objectos não são condição do próprio objecto. Dessa
maneira, segue-se que os objectos são coisas em si, pois eles existem
independentemente de poderem ser representados, então, eles não são percebidos
imediatamente.
Mas como
os objectos exteriores seriam possíveis, se são coisas em si? Uma solução
possível para entender isso é interpretar a relação entre representações e
objectos como uma relação causa-efeito: a percepção (representação) de objectos
exteriores seria um efeito, que teria como causa os próprios objectos externos.
Uma teoria causal da percepção, na qual as coisas em si são conhecidas por
serem causas das suas próprias representações, parece solucionar essa dificuldade.
Neste caso, a existência de objectos exteriores, percebida mediatamente, seria,
portanto, inferida pela aplicação do princípio de causalidade às representações
imediatamente acessíveis dos objectos externos.
Contudo,
Kant afirmou que um efeito pode ter múltiplas causas, conhecidas e
desconhecidas. Por isso, se as coisas exteriores (como coisas em si) só podem
ser conhecidas por meio de seus efeitos, isto é, por serem causas das suas
representações, a sua existência é incerta por ser inferida pela relação
causal.
A
construção do paralogismo se baseou na conjugação de três princípios: as teses
cartesianas, o realismo transcendental e a teoria causal da percepção. O
resultado da conjunção destes princípios é o cepticismo sobre a existência de
coisas fora de nós. Pela análise kantiana, o realismo transcendental parece se
defrontar com dificuldades insuperáveis: de um lado, a conjunção da tese de que
as representações são imediatamente percebidas com a tese de que apenas pelas
representações se tem acesso aos objectos fora de nós exige do realista
transcendental uma “prova do mundo exterior”; por outro lado, a tese central do
realismo transcendental, de que os objectos fora de nós são coisas em si e que,
só podem ser conhecidos mediatamente pelas suas representações, obriga o
realista a recorrer a uma “teoria causal da percepção” para explicar as
relações entre representações e objectos fora de nós e justificar, desta forma,
a possibilidade do acesso ao mundo exterior. No entanto, se uma representação
pode ter múltiplas causas, o conhecimento dos objectos fora de nós será sempre
duvidoso.
A
refutação kantiana do paralogismo envolve uma série de teses demonstradas ao
longo da CRP: 1) a tese do idealismo transcendental, 2) a tese da realidade
empírica do espaço, 3) a tese do fenomenismo e 4) a tese anti-reducionista. A
tese do idealismo transcendental diz que os objectos de conhecimento são fenómenos,
ou seja, objectos dependentes de condições epistêmicas necessárias. Já a tese
da realidade empírica do espaço afirma que os objectos dos sentidos externos
são submetidos à condição formal-subjectiva do espaço, por isso, os objectos da
experiência, quando determinados na intuição externa, são considerados “fora de
mim”. A tese do fenomenismo diz que os objectos do conhecimento (fenómenos) na
medida em que são constituídos por condições necessárias, formais e subjectivas,
são representações. Porém, devem ser distinguidas as que são subjectivas e as objectivas,
que são aquelas representações que podem ser consideradas como objectos de
conhecimento por satisfazerem a certas condições necessárias. A tese do
fenomenismo, assim, não implica que os fenómenos sejam identificados às
representações subjectivas. Já a tese anti-reducionista afirma que, embora os
objectos de conhecimento tenham sido reduzidos a representações, os objectos
externos submetidos na intuição externa à condição formal do espaço, têm um
conteúdo que não pode ser determinado a priori por qualquer condição subjectiva.
Assim, além de satisfazerem a certas condições formais-subjectivas, os objectos
externos satisfazem também a uma condição necessária a qualquer condição
formal: sem um dado, correlato da sensação, não é possível identificar algo na
intuição como objecto externo[25].
Esta tese, que se baseia na Estética Transcendental e que parece atenuar a
perspectiva fenomenista da primeira edição da Crítica, será explicitada e
desenvolvida na Refutação do Idealismo, quando a filosofia cartesiana da
consciência será posta em questão. Supostas estas teses, a refutação do
paralogismo se torna plausível, pois, segundo a tese da filosofia da
consciência cartesiana (de que o que é percebido imediatamente é indubitável),
as representações podem ser percebidas imediatamente. Se os objectos de
conhecimento são fenómenos (tese do idealismo transcendental), se os fenómenos
externos são representações submetidas à condição formal do espaço (teses 3 e
4), então pode-se perceber imediatamente os fenómenos externos sem que isso
signifique que o percebido seja um estado subjectivo (teses 3 e 4).
A tese
da realidade empírica do espaço e a tese do idealismo transcendental permitiram
dissolver a ambiguidade essencial utilizada na construção do paralogismo: o
sentido da expressão objecto externo (ou fora de nós). Assim, ficou determinado
o significado preciso dessa expressão: objectos externos são fenómenos
submetidos à condição subjectiva do espaço. Contudo, essas teses ainda não
provam que a percepção dos fenómenos externos seja indubitável. Elas apenas
refutam o realismo transcendental, estabelecendo que os objectos de
conhecimento são fenómenos e que fenómenos não são independentes de condições subjectivas
epistémicas. Para refutar o paralogismo ainda é necessário mostrar que a
percepção de objectos externos é indubitável. Em razão da tese da filosofia da
consciência cartesiana, sabe-se que as representações, enquanto estados subjectivos,
são indubitáveis; mas não se sabe ainda que os fenómenos externos também o são.
A tese do fenomenismo completa, assim, a refutação do paralogismo: os fenómenos
são representações. Dessa forma, não será mais duvidosa a prova do ‘mundo
exterior’ e, do ponto de vista da certeza, não há mais prioridade da percepção
de representações ‘em mim’ sobre a percepção de objectos ‘fora de mim’, pois
ambas são percepções imediatas, são percepções subjectivas, se estas pertencem
aos sentidos internos; são percepções de representações objectivas, no caso de
serem submetidas a condições necessárias categoriais; são percepções de objectos
(representações) externos, se são submetidas a condições categoriais que tornam
possível identificar o dado da intuição externa do objecto.
Segue-se,
então, que a refutação do paralogismo se realiza em quatro fases: inicialmente
é pressuposta, apenas como ponto de partida, a premissa da filosofia da
consciência cartesiana (o que ocorre em nós é imediatamente percebido). Por
isso, na crítica ao paralogismo em [A], Kant dá alguma razão a Descartes. Disso
se conclui que as representações são imediatamente percebidas. Em seguida,
prova-se que os objectos externos são fenómenos e que os fenómenos são
representações, para finalmente demonstrar que os objectos ‘fora de mim’ não
podem ser assimilados nem às representações subjectivas dos sentidos internos,
nem às representações objectivas dos estados subjectivos.
