Estética Moderna
Antes de ter a inspiração que lhe indicou a possibilidade
de refundar a filosofia, Immanuel Kant (1724-1804) poderia considerar seus artigos
assistemáticos ou um tanto superficiais, mas não poderia dizer que não eram claros.
Com o criticismo, entretanto, o rigor e a profundidade de sua argumentação exigiram
o sacrifício da clareza em troca de um detalhamento do raciocínio que beirava a
obscuridade. Por conta da difícil leitura de sua obra crítica, poucos foram os que
compreenderam exatamente qual era a intenção de seu autor. Some-se a isso o voluntarismo
incentivado pela Revolução Francesa (1789), mais as idéias ainda vivas de Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778), e o campo estava aberto a todo tipo de especulação que resultou
no Idealismo Alemão ou no movimento romântico. A busca do absoluto por meio da reflexão
pura, apesar de ter sido condenada por Kant, foi uma tarefa que os românticos se
propuseram empreender com vigor, depois de Johann Gottlieb Fichte (1762-1814) ter
defendido um eu absoluto e a união entre sujeito e objeto em uma intuição
intelectual, totalmente contrária às teses kantianas - embora Fichte se considerasse
um adepto da sua doutrina, chegando mesmo seu estilo a ser confundido com o do filósofo
de Koenigsberg.
Friedrich Wilhelm
Joseph von Schelling (1775-1854) levou esse projeto mais adiante. Em 1800, publicou
seu Sistema de Idealismo Transcendental, onde adotou a concepção fichteana
de uma natureza como criação do sujeito, embora admitisse que o mundo pudesse existir
de forma autônoma em relação à consciência. Ao invés de um eu absoluto, pressupõe
uma identidade absoluta entre o desenvolvimento da natureza e a conscientização
progressiva do espírito em sua história. Entretanto, para que houvesse essa unificação,
seria preciso uma sensibilidade estética capaz de revelar o lado oculto do universo.
Em vista disso, ao homem caberia entrar em sintonia com o absoluto, evitando a falsa
compreensão de si mesmo como ilimitado, através de uma contemplação estética da
natureza.
Dono de um estilo
obscuro, Hegel escreveu com seu próprio punho Fenomenologia do Espírito (1807)
e Ciência da Lógica (em três volumes publicados entre 1812 e 1816). Com ajuda
de notas feitas por alunos de suas palestras e aulas, publicou em vida a Enciclopédia
das Ciências Filosóficas (1817) e a Filosofia do Direito (1821). Após
sua morte, provocada pelo contágio da epidemia de cólera que varreu Berlim em 1831,
foram editados seus Cursos de Estética (1835) e Filosofia da História
(1837), seu último texto importante. Ao todo, suas obras completas preenchem vinte
volumes que foram padronizados em Stuttgart, entre 1927 e 1930. Entre esses volumes,
encontram-se suas aulas sobre estética, cujas edições, por vezes, são conflitantes.
As Lições sobre
Estética foram editadas pela primeira vez em 1835, por Heirinch Gustav Hotho
(1802-1873), em três volumes e em 1842 foi publicada uma segunda edição revisada.
Em seu conteúdo, há trechos de notas manuscritas do próprio Hegel e transcrições
de alunos das preleções proferidas em 1823, 1826 e de 1828 a 1829. Inevitavelmente,
existem muitas paráfrases para resolver problemas de compreensão e compatibilidade
na mudança de ânimo do autor, ocorrida com a restauração da monarquia. Mas houve
quem não gostasse do trabalho. Insatisfeito como o resultado, Georg Lasson (1862-1932),
em 1931, preparou uma nova edição completamente nova do primeiro volume, intitulado:
A Idéia e o Ideal. O objetivo de Lasson era preservar o máximo possível das
idéias de Hegel, a partir da reprodução das lições de 1826, com algumas inserções
de 1823 e vários extratos da edição de Hotho. Infelizmente, o projeto não foi além
da Introdução e Primeira Parte do curso, devido à morte de Lasson, que não deixou
sucessor encarregado de concluir seu trabalho, interrompido um ano depois de iniciado.