Na
segunda edição, ocorre uma reformulação do quarto paralogismo, em que Kant
apresenta uma nova crítica ao idealismo céptico (problemático) que está contida
na Refutação do Idealismo e uma nova crítica da relação mente-corpo.
2.5 - A Refutação do Idealismo:
Na
Refutação do Idealismo, Kant tenciona provar que nós temos experiência de objectos
externos - objectos distintos de nós no espaço – e, portanto, refutar o cepticismo
sobre o mundo externo.
Numa
breve nota à Refutação (B274-5), Kant analisa as diferentes espécies de
idealismo. Idealismo de um tipo não transcendental é referido como ‘idealismo
material’; Kant também às vezes se refere a isso como ‘idealismo empírico’ (ele
emprega o termo em A369). O Idealismo Transcendental, porém, é um ‘idealismo
crítico’ ou ‘idealismo formal’ (B519n). Assim, enquanto a forma conceitual e
sensível das aparências deriva do sujeito, a matéria (a qual corresponde à
sensação) não. O idealismo empírico afirma que a matéria da aparência é
fornecida pelo sujeito, então este é um idealismo que diz respeito à existência
de objectos, diferente do idealismo transcendental. Mas mesmo dadas essas
“especificidades” de idealismo, Kant coloca tanto Descartes quanto Berkeley no
mesmo grupo como idealistas empíricos, por conta de dois motivos: primeiro,
porque ambos assumem que os objectos primários e imediatos do conhecimento são
exclusivamente subjectivos, privados, entidades mentais, em vez de objectos
empiricamente reais. Contudo, eles aceitam que o conhecimento de objectos no
espaço repousa sobre a inferência do conhecimento de estados internos. Segundo,
porque nenhum dos dois, de acordo com Kant, obtém sucesso na defesa de uma
crença de senso comum na realidade empírica. Berkeley tencionava que sua
análise idealista do conhecimento empírico fosse uma defesa do senso comum
contra o cepticismo, mas o resultado da empreitada de Berkeley, para Kant, é
reduzir coisas no espaço a “entidades meramente imaginárias”. E embora
Descartes tencione usar a dúvida céptica apenas como uma ferramenta
metodológica, Kant diz que ele falha de escapar do solipsismo: se somente
objectos internos são conhecidos imediatamente, não há uma rota inferencial
para o mundo externo.
O
idealismo empírico ou material é dividido por Kant em dois tipos (B274-5).
Primeiro, o idealismo ‘dogmático’ de Berkeley, o qual sustenta que a existência
de um mundo externo seja “falsa e impossível”. Este tipo de idealismo é
dogmático porque afirma que nós podemos saber que não existe uma coisa como um
mundo exterior[26].
Em segundo lugar, teríamos o idealismo problemático (ou idealismo céptico,
conforme A377) de Descartes, o qual afirma que a existência de um mundo externo
é possível mas “dubitável e indemonstrável”, de forma que qualquer afirmação
sobre o conhecimento do mundo externo envolve uma dúbia (problemática)
inferência de estados internos para objectos externos (vide A367-8).
O caso é
que Kant direcciona a Refutação apenas contra o idealismo problemático,
afirmando que já tratara do idealismo de Berkeley na Estética (B274). De forma
que só lhe sobra o idealismo problemático para refutar, ou seja, Kant ainda deve
mostrar “que nós temos experiência [Erfahrung], e não meramente imaginação, de
coisas externas”. Para isso, é necessário, Kant afirma, provar que “mesmo nossa
experiência interna, a qual para Descartes é indubitável, é possível apenas
supondo-se a experiência externa” (B275).
O
argumento kantiano é colocado em apenas um parágrafo curto (B275-6, ampliado
numa longa nota de rodapé no Prefácio, Bxxxix-xli[n]). Ele começa com a
asserção (com a qual Kant pensa que até o céptico irá concordar) de que “Eu sou
consciente de minha própria existência como determinado no tempo” (B275, e em
outras edições pode-se ler “consciência empírica de minha existência”, Bxl). Afirmar
isso é algo mais forte do que simplesmente afirmar na Dedução que eu tenho
auto-consciência transcendental, a qual é mera consciência de mim mesmo como
pensante: auto-consciência empírica pressupõe sentido interno e um
correspondente empírico. Estamos aqui em outro nível, porque agora, o argumento
kantiano envolve temporalidade de minhas representações mais do que a de
objectos.
Agora,
tal consciência, como toda determinação do tempo, “pressupõe algo permanente na
percepção” (B275). E sabendo-se que tudo o que eu intuo internamente é a
sucessão de minhas representações, numa perspectiva humeniana, este permanente
não pode ser algo dentro de mim (quer dizer, não pode ser “uma intuição em
mim”, vide Bxxxix [n]). Mesmo se houvesse algo passível de ser intuído em mim
que permanecesse constante através de minha experiência, seria uma
representação permanente, não uma representação de um permanente. Enfatizando
essa distinção, Kant aponta que uma representação permanente não é mais
necessária do que é suficiente para a representação de um permanente:
representações devem elas mesmas ser transitórias, mas devem se referir a algo
permanente (Bxli).
Com a
eliminação da “res cogitans” cartesiana como candidata para o permanente, Kant
infere que isso é possível “apenas através de uma coisa externa a mim e não
através de uma mera representação de uma coisa externa a mim” (B275); e se o
permanente deve estar fora de mim, então ele deve ser espacial, porque o espaço
é a forma do sentido externo[27].
Então,
Kant conclui que consciência empírica de minha existência “é ao mesmo tempo uma
consciência imediata da existência de outras coisas fora de mim” (B276). Isto
é, não apenas devem existir coisas fora de mim, mas eu devo ter consciência
delas, e esta consciência deve ser imediata, pois que eu, de outro modo, teria
que inferir a ordem-tempo de objectos externos (como o cartesiano assume,
B276), o que exigiria que eu pudesse identificar a ordem-tempo de minhas
representações de forma privilegiada às de seus objectos - sendo que a primeira
analogia mostra que isso é impossível[28].
O
resultado é que a experiência interna e a externa são necessariamente
correlatas. Dessa forma, a suposição cartesiana que estados subjectivos podem
ser conhecidos independentemente do mundo externo, que a auto-consciência é
privilegiada em relação ao conhecimento dos objectos, é incorrecta: Kant mostrou
que os ataques da “certeza indubitável” cartesiana acertam não a
auto-consciência empírica, num primeiro momento, mas a auto-consciência
transcendental, e que o conhecimento da experiência interna (auto-consciência
empírica) pressupõe a experiência externa.
A
Refutação mostrou que a mudança de uma visão subjectiva para uma visão objectiva
da própria existência – um movimento que o idealista deve fazer se ele está se
referindo a fatos da experiência interna como base para a dúvida idealista- nos
obriga a um movimento dos objectos internos para os externos. Isso nos mostra
porque deve haver um mundo externo, e explica porque sua existência deve ser
auto-evidente do modo que nós achamos que é.