Um Pouco de Fenomenologia
Apesar das dificuldades
óbvias de compreensão dos textos de Hegel, há em todos os seus livros – e a
Estética
não foge à regra – o fio condutor recorrente do processo histórico, através do qual
o espírito teria de percorrer para passar de um mero estágio de consciência sensível
até o autêntico saber de si mesmo. Em sua
Fenomenologia, Hegel, como tantos
outros antes e depois dele, tentou aproximar a filosofia da forma de fazer ciência
consagrada em seu tempo: uma investigação filosófica cujo objetivo último seria
encontrar a verdade. Para tanto, exigiu que a atenção fosse exclusivamente voltada
para a formulação do conceito, o modo pelo qual este é expresso por proposições
simples, que constituem a base de todo conhecimento científico. Antes disso, porém,
seria necessário ter a compreensão de que o conhecimento serve como instrumento
para apreensão do absoluto. Entretanto, à primeira vista, a verdade do saber a ser
investigada apresentaria uma separação entre o objeto que aparece para o sujeito,
por um lado como fenômeno, e, por outro, como coisa-em-si. Superar esse dualismo
era o caminho que precisava ser traçado pelo espírito [
1].
Nesse sentido, por
vezes o objeto surgiria como algo fora da consciência que está em um movimento dialético
que pode levar à contradição ou à descoberta do objeto como uma coisa nova e verdadeira.
A superação desse processo ambíguo faria que o que fosse verdadeiro atingisse sua
essência na
consciência como um ser concebido como ensimesmado [
2]. Quando a certeza
é construída sobre algo, chegar-se-ia à verdade pela identificação do objeto com
esta própria certeza e o reconhecimento da consciência de que isto é verdadeiro.
Na
autoconsciência, então, funda-se o reino da verdade propriamente dita.
Mas não basta que esta seja reconhecida apenas por si mesma. Seria necessário que
a autoconsciência fosse também reconhecida como tal por outras consciências semelhantes,
como em uma comunidade em que o espírito deixasse de ser subjetivo e passasse a
ter sua própria objetividade [
3]. Ao encontrar
a coisa em si mesma, ao mesmo tempo em que se vê como coisa em si, a autoconsciência
toma a coisa como verdade objetiva. Por conseguinte, toda realidade pode vir a se
tornar a verdadeira certeza no instante em que a razão se transforma em espírito
absoluto.
Sua essência espiritual
foi definida com substância ética; mas o espírito é a realidade ética.
É o si mesmo da consciência real, em que se enfrenta, o que melhor se enfrenta
a si mesmo, como mundo real objetivo, o qual, sem embargo, tem perdido para
o si mesmo toda significação de algo estranho, do mesmo modo que o si mesmo tem
perdido toda significação de um ser para si, separado, dependente ou independente,
daquele mundo. O espírito é a substância e a essência universal igual a si
mesma e permanente - o inabalável e irredutível fundamento e ponto de
partida do trabalho de todos - e seu fim e sua meta, como o em si pensado de
toda autoconsciência (...) (HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito, "O
Espírito", pp. 259-260).
Por
substância
ética, entenda-se a condição essencial em que se encontra o espírito quando
se realiza eticamente em uma sociedade de seres racionais, onde suas leis e valores
são reconhecidos imediatamente por todos semelhantes, tal como no
reino dos fins
kantiano. Em todo movimento para formação do saber de si, o espírito trabalha imerso
em sua história real, que termina quando o espírito alcança o elemento puro de sua
existência, como conceito de
ser-aí absoluto. Assim surge a ciência que faz
o movimento da forma pura deste conceito para a consciência. Entretanto, para superar
a alienação inicial convém que sucessivas etapas de conscientização ocorram até
que o espírito possa recomeçar sua formação plena a partir de si mesmo no estágio
mais elevado de seu progresso. Da perspectiva de um ser livre, mas contingente,
a história é a ciência do saber verdadeiro, onde o espírito absoluto, no final,
se encontra e acaba na "realidade, verdade e certeza de seu trono, sem o qual
o espírito absoluto seria a solidão sem vida" [
4].
Em sua Lógica,
Hegel aliava todo esse movimento histórico de conhecimento do espírito em si mesmo
à evolução de uma contínua alternância de oposições que se unem e reconciliam. As
contradições do mundo manifestam-se como contradições do espírito. Ou seja, as contradições
históricas percebidas no mundo seriam reflexos da desarmonia ou contradição do próprio
pensamento. Tese e antítese enfrentam-se para formar uma nova síntese
e assim por diante até que o movimento termine no desvelamento de toda realidade,
ao final. A unidade reconciliadora que encerra esse movimento dialético aparece
então no fim da história que é a realização completa do espírito absoluto. Um exemplo
de como isso ocorre aparece na Fenomenologia, em sua famosa metáfora da relação
entre "senhor e escravo". Tal relação surgiria como um estágio intermediário
da evolução do espírito, cuja consciência se percebe em parte livre e soberana (senhorio),
em parte ainda presa à luta pela sobrevivência (escravo). Entrementes, ao contrário
do que se sugere à primeira vista, a consciência do senhor é que depende da ação
e reconhecimento do escravo para manter sua soberania, enquanto o servo, embora
esteja ligado ao trabalho forçado, pode avançar no processo de conscientização ao
se reconhecer, no produto que realiza, como sustentáculo do senhor e de si mesmo.
Assim, o escravo poderia vir a se libertar, ao passo que o senhor estaria sempre
necessitando do reconhecimento de um subalterno. Ao emanciparem-se, os espíritos
passariam a se reconhecerem mutuamente como seres livres de uma comunidade de seres
racionais e não alienados pela escravidão.
Uma vez que seja
iniciada a caminhada para atingir o autoconhecimento, diversas fases de conscientização
- Consciência, Consciência de Si, Razão - deverão ser ultrapassadas até que a razão
compreenda o mundo circundante tal como ele é e a sua própria existência. Contudo,
a fenomenologia que formou primeiro o espírito subjetivo necessita realizar sua
plena liberdade na instância cultural que reúne a produção e o trabalho que transformam
a natureza em uma natureza humana. Deve avançar o espírito subjetivo até
o espírito objetivo que está no seio da sociedade e do Estado, onde se realiza
sua liberdade que é também sua verdade última. Em sua conscientização como parte
do mundo e da sociedade de seres autodeterminados e autoconscientes, que assim se
reconhecem, a realização plena de um ideal vem quando a própria razão livre é capaz
de conhecer a si mesma e o mundo como criação.
História e cultura
encontram-se, assim, em Hegel para realizarem a transformação e superação da alienação
inicial do sujeito. Da constituição de um Estado, onde o movimento cultural envolve
todo o direito e a moralidade social, o espírito objetivo - que se encontra na Filosofia
do Direito - transcende dessa fase intermediária para um estágio final ao qual
o espírito absoluto se reconhece como parte criadora do mundo. Por fim, o espírito
absoluto, em sua fase superior de autocompreensão pode abarcar o sentido estético,
a filosofia e a religião revelada como última tomada de sua consciência própria.
O Papel da Arte
Na
Fenomenologia,
o papel da arte não aparece dissociado da religião. Lá, tudo concorre para a necessidade
do espírito tornar-se absoluto, ao longo do seu desenvolvimento histórico. O artista
converte-se, então, em um trabalhador espiritual que transforma formas estranhas
do pensamento e da natureza em algo que promove a atividade autoconsciente do espírito.