2.6 - A Refutação do Idealismo e o Quarto Paralogismo:
O argumento
na Refutação é relativamente fácil de entender, mas sua presença na Crítica
cria uma espécie de quebra-cabeça e sua interpretação é altamente controversa.
Não é inicialmente óbvio porque a Refutação é necessária, na visão da Dedução e
Analogias, e como ela se encaixa entre essas duas. Embora a Refutação volte a
alguns temas da Analítica da auto-consciência e temporalidade, ela não
simplesmente recapitula o material anterior. Mas se a Refutação acrescenta algo
realmente novo, então a questão que surge é se ela é estritamente necessária
para a defesa kantiana da objectividade. Se a resposta é sim, então parece se
seguir que a Dedução e as Analogias, apesar de aparentemente fazer isso, são
inadequadas ou insuficientes em algum aspecto para refutar o cepticismo sobre o
mundo externo.
Uma
consideração, que pode ajudar a resolver esse enigma, é que a Refutação foi
inserida apenas na segunda edição, e isso coincide com a eliminação da longa secção
na dialéctica da primeira edição que é a do Quarto Paralogismo (A366-80), na
qual Kant combate o cepticismo cartesiano, como já vimos. De acordo com o
idealismo transcendental, objectos externos estão “fora de nós” apenas no
sentido empírico – num sentido transcendental eles estão dentro de nós, uma vez
que o espaço pertence à nossa sensibilidade – os objectos exteriores “são,
porém, meros fenómenos, portanto, também nada mais do que uma espécie das
minhas representações” (A370). A subclasse de minhas representações a qual
constitui objectos externos é distinguida por ser dada também no sentido
interno, pois como Kant afirma “as coisas exteriores existem, portanto, tanto
como eu próprio existo e estas duas existências repousam, é certo, sobre o
testemunho imediato da minha consciência, apenas com a diferença de que a representação
de mim próprio, como de um sujeito pensante, está simplesmente referida ao
sentido interno, mas as representações que designam seres extensos estão
referidas também ao sentido externo.”(A371). Porque minhas representações são
conhecidas imediatamente no sentido interno, daí se segue que meu conhecimento
de objectos externos deve estar em pé de igualdade com meu conhecimento de meus
estados mentais. objectos internos e externos diferem no tipo de representações
que são, mas meu acesso a eles é o mesmo nos dois casos: a existência de
objectos externos “é provada da mesma forma que a existência de mim mesmo como
um ser pensante” (A370). Kant ainda adiciona que “não tenho mais necessidade de
proceder por inferência com respeito à realidade dos objectos externos do que
com respeito à realidade do objecto do meu sentido interno (dos meus
pensamentos), pois tanto num caso como noutro esses objectos são apenas
representações, cuja percepção imediata (a consciência), é, ao mesmo tempo, uma
prova suficiente de sua realidade”(A371).
O
problema com esse argumento, Kant descobriu, é que ele permite ser lido como
uma declaração do idealismo de Berkeley: ele ecoa a afirmação de Berkeley que o
cepticismo desaparece tão logo se percebe que não há nada mais sendo um objecto
empírico que sendo um certo tipo de ideia na mente. Então, o que Kant parecia
ter conseguido no Quarto Paralogismo não é um argumento contra o idealismo
empírico, mas um argumento contra a forma cartesiana de idealismo empírico do
ponto de vista do idealismo empírico de Berkeley, ou seja, temos aí uma
refutação berkeleyana a Descartes.
Kant
repudiou veementemente essa sugestão (como podemos ver no Apêndice aos Prolegómenos,
372-80). Dessa forma, é razoável supor que Kant desejava na segunda edição reafirmar
a tarefa anti-séptica do Quarto Paralogismo com a Refutação, pensando que iria
desencorajar a falsa assimilação do idealismo meramente empírico ao
transcendental.
Na actualidade,
os comentadores de Kant vêem essa substituição do Quarto Paralogismo em favor
da Refutação na segunda edição como a marca de um novo, e extremamente
importante, avanço na filosofia kantiana. Sebastian Gardner, por exemplo,
defende que os objectos externos, que na Refutação são pressupostos para a
auto-consciência empírica, devem ser correctamente considerados como coisas em
si mesmas. Para sustentar essa leitura, Gardner afirma que deve ser observado
que na Refutação não há qualquer apelo à idealidade transcendental de objectos
externos.
Alguns
intérpretes da linha analítica, por sua vez, afirmam que a Refutação é a
culminação da Analítica, na qual a verdade epistemológica contida na teoria
kantiana da experiência é libertada de suas amarras idealistas. Segundo essa
interpretação, a Refutação seria uma prova do realismo em oposição à metafísica
berkeleyana, que Kant tinha defendido na primeira edição: sua introdução seria
perfeita para a admissão de que o idealismo transcendental não é distinto do
idealismo de Berkeley. Na Refutação, portanto, Kant romperia consciente ou inconscientemente
com o idealismo transcendental.
Se essa
segunda interpretação aqui por mim apresentada é justificável, isso depende
muito de como o capítulo da Refutação é encarado pelos comentadores,
principalmente no que diz respeito a ‘que peso eles dão ao idealismo
transcendental’. Se a doutrina da Refutação é tida como insatisfatória, ou como
próxima do idealismo de Berkeley, tal como seus críticos alegam, então haverá
boas razões para considerar Kant como alguém que não tinha uma ideia muito
clara a respeito do que ele mesmo defendia, ou que forçou a si mesmo a dar um
passo além das pernas na Refutação.
Mas o
que nos interessa aqui é saber se há uma leitura plausível da Refutação que a
torna consistente com o idealismo transcendental. E há. Lendo a Refutação
atentamente, sugere Gardner, veremos que ela desempenha um duplo papel no
capítulo dos Paralogismos. Um interno a teoria kantiana da experiência, e o
outro, externo. No que diz respeito ao primeiro, a Refutação é uma extensão directa
da Dedução e Analogias, para as quais a Refutação serve como uma espécie de
Apêndice, pois faz uma série de observações importantes ao argumento anterior:
o permanente exigido pela primeira analogia é especificamente determinado como
material (B277-8); a dependência da auto-consciência empírica em relação a
experiência externa é estabelecida, e a experiência externa, que já fora dada
como certa na Analítica , é demonstrada necessária.
Em sua
dimensão externa, afirma Gardner, a Refutação, faz algo diferente. Novamente
aqui ela não é independente do idealismo transcendental. Nessa dimensão ela direcciona
um desafio maior ao idealista empírico, a saber, explicar a base na qual ele
faz os juízos sobre sua própria história mental que ele afirma como
privilegiada sobre todas as outras. Se o idealista empírico recusa o desafio,
afirmando que a auto-consciência empírica é um absoluto dado, então ele se
torna dogmático; mas se ele o aceita, então estará lidando com os argumentos da
Analítica. E o idealismo transcendental será nomeado como um meio de defender o
realismo empírico.