Por meio da arte, o espírito poderia, em épocas de crise, exercer sua liberdade
artisticamente, até poder alcançar uma oportunidade de representação superior [
5].
Na história tecida
por Hegel, a primeira obra de arte teria surgido como abstrata. Em seguida, avançado
criando imagens de deuses. Mas quando assim procedia, no politeísmo, o artista não
conseguia se identificar com a essência da obra que ele mesmo criava. Além da imagem,
era preciso que uma linguagem apropriada para percepção do ser que estava ali presente
pudesse expressá-lo. Assim, através de hinos (poesia), a unidade do particular com
o universal pôde ser comunicada às outras almas existentes. Contudo, essa linguagem
não poderia ser externa ao artista, mas exigiria um entendimento interno para que
houvesse equilíbrio entre a unidade da essência espiritual e sua autoconsciência.
O conteúdo claro das manifestações artísticas facilitaria o movimento para o interior
da alma e o encontro do ser vivente que lá habita. Daí em diante, as particularidades
seriam superadas e feita a tomada de consciência universal da existência humana
[
6].
A unidade do artista
com sua obra e o espectador constitui uma ação de retorno ao universal e à certeza
de si mesmo que a autoconsciência intui. Graças à arte, o espírito conseguiria transformar
sua mera substância em um sujeito que trabalha a autoconsciência. A figura do deus
que lhe era externa passa ao seu interior e, então, a religião da arte chega à religião
revelada que levará adiante o progresso do espírito ao absoluto [
7]. A arte se insere
entre o espírito e o saber absoluto, fazendo a ligação entre ambos.
Assim, explica-se
o porque da Estética hegeliana considerar a arte apenas como um instrumento de transformação
do espírito que se eleva e sua vinculação à religião cristã. Algo que é reafirmado
na
Filosofia da História, onde se considera o deus cristão “infinitamente
mais humano do que a idéia da beleza grega” [
8]. Por não ter se
revelado humano, o deus grego, que se manifestava na natureza, em geral, para atingir
a forma do espírito, no interior do sujeito, precisaria ser encarnado em uma forma
humana universal ligada ao divino - como o filho de deus, por exemplo. Esta união
do finito com o infinito revelaria o absoluto e a própria idéia do eterno, como
no cristianismo, quando os seres humanos já podem extrair de si as leis absolutas,
livremente.
A Caminho da Estética
Hegeliana
Em seus cursos,
Hegel definia estética como ciência do belo da arte, a despeito das objeções em
contrário oferecidas por Kant, na
Crítica do Juízo (1790), e diferente de
Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762), que defendia a estética como ciência
do gosto e das sensações agradáveis, em geral. Hegel excluiu de sua estética todas
considerações sobre a beleza natural, reservando sua teoria para abordagem exclusiva
do belo na criação artística humana, ou filosofia da arte fina. Para Hegel, o objeto
artístico considerado belo seria superior ao belo natural, pois, de acordo com sua
concepção de espírito, tudo que fosse obra deste seria mais elevado do que o existente
na natureza. Isso porque, só o espírito seria verdadeiro, enquanto o belo natural
não passaria de um reflexo seu [
9].
A partir dessa definição
arbitrária, que se sustenta apenas na argumentação problemática da Fenomenologia,
tem-se o ponto de partida para descrição detalhada de como a arte caminha na direção
do local de encontro da filosofia com a religião. Por meio da arte seria possível
aos seres humanos conhecer suas próprias idéias e seus fins mais nobres. Os objetos
de arte não passariam de instrumentos de conscientização da sabedoria e religião
dos povos. As ciências, cujo objeto de estudo tem um caráter subjetivo, como aparentava
ser o caso da estética, no entanto, estariam expostas ao questionamento sobre a
existência de tal ou qual seria seu objeto. Hegel reconhecia, o quanto era necessário
demonstrar se uma representação ou intuição subjetiva existia ou não como objeto
verdadeiro, embora, efetivamente, não tenha apresentado os argumentos que sustentariam
tal tese.
De um modo geral,
deixando de lado esse pequeno detalhe da falta de argumentos, a filosofia sempre
admitiu como certo apenas o que possui o caráter de necessidade. Contudo, ao invés
de se preocupar em demonstrar sua filosofia da arte e do belo, Hegel procede tão
somente na apresentação de seu “desenvolvimento enciclopédico”, que faria parte
da sua própria filosofia. Destarte, sem maiores justificativas, assume que o conceito
de belo e o da arte são pressupostos do sistema filosófico [
10]. Contenta-se em
trabalhar inicialmente com as diversas representações da consciência vulgar. Seu
começo é o da mera existência da obra de arte, ou o que seja assim chamado. Apesar
de não poder apresentar o objeto de arte como resultado de uma demonstração, por
ser considerada uma forma de manifestação do espírito, isso por si só passa a validar
o seu próprio resultado, pois na concepção hegeliana, a filosofia estaria sempre
regressando em círculos sobre si mesma. Assim posto, passa, então, a confrontar
sua teoria com a dos demais, para depois fornecer elementos para formação do conceito
de arte.
Duas objeções, inicialmente,
são colocadas à filosofia da arte. Primeiro a infinidade de coisas que são consideradas
belas. Depois, a subjetividade em relação ao objeto que inviabilizaria a pretensão
científica, como já adiantara Kant. Por tentarem estabelecer uma ciência estética
com base nas coisas particulares e nas sensações, as teorias anteriores a Hegel
teriam sido um fracasso. Ao invés do fenômeno particular, a filosofia da arte deveria
começar a investigação por sua própria
idéia do belo, como o universal de
uma idéia platônica do Belo. Porém, sem adotar toda abstração de Platão (429-347
a.C.), mas sim algo mais concreto, de acordo com as necessidades filosóficas do
espírito da época de Hegel. De outro modo, a liberdade da imaginação geraria um
estado de confusão que impediria a estética de alcançar o patamar de ciência [
11].
Quanto à segunda
objeção, ao se considerar apenas as obras do espírito, tentava-se sustentar em si
mesma a verdade e conformidade das idéias de Belo, fundado apenas em uma suposição
arbitrária de que o espírito se descobre reflexivamente, por intermédio do aprendizado
estético e seu refinamento. A solução soa fácil, bem ao estilo hegeliano mais obscuro.
Evoluindo nessa compreensão de si mesmo, artisticamente, o espírito pode, em fim,
atingir a ciência verdadeira [
12].
Entre os gregos,
poder-se-ia dizer que havia um conceito provido pelo conteúdo de seu tempo, no qual
a beleza e o sublime prevaleciam. Já entre os alemães contemporâneos a Hegel a exigência
por representações gerais e abstratas colocava a arte em segundo plano. Concordando
com Kant, colocar a arte entre a sensibilidade e a razão seria o mesmo que lhe tirar,
segundo Hegel, qualquer pretensão de trato científico, pois a arte seria apenas
um meio e não um fim em si [
13]. Mas, nem mesmo
a crítica em torno da superficialidade das ilusões artísticas seria suficiente para
retirar a possibilidade de se encontrar uma essência que lhe fosse verdadeira. Para
Hegel, a arte teria o papel de revelar as manifestações universais, fazendo aparecer
a verdade e a realidade das coisas que existem por si mesmas, no momento em que
surgem ao espírito. Nesse sentido, a arte apresentaria o princípio superior, no
qual o espírito se reconheceria. O rigor científico que se pretende para a arte
se limitaria, então, ao desenvolvimento interior do conteúdo e meio de expressão
humano. Uma necessidade interna que a equipararia à ciência em geral [
14]- também uma necessidade
do espírito.
Ainda que, por um
lado, a arte pudesse estar ligada ao entretenimento, poderia também servir a si
própria como pensamento sobre o qual se reflete, independente do conteúdo que transportasse.