Sob esse
prisma, a Refutação é consistente e contínua com o Quarto Paralogismo (conforme
Kant mostra em Bx[n]): ela acrescenta algo importante, a saber, a demonstração
de que a intuição externa é necessária. Contudo, tanto a Refutação como o
Quarto Paralogismo mostram que o idealismo transcendental é imprescindível para
refutar o céptico. Além do mais, ao analisarmos o idealismo transcendental tal
como apresentado no Quarto Paralogismo, verificaremos que ele não pode ser
interpretado como idealismo berkeleyano.
A
Refutação do Idealismo colocará em xeque a tese cartesiana da prioridade
epistêmica do ‘cogito’ enquanto uma consciência pretensamente imediata de meus
estados. A tese da Refutação, é importante salientar, vale para a consciência
empírica que um sujeito tem de seus estados, não para a consciência de si como
um sujeito numericamente idêntico desses estados, a qual, diz Kant, não só não
é empírica, mas a priori, como também é transcendental e originária relativamente
ao conhecimento de objectos externos[29].
A razão disso é que os objectos espaciais são eles próprios o resultado da actividade
de um sujeito consciente de si mesmo, quer dizer, a consciência que um sujeito
tem de seus estados é dependente do conhecimento de objectos externos. Na actividade
de julgar, por exemplo, vemos que essa só é possível através do acto pelo qual
o sujeito traz cognições dadas à unidade da apercepção, ou seja, à unidade da
consciência de si.
Contudo,
na “Refutação do Idealismo” (CRP B), será abandonado não apenas o ponto de
partida da filosofia da consciência cartesiana, como também a tese do
fenomenismo. De fato, ‘a prova do mundo exterior’ é uma refutação dos
princípios da filosofia da consciência cartesiana, ou mais especificamente, das
filosofias que admitem um acesso prioritário aos estados de consciência pelo
sujeito desses estados e um acesso mediato e problemático aos objectos
externos. Porém, a Refutação tem apenas como ponto de partida o conhecimento e
não a consciência indubitável de estados internos, ou seja, tem como ponto de
partida a experiência interna.
Resumidamente
poder-se-ia dizer que em [A] para defender a tese fenomenista, Kant partiu ou
assumiu a tese da filosofia da consciência cartesiana, enquanto na Refutação do
Idealismo ele rompe com a tese fenomenista tanto quanto com os princípios da
filosofia da consciência cartesiana. A premissa inicial cartesiana não sendo
aceite nem como hipótese nem como uma asserção correcta, tornou (do ponto de
vista da ‘prova do mundo exterior’) a tese fenomenista desnecessária. Contudo,
foi necessário distinguir não só as representações subjectivas de
representações objectivas (como já fizera no 4º paralogismo), como também
distinguir entre representações de coisas em mim de coisas fora de mim. Kant
demonstrou que coisas fora de mim seriam condições das representações de
objectos externos.
Mas como
o problema do mundo externo ainda se põe e todo esse processo de refutação do
quarto paralogismo ainda é necessário, se Kant já havia declarado (A 356-60)
que a discussão entre o dualismo e o materialismo no que diz respeito ao
estatuto ontológico do eu ou alma já fora dissolvida? Desde que o eu não pode
ser conhecido como simples ou como existindo independentemente de objectos
externos, incluindo o corpo, a discussão cartesiana sobre o dualismo
psico-fisico entraria em colapso. O facto de que o eu não pode ser conhecido
como imaterial implica que também não pode ser conhecido como material: quando
afirmo que eu não posso ser uma substância, também não posso afirmar que sou
uma substância idêntica ou distinta de meu corpo, ou seja, não há nenhum
conhecimento de minha relação com meu corpo. Isso é o que tínhamos até o quarto
paralogismo. Contudo, não é apenas isso que o quarto paralogismo demonstra, mas
ele ainda se faz necessário porque ele ultrapassa a linha da simples crítica ao
racionalismo para permitir o advento do Idealismo Transcendental, dado que é
quase trivial demonstrar que após a dissolução da ideia de uma substância
absoluta, não existe o comércio psico-físico. No entanto, Kant ainda tinha que
demonstrar que a percepção de objectos externos é indubitável porque os objectos
externos são representações e as representações são imediatamente percebidas,
mostrando assim que um Realismo Transcendental é insustentável e oferecendo o
suporte final a sua refutação a tese racionalista da alma como uma substância
absoluta.
2.7 - Padrão dos Paralogismos:
A
crítica de Kant parece seguir um padrão familiar: o facto de que coisas fora de
mim no espaço são coisas que “eu penso” como distintas de mim mesmo é uma
questão analítica; mas seria uma informação sintética que eu deva existir sem
elas[30].
Sumariamente,
a psicologia racional está impregnada por uma má interpretação do “eu penso” que
é toda a base, limite e alcance de sua empreitada. Todo o conhecimento que nós
podemos de facto derivar do “cogito” está contido nas seguintes proposições: 1)
eu penso; 2) como sujeito; 3) como sujeito simples; 4) como sujeito idêntico em
todo estado de meus pensamentos (B 419).
É
verdade, segundo Kant, que “algo real” é dado no eu penso; algo que realmente
existe (B423n). Mas tudo o que o “eu penso” expressa é uma intuição empírica
indeterminada, de algo do qual não temos nenhum conceito determinado. Seu conceito
é meramente um algo em geral que não pode ser intuído (A400). Esse algo não
pode, segundo Kant, ser reconhecido tanto como uma aparência quanto como uma
coisa em si (B423n).
Igualmente
devemos reconhecer que o cogito é empírico e a posteriori (B423n). Mas o ‘eu
penso’ em si mesmo precede esse material empírico e é puramente formal,
intelectual. Assim, o cogito não responde a pergunta que a psicologia racional
faz. A única forma de conhecimento que podemos ter de nós mesmos é empírica, só
podemos nos conhecer enquanto fenómenos e uma investigação empírica do eu não
pode fazer parte do escopo de psicologia racional, a qual por definição não se
dedica aos fenómenos internos do sujeito.
A
demonstração dos paralogismos serve então para provar que a empresa da
psicologia racional de constituir-se como ciência é fadada ao fracasso, visto
não ter um objecto de estudo tal como esta reclamava ter. Não temos acesso epistémico
à alma, se é que ela existe. Nosso eu, segundo Kant, não denota um substrato
numénico, mas uma unidade formal, uma função lógica que não serve para provar a
existência por meio da consciência. Não é uma categoria entre as categorias,
pois que não é uma substância. Serve, segundo Kant, para “apresentar todo o
nosso pensamento como pertencente à consciência (CRP A341/B400). A proposição
“eu penso” não é uma experiência, tampouco é, ao contrário das categorias, uma
condição de possibilidade dos objectos, mas a “forma da apercepção que pertence
a toda a experiência e a ela precede” (A354). Kant também diz que “de tudo isto
se vê que a psicologia racional deve sua origem a um simples mal-entendido. A
unidade da consciência, que serve de fundamento às categorias, é tomada aqui
por uma intuição do sujeito enquanto objecto, a que se aplica a categoria da substância.”(B421-22).
Conclusão: Kant
metafísico
Considerando
o problema da interação corpo-mente, e como esta discussão estava sendo
arduamente debatida por muitos filósofos naquela época, é interessante notar
como Kant achava que podia lidar com essa questão muito bem e (relativamente)
facilmente através dessas respostas. Acredito que suas concepções aqui apenas
reforçam a impressão racionalista que eventualmente pode-se ter da discussão
geral da interacção. E isso principalmente porque num determinado ponto dessa
discussão em K3, Kant diz que a acção do corpo na alma não precisa ser “ideal”
porque esta é tão genuína quanto a acção do corpo sobre o corpo. A esse
respeito Kant diz que “o corpo como fenômeno não está em comunidade com a alma,
mas antes é uma substância distinta da alma, cuja aparência é chamada corpo.
Esse substrato do corpo é uma determinação externa da alma, mas como esse commercium
é constituído, a nós não é dado saber. No corpo nós conhecemos meras
relações, mas não conhecemos o interno (o substrato da matéria). O qua
extensum não age sobre a alma, caso contrário ambos correlata teriam
de ser no espaço, portanto alma seria um corpo. Se nós dizemos que o
inteligível do corpo age sobre a alma, então isso significa que este númeno do
corpo externo determina a alma, mas isso não pode ser (...) Essa determinação o
autor (Baumgartem) chama de influxus idealis, mas este é um influxus
realis (...)”. Ainda quanto à relação corpo-alma, Kant prossegue em outra
ocasião “Como que a alma está in commercio com o corpo? Commercium é
a influência recíproca entre substâncias, embora corpos não sejam substâncias,
mas apenas aparências. Portanto, nenhum real commercium existe nesse
caso”. (L2, 28:591) E da mesma forma na Metafísica Mromgovius, Kant afirma que
o corpo é um fenômeno assim como suas propriedades, mas não estamos
familiarizados com seu substrato. Por isso como se daria o comércio corpo-alma,
Kant afirma que isso remontaria a questão de como substâncias em geral podem
estar em comércio. O que parece não resolver muito bem a questão.
No final
devemos decidir se para Kant substâncias fenomênicas realmente são substâncias
genuínas na interação ou se elas não são tal como essas lições apontam.
Acredito que tenderíamos a dizer que sim, pois na Crítica, Kant reforça
esse ponto dizendo que “a matéria, cuja unidade com a alma levanta tão grandes
dificuldades, não é outra coisa que uma simples forma ou um certo modo de
representação de um objecto desconhecido, formado por aquela intuição que
designamos por sentido externo(...) a matéria não significa uma espécie de
substância tão inteiramente diferente e heterogênea ao objecto do sentido
interno (alma).” (A386). Nesse sentido que acredito que mesmo após a virada
crítica (e mais as evidências dessas lições) Kant não parecia disposto a romper
totalmente com a ontologia tradicional. Não é, portanto, acidental que num
certo momento o idealismo transcendental fora definido como a visão de que o
fenômeno não é substância, mas requer um substrato numênico. (D, 28:682).
Assim, devemos ter em mente que ao passo que sob certos aspectos Kant se
diferenciava de seus predecessores dogmáticos, por outro lado ele não parecia
estar disposto a desistir das implicações ontológicas do idealismo
transcendental, algo exigido para a constituição de uma metafísica totalmente
não-racionalista.
Mesmo,
operando uma intensa crítica à Psicologia Racional, Kant manteve-se fiel à
metafísica tradicional. Prova disso é que, ele quis depois da virada crítica,
“depurar” a metafísica. Kant mostrou que ela não podia ser uma ciência, que as
disputas e inconclusões em seu campo se davam exactamente por ela não gozar
desse status de conhecimento certo e necessário. O Kant crítico já aponta isso
no Prefácio à segunda edição da Crítica. Já no prefácio à Dialéctica
Transcendental, Kant afirma que a metafísica é uma natural e inevitável
produção do pensamento humano. A alma não pode ser conhecida dada a estrutura
de nosso aparelho cognitivo, que conhece apenas o que lhe aparece como fenómeno
dentro dos limites do tempo e espaço e das categorias, mas a alma, bem como as
demais Ideias da Razão podem ser pensadas. Ora, Kant deslocou a problemática, e
conferiu à metafísica tradicional um patamar mais singelo. As Ideias da Razão
não são mais objectos de conhecimento da razão pura, mas objectos da razão
prática, são princípios regulativos da acção humana no mundo. Kant refutou a
noção de substancialidade, por exemplo, no que diz respeito ao conhecimento
dessa noção, mas a manteve no nível da ética. Por isso, em momento algum ele se
desfez das Ideias da Razão Pura. Ao contrário, apenas impõe limites ao
conhecimento humano e diz que essas Ideias transcendem esse limite. Não podemos
conhecer Deus, a alma ou o mundo enquanto totalidade metafísica, mas é próprio
da natureza humana, conforme Kant aponta, lançar-se à reflexão de tal forma
para além dos limites do aparente, que inevitavelmente chegamos a essas Ideias.
Mas a questão é, conhecer a alma, por exemplo, ou no caso pretender conhecê-la,
leva a razão a produzir paralogismos; porém, nos é permitido pensar sobre a
alma, pois disso não decorre nenhuma implicação negativa. Ora, isso mostra que
Kant ainda mantém-se fiel a toda estrutura da metafísica tradicional. Ele
apenas a transporta para o que acredita ser o seu verdadeiro domínio, mas não a
refuta. Essa nunca foi sua pretensão. Kant era ele mesmo, no fim, um grande
metafísico que ao notar as disputas e inconstâncias em seu terreno, resolveu
mostrar que ela apenas estava ocupando o patamar errado. Assim, a metafísica
tradicional, bem como as Ideias da Razão que a compõem, são rearranjadas de
forma a serem preservadas. Por isso Kant não desiste das implicações
ontológicas do idealismo transcendental. Porque ele não quer compor uma
metafísica não-racionalista, mas apenas mostrar que as discussões inférteis no
campo da metafísica serão totalmente extintas, ao se estabelecer de uma vez o
domínio legítimo de actuação desta, que, para todos os efeitos, não é o do
conhecimento científico.
Bibliografia
1
- Obras de Kant
Crítica
da Razão Pura. Trad.
Manuela P. dos Santos e Alexandre F. Morujão. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
2001.
Escritos
pré-criticos.Trad.Jair
Barboza. São Paulo:Editora Unesp, 2005..