Desse modo, a arte poderia ser um meio para ligar o mundo exterior ao interior e
o sensível ao supra-sensível das religiões e o pensamento abrangente da liberdade
infinita. O espírito tornar-se-ia assim consciente daquilo que lhe interessa, dentro
dos limites materiais e da gradação da verdade, embora ficasse abaixo do estágio
que só se pode atingir com a religião e cultura racional que levam ao absoluto,
em última instância [
15].
Em tempos difíceis,
resta à arte tratar só do prazer e do juízo de gosto sobre o conteúdo de sua produção.
Toda e qualquer arte que imitasse a natureza seria, no entanto, incapaz de transmitir
a realidade viva das coisas aos sentidos. Os motivos que justificam a imitação estão
ligados ao prazer de mostrar o virtuosismo do artesão ao se comparar a Deus. Entretanto,
ao invés de imitar, os seres humanos deveriam sentir maior prazer ao produzir algo
que lhe seja próprio. O prazer provocado pela imitação já havia sido criticado por
Kant, na
Crítica do Juízo, quando o considerava tedioso e procurava afastar
o belo do agradável e das sensações empíricas [
16]. O que a arte
deveria “imitar” da natureza, segundo Kant, seria a capacidade de reproduzir concepções
internas que revelassem a forma ideal de uma finalidade para o objeto que se pretende
que seja universalmente reconhecida como bela e não uma simples cópia realista de
um objeto cuja essência é inacessível.
De Kant a Schelling
Da teoria da arte
kantiana, Hegel aproveita sua necessidade interna de assentimento, divergindo contudo
na possibilidade de se realizar uma ciência estética, a qual Kant era cético. Tal
divergência ocorre devido às objeções de Kant à possibilidade das idéias de um sujeito
traduzirem uma realidade verdadeira dos objetos. Ao conceber o juízo a partir de
sua característica reflexionante de subsumir o particular a um universal, Kant,
na interpretação hegeliana, não admitiria o acesso à natureza objetiva do objeto
em si, apenas sua reflexão subjetiva, o que em parte está correto.
Todavia, Hegel comete
um erro categorial ao tomar a finalidade real do objeto em si como a finalidade
a ser buscada pelo juízo estético, quando, de fato, o que Kant propunha era a sustentação
de sua finalidade ideal [
17]. Portanto, aquilo
que é considerado belo não comportaria a natureza imanente do objeto, mas uma simples
pretensão subjetiva de universalização. Extrapolando todas as advertências kantianas,
Hegel – bem como todos os românticos - imaginava que o sujeito e o objeto estavam
separados pelas faculdades do conhecimento, por causa de uma falta de conscientização
do espírito consigo mesmo. Uma vez que essa autoconsciência fosse alcançada, seria
possível chegar à superação daquela dicotomia [
18].
Depois de Kant,
outros autores tentaram ultrapassar os limites da crítica e propuseram uma unificação
do pensamento com a realidade. Hegel procurou estar à frente dessa tendência histórica
em retroceder aos erros do dogmatismo idealista somados aos do sensualismo empírico,
que resultaram no Romantismo. Johann Cristoph Friedrich von Schiller (1759-1805)
teria sido pioneiro ao se ocupar da conciliação do sujeito com o objeto, na busca
de uma expressão única da verdade. Para Hegel, Schiller consideraria o belo como
resultado da união entre o racional e o sensível, a verdadeira realidade [
19].
A partir dessa proposta,
Schelling, por sua vez, adotava a ciência de maneira absoluta, ou melhor, a filosofia
como ciência do Absoluto [
20]. Ao passo que
Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) teria sido inovador com a consideração do
espírito em um novo método de estudo histórico, no domínio da arte, em sua admiração
pelas cópias romanas das obras gregas [
21]. Críticos de arte
como os irmãos August Wilhelm Schlegel (1767-1815) e Friedrich Schlegel (1772-1829)
- editores da revista
Athenaeum - já defendiam com entusiasmo o movimento
romântico, sem no entanto, possuírem um profundo conhecimento filosófico. Apesar
dessa deficiência, Hegel reconhecia nesses críticos a sagacidade necessária para
o resgate de obras antigas, cujo valor artístico superava as dos contemporâneos.