Prolegômenos
a toda metafísica futura que queira apresentar-se com ciência.Trad. Artur Morao. Lisboa:Edições
70, 2003.
2
- Outras obras
DELEUZE,
Gilles. A filosofia crítica de Kant. Trad. Germiniano Franco. Lisboa:
Edições 70, 1994.
DELEUZE,
Gilles.Para ler Kant. Trad.de Sonia Dantas Pinto Guimarães.Rio de
Janeiro:Livraria Francisco Alves Ed.,1976.
DREHER,Edmundo.
A impossibilidade da metafísica na Crítica da Razão Pura: ensaio de síntese
e análise. Curitiba: Edições Paulinas,1960.
GALEFFI,
Romana. A Filosofia de Immanuel Kant.
Brsília: UNB, 1986.
LANDIM,
Raul Filho.Do “eu penso” cartesiano ao “eu penso” kantiano in Studia
Kantiana, São Paulo:vol. 1, n. 1, 1998.
LANDIM,
Raul Filho.Descartes: Idealista empírico e realista transcendental?in
Síntese Nova Fase, Belo Horizonte:vol. 23, n. 74, 1996.
[1] Kant, Immanuel - 22/4/1724,
Königsberg, Prússia (actual Kaliningrad, Rússia) - 12/2/1804, Königsberg,
Prússia (actual Kaliningrad, Rússia)
"Age
de maneira tal que a máxima de tua acção sempre possa valer como princípio de
uma lei universal." Assim o filósofo Immanuel Kant formulou o
"imperativo categórico". Ao buscar fundamentar na razão os princípios
gerais da acção humana, Kant elaborou as bases de toda a ética moderna. Immanuel
Kant era filho de um pequeno artesão e passou toda a vida em sua pequena cidade
natal, Königsberg. Estudou no Colégio Fredericianum e na Universidade de
Königsberg. Em 1755, doutorou-se em filosofia. Depois de alguns anos
trabalhando como preceptor para filhos de famílias abastadas, passou a dar
aulas privadas na universidade. Em 1770, tornou-se catedrático em matemática e
lógica na Universidade de Königsberg. Kant era conhecido por ser um homem
metódico e de saúde frágil. Não se casou nem teve filhos, dedicando toda sua
vida à elaboração de uma das obras mais importantes da história da filosofia. Ao
estudar a questão do conhecimento, investigando seus limites, suas
possibilidades e suas aplicações, Kant elaborou sua obra capital, a "Crítica da Razão Pura", publicada em 1781. O filósofo também se
ocupou do problema da moral. A "Crítica da Razão Prática", publicada
em 1788, discute os princípios da acção moral, a acção do homem em relação aos
outros e a conquista da felicidade. Kant tornou-se um filósofo respeitado e
conhecido. Contudo, devido a suas ideias sobre religião, foi proibido de
escrever ou dar aulas sobre assuntos religiosos pelo rei Frederico Guilherme
II, da Prússia, em 1792. Cinco anos depois, com a morte do rei, Kant viu-se
desobrigado de obedecer à censura, publicando um sumário de suas ideias
religiosas em 1798. Além de obras sobre o conhecimento, a moral e a religião,
Kant escreveu várias obras sobre estética, sendo a mais importante a
"Crítica da Faculdade de Julgar". Kant faleceu em 1804, de uma doença
degenerativa, dois meses antes de completar 80 anos.
[2] Um paralogismo é um raciocínio falso, feito de boa fé por falta de
consciência de sua falsidade. Paralogismo (do grego antigo
παραλογισμός, "reflexão", "raciocínio") é um raciocínio falaz, ou seja, falso mas que tem
aparência de verdade. Para alguns, o paralogismo é diferente do sofisma, pois não é
produzido de má-fé, isto é, não é intencionalmente produzido para enganar. Para
Aristóteles, qualquer falso silogismo era considerado
um paralogismo, pois contém obrigatoriamente uma premissa ambígua.
[3] A esse respeito, Graham Bird em ‘O Revolucionário
Kant: Um comentário à Crítica da Razão Pura’ , admite que existem duas
interpretações acerca da obra de Kant, uma tradicionalista e outra
revolucionária que se originam principalmente consideradas as ambiguidades
entre as duas edições da Crítica da Razão Pura.
[4] Walsh,
(1983), p.169.
[5] Bennett, (1974) p
.66
[6] Brook, (1994) p.154
[7] Landim, (1998)
p.289
[8] No presente artigo só são apresentadas as
primeiras duas partes aqui referidas, faltando as últimas duas e a conclusão (a
apresentar proximamente) de todo um trabalho.
[9] Isso significa que é uma ilusão que diz
respeito às nossas condições de possibilidade de conhecimento.
[10] Para Kant um conceito (Begriff) é síntese das
representações da intuição, e por meio deles é que se tem experiência e
conhecimento.
[11] Kant toma emprestado de Platão a palavra ideia
para designar os conceitos puros da razão. E, na primeira parte da dialéctica
transcendental, que trata “dos conceitos da razão pura”, ele insiste longamente
na diferença entre conceitos e ideias.
[12] Categorias são as formas do nosso entendimento
pelas quais os objectos da experiência são estruturados e ordenados.
[13] As doze categorias ou conceitos puros do
entendimento que se classificam quanto à Quantidade: unidade, pluralidade,
totalidade; Qualidade: realidade, negação, limitação; da Relação: Da inerência
e subsistência, da causalidade e dependência, da reciprocidade; Modalidade:
possibilidade -impossibilidade, existência-inexistência,
necessidade-contingência (A80-1) são modos de unificação do múltiplo, modos de
funcionamento do pensamento. As categorias são as formas pelas quais nosso
pensamento organiza a multiplicidade caótica que nos é dada a partir da
experiência sensível.
Nota-se,
então a aplicação indevida das categorias à alma, uma vez que esta por não
fazer parte da experiência humana não pode ser descrita ou definida como tal.
[14] Na Crítica da Razão Pura, o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) tinha um problema a resolver, que dizia
respeito à seguinte questão: como posso
obter um conhecimento seguro e verdadeiro sobre as coisas do mundo? A
resposta de Kant iria mudar o rumo da Filosofia Ocidental. Duas escolas
filosóficas, tradicionalmente, respondiam de formas diversas ao problema do
conhecimento. Para os filósofos racionalistas (Platão, Descartes, Leibniz e Espinosa), todo conhecimento provém da razão, enquanto que,
para os empiristas (Aristóteles, Hobbes, Locke, Berkeley e Hume), ao contrário, somente os dados da experiência sensível forneceriam as
bases para o conhecimento humano. Tanto em um como em outro caso, surgem
obstáculos. A razão especulativa,
na medida em que deixa de validar suas investigações em testes práticos,
torna-se dogmática. Já o empirismo encontra oposição no cepticismo, que argumenta que a
Natureza é o reino do contingente
e, por esta razão, não pode ser fonte de conhecimento universal.
O filósofo
inglês David Hume (1711-1776), cuja
obra Kant afirma tê-lo acordado do "sono dogmático", colocou sob
suspeita o princípio de causalidade, que determina que, dado uma causa x,
tem-se um efeito y. Por exemplo, tenho uma pedra em minha mão e a solto
de certa altura (causa), tendo como consequência sua queda no chão (efeito).
Segundo Hume, não existe nada na causa (solto a pedra da mão) que contenha a
relação objectiva de seu efeito (a queda no solo). Por mais vezes que eu repita
a experiência, nada no mundo me dará a certeza de que a pedra cairá e não
levitará, por exemplo. Portanto, conclui o filósofo inglês, a causalidade não
está no mundo, mas é produto de nossos hábitos, ou seja, de tantas vezes ver a
pedra cair ao ser solta, acreditamos que haja uma relação causal nos objectos,
quando não passa de uma espécie de condicionamento psicológico.
A priori,
a posteriori, juízo analítico e juízo sintético - Kant
também vai se voltar para o sujeito em sua réplica ao cepticismo humeano,
mas revestido de um carácter lógico e transcendental (e não psicológico, como
em Hume). Vamos ver como ele formula a questão nos conceitos de a priori, a posteriori, analítico e
sintético. Um
conhecimento que seja totalmente independente dos sentidos é chamado a priori.
São, por exemplo, equações matemáticas, que posso fazer mentalmente sem me
apoiar em qualquer evidência material. Um conhecimento que possui sua fonte na
experiência é dado a posteriori, como as leis da física clássica, que
necessitam de testes práticos para serem comprovadas. Quando emito um juízo em
que o predicado está contido no sujeito, ele é chamado juízo analítico. Por
exemplo, quando digo "Azul é uma cor", o predicado "cor" já
é uma qualidade do sujeito "azul" e a informação, por isso, é
redundante. Mas quando faço um juízo em que um predicado é acrescentado ao
sujeito, ele é chamado sintético. Por exemplo, na frase "A cadeira de minha
sala é azul", acrescento ao sujeito "cadeira de minha sala" o
predicado "azul" (afinal, ela poderia ser verde, vermelha, etc.). É
uma informação nova, pois você poderia imaginar que a cadeira fosse de qualquer
outra cor. Todos os juízos da experiência são sintéticos, uma vez que, para
obter um juízo analítico, não é preciso sair do próprio conceito, isto é,
recorrer à experiência (não preciso sair de "azul" para saber que é
uma cor, mas preciso ver a "cadeira" para saber de que cor ela é). Agora
podemos entender a questão central da Crítica da Razão Pura, que é
"Como são possíveis os juízos sintéticos a priori?". Ou seja, como
podemos ter um conhecimento a priori de questões de facto, de coisas do mundo?
Em outros termos, como posso, observando um facto A, dizer algo a respeito de
um facto B, uma vez que somente tenho a experiência deste facto A? Para voltar
ao exemplo de Hume, como, tendo uma pedra em minha mão (facto A), antes mesmo
de soltá-la sei que, ao soltá-la, ela irá cair no solo (facto B)? (Lembrando
que, para Hume, não há na Natureza nada que demonstre a relação causal entre A
e B.) Formulado ainda de outra maneira: como posso, ao observar factos
particulares (uma pedra que cai), tirar daí uma regra de carácter universal (a
lei da gravidade), que seja aplicada a todos outros factos da mesma natureza?
Sujeito transcendental - Kant chamou de "revolução
copernicana" sua resposta ao problema do conhecimento. O astrónomo
Nicolau
Copérnico (1473-1543) formulou a teoria heliocêntrica
- a teoria de que os planetas giravam em torno do Sol - para substituir o
modelo antigo, de Aristóteles e Ptolomeu, em que a Terra ocupava o centro do
universo, o que era mais coerente com os dogmas da Igreja Católica. Como pode
ser constatado pela observação directa, o Sol se "levanta" e se
"põe" todos os dias, o que tornava óbvio, aos antigos, que a Terra
estava fixa e que os astros giravam em torno dela. Copérnico demonstrou que
este movimento é ilusório, porque, na verdade, a Terra é que gira em torno do
Sol. Kant propôs inversão semelhante em filosofia. Até então, as teorias
consistiam em adequar a razão humana aos objectos, que eram, por assim dizer, o
"centro de gravidade" do conhecimento. Kant propôs o contrário: os objectos,
a partir daí, teriam que se regular pelo sujeito, que seria o depositário das
formas do conhecimento. As leis não estariam nas coisas do mundo, mas no
próprio homem; seriam faculdades espontâneas de sua natureza transcendental.
Como Kant afirma no prefácio da segunda edição da Crítica da Razão Pura:
"Até agora se supôs que todo nosso conhecimento tinha que se regular pelos
objectos; porém todas as tentativas devem, mediante conceitos, estabelecer algo
a priori sobre os mesmos, através do que ampliaria o nosso conhecimento,
fracassaram sob esta pressuposição. Por isso tente-se ver uma vez se não
progredimos melhor nas tarefas da Metafísica admitindo que os objectos têm que
se regular pelo nosso conhecimento, o que concorda melhor com a requerida
possibilidade de um conhecimento a priori dos objectos que deve estabelecer
algo sobre os mesmos antes de nos serem dados". O que Kant quer dizer é
que o sujeito possui as condições de possibilidade de conhecer qualquer coisa.
Ele possui as regras pelas quais os objectos podem ser reconhecidos. Não
adianta buscar essas regras no mundo exterior, pois se cairia no problema de
Hume. O mundo
não tem sentido a não ser que o homem dê algum sentido a ele. O
que conhecemos, então, é profundamente marcado pela maneira - humana - pela
qual conhecemos. O computador no qual escrevo, a janela do escritório que me
permite ver todas as coisas do mundo, tudo isso é matéria de conhecimento não
porque exista um Deus que me faculte entender as leis dos objectos por meio da razão
(como no caso de filósofos racionalistas) ou porque estes objectos sejam
imprimidos em minha mente pela percepção (empirismo), mas porque eles são
capturados por formas lógicas no sujeito.
Coisa-em-si -
Mas ao voltar o foco para o sujeito que conhece, que "constrói"
o mundo, é bloqueado todo pretenso acesso à essência dos objectos do mundo. Só
temos acesso às coisas enquanto fenómenos para uma consciência. O que a
realidade é, em si mesma, o que Kant chama de coisa-em-si, não é matéria
de conhecimento humano, sendo, portanto, incognoscível (aquilo que não pode ser
conhecido). A coisa-em-si não pode ser conhecida mas pode ser pensada, desde
que seja contraditório (conhecer, em Kant, diz respeito ao que é possível de
ser objecto da experiência).
Três objectos de estudo da metafísica podem
ser pensados mas não conhecidos: Deus, a imortalidade da alma e a liberdade.