Como Fichte, Fredrich Schlegel e Schelling teriam afirmado a autoridade maior do
eu absoluto na hora de decidir sobre tudo que o cerca. Colocando-se acima de todos,
o gênio romântico vê sua relação com os demais de modo irônico. Porém, amiúde, a
insatisfação consigo mesmo levaria o eu ao estado mórbido de tédio, provocando a
autoironia. Desta forma, os artistas irônicos não conseguiriam produzir nenhum conteúdo
artístico relevante, pois logo eliminariam em suas obras aquilo que pretendesse
ser substancial, sobrando apenas produções vulgares e absurdas [
22].
O Plano da Estética
Arte, para Hegel,
seria, portanto, a emanação da idéia absoluta, cuja finalidade seria a representação
sensível do belo. Em outras palavras, o conceito do belo artístico representaria
o próprio Absoluto. Entrementes, alguns conteúdos não serviriam para sua representação
concreta, como toda arte abstrata. Isto inclui as representações orientais do deus
considerado simples, uno e supremo. Só o Deus encarnado pôde ser figurado nas artes
plásticas, pois reunia o geral e o particular em torno de algo concreto [
23].
Em vez do isolamento,
a arte procuraria a participação de outros espíritos. Sua função seria tornar a
idéia acessível à contemplação, por intermédio das formas sensíveis, unindo idéia
e forma. Ao ascender a níveis mais altos, a arte permitiria a expressão da verdade
e a consciência de si mesmo ao espírito. Tal progresso seria de ordem espiritual
sobre a reflexão das idéias do mundo em que os seres humanos se inserem. No final,
todas as artes particulares formariam uma totalidade compreensível ao Absoluto [
24].
A ciência estética
iniciaria do estudo da idéia geral do belo e sua relação com a criação subjetiva.
A seguir, com o conceito do belo verificar-se-ia as diversas maneiras de interpretá-lo
nas artes particulares. E, por fim, se descreveria o desenvolvimento histórico das
suas realizações e o estabelecimento de um sistema abrangente que englobasse todas
as variações artísticas [
25].
A perfeição em uma
obra de arte exprimiria a exata correspondência da idéia com seu ideal, ou seja,
seu conteúdo e forma aproximar-se-iam da verdade profunda. As diferentes formas
de arte, ajudariam a discernir as idéias mais próximas da verdade, daquelas que
se afastam. As relações entre conceito e realidade se dariam, primeiro pela busca
da unidade verdadeira, partindo da abstração à concretude. Nesse processo, a idéia
tentaria encontrar sua forma absoluta, passando pelas convulsões violentas que constituem
o sublime e a forma do
simbolismo em arte, mas que não forneceriam a beleza
[
26].
Em seguida, as artes
clássicas procurariam adequar a forma ao conceito. O sensível e seu aspecto
figurado deixariam de ser natural. A figura humana passa a representar a sua espiritualidade
no tempo, realizando a beleza perfeita. De tal sorte, que o espírito tornar-se-ia
acessível à intuição. Contudo, ainda nos clássicos, o espírito mostrar-se-ia como
particular e não como absoluto, pois se ligaria apenas à forma externa humana, sem
espiritualidade pura [
27].
Só com o
romantismo
e a arte sacra cristã é que a idéia poderia se libertar do conteúdo formal humano
e representar a espiritualidade interior plena da união da verdade com o conceito,
independente do sensível. Ao contrário do simbolismo, o romantismo cristão traria
o espírito no conteúdo de suas obras e não uma mera representação