Deus e a alma não podem ser conhecidos porque não aparecem como fenômenos no
espaço e no tempo. A liberdade, porque contraria o princípio de causalidade:
liberdade é aquilo que não tem causa, e o que é absolutamente livre não pode
ser matéria de conhecimento. São, no entanto, postulados para a ética de Kant.
A filosofia crítica de Kant consiste, desta
forma, em impor à razão os limites da experiência possível. O filósofo alemão
pretende, com isso, fornecer rigor metodológico à metafísica, livrando-a de seu
carácter dogmático e trazendo-a para o rumo seguro da ciência. Este método que
analisa as possibilidades do conhecimento a priori do sujeito, dentro dos
limites da experiência, é chamado de transcendental.
[15] Vide especialmente Système de philosophie de
Sylvain Régis e L´invention de la conscience de E. Balibar.
[16] Ideia é um termo que foi amplamente usado por
diversos pensadores no decorrer da história da filosofia. De Platão a Kant,
passando por Descartes, Leibniz, Locke e Reid, esse termo, embora tenha tido
acepções específicas dentro de determinados sistemas foi usado na Grã-Bretanha
como descrição de percepções e conhecimento. Em Locke, o termo é adoptado pelo
autor por ser “a mais indicada para significar seja o que for que consista no
objecto do entendimento quando um homem pensa” (Ensaio Sobre o Entendimento
Humano 1.1.8). Uma ideia que está na mente é, para Locke ou uma percepção real
ou fora uma que assim está na mente pela memória e que por esta pode voltar a
ser uma percepção real (1.4.20).
[17] Apercepção é um vocábulo que Kant toma de
Leibniz (vide especialmente Novos ensaios sobre o entendimento humano de 1765 e
seu uso na Monadologia de 1714). Que do francês quer dizer aperceber-se, dar-se
conta de. A apercepção para Leibniz tal como vemos n´Os Princípios de natureza
e graça seria o “estado interno da mônada representando coisas externas (...),
é consciência ou conhecimento reflexivo desse estado interior, e que não é dada
a todas as almas ou a quaisquer almas o tempo todo”. (p. 637).
[18] Designa-se por figura
cada uma das formas que o silogismo pode tomar derivado da posição do termo
médio como sujeito ou predicado das proposições. Existem apenas 4 figuras
possíveis para o silogismo categórico.
1ª.
Figura - O termo médio é
sujeito da primeira premissa e predicado da segunda premissa.
Ex. Todo o homem é
mortal
Ora, António é homem
Logo, António é
mortal.
M - P
S - M
S - P
S- Sujeito de predicado
P- Predicado da
conclusão
M - Termo médio do
silogismo
2ª.
Figura
O
termo médio é predicado nas duas premissas
Ex.
Todo o homem é racional
O
cão não é racional
Logo,
o cão não é homem
P - M
S -M
S - P
3ª.
Figura
O
termo médio é sujeito nas duas premissas
Ex.
Todos os carbonos são corpos simples
Todos
os carbonos são condutores eléctricos
Logo,
alguns condutores de electricidade são corpos simples
M - P
M -S
S - P
4ª.
Figura
O
termo médio é predicado na primeira premissa e sujeito na segunda
Ex.
Os portugueses são homens
Os
homens são mortais
Logo,
alguns mortais são portugueses
P -
M
M -
S
S -
P
[19] A apercepção para Leibniz, conforme já
mencionamos, de quem Kant a adapta, era definida como “consciência ou
conhecimento reflexivo desse estado interior, e que não é dada a todas as almas
ou quaisquer almas o tempo todo”(Os princípios de natureza e graça,1976,p.637).
A apercepção do eu penso, não é do tipo transcendental, mas parece estar mais
próxima da noção de apercepção no sentido leibniziano, dado que para Kant, a
apercepção transcendental está disposta de acordo com as categorias do
entendimento e permite que as intuições pertençam a mim, de acordo com as
categorias, além de servir de base para a unidade de conceitos e intuições em
juízos, conforme nota anterior.
[20] Apesar de que na segunda edição da Crítica,
teremos uma reformulação do quarto paralogismo e o acréscimo da discussão a que
o quarto paralogismo leva contida na Refutação do Idealismo.
[21] Cabe aqui uma pequena elucidação sobre o que
sejam juízos sintéticos e analíticos. Juízos analíticos são aqueles em que o
predicado nada acrescenta ao sujeito, ou seja, uma proposição do tipo “Os
solteiros são não casados” seria um exemplo de proposição analítica, uma vez
que a ideia de não casado já está contida no conceito de solteiro. Esse é um
tipo de juízo explicativo e nada acrescenta ao conteúdo do conhecimento. Um
juízo sintético, ao contrário, é aquele que me oferece uma informação que não
se sabia antes e que o próprio sujeito do juízo por si só não nos fornece, ou
seja, um juízo sintético estende e amplia o conhecimento dado. Um exemplo
seria: “A água ferve a 100° centígrados”. Esse predicado não está contido no
conceito dado, por isso a proposição é sintética.
[22] Kant e a Crítica da Razão Pura, 1999.
[23] Aquilo que pertence aos sentidos internos e é
imediatamente percebido.
[24] A 373
[25] vide A 374-5.
[26] Kant também descreve a filosofia de Berkeley
como “ idealismo místico e visionário” nos “Prolegômenos a toda Metafísica
Futura, 293 e 374.
[27] Devo apontar que aqui é relevante para a
exclusão kantiana de um permanente puramente temporal em sua presente doutrina
porque o tempo por si só não pode ser percebido, nós podemos fazer juízos
temporais somente através da pressuposição do espaço: “nós somos incapazes de
perceber qualquer determinação do tempo salvo através de mudanças nas relações
externas” (B277 e também B291-3).
[28] Contudo, isso não significa que toda
representação intuitiva de coisas externas seja verídica. Sobre como
distinguimos entre percepções verídicas e não verídicas ver A376, Bxli, B279,
A492/B520-1.
[29] Sobre esse ponto, Guido Antonio de Almeida em
seu artigo “A Dedução Transcendental: o cartesianismo posto em questão”
esclarece que, desta forma, não é o eu da consciência transcendental, mas o eu
da consciência empírica que é e está em contacto com o mundo exterior.
[30] Na primeira edição, Kant afirma que a
psicologia racional está comprometida com uma visão do auto- conhecimento como
uma espécie de conhecimento privilegiado em relação aos objectos externos, o
que faz do cepticismo algo quase que inevitável: a proximidade epistémica do eu
afirmada na psicologia racional empurraria os objectos externos para longe de
nosso alcance. Teríamos então uma implicação de cunho solipsista presente tanto
na primeira quanto também na segunda edição. Mas, além disso, Kant substitui
essa questão mais epistemológica pela doutrina cartesiana na segunda edição.
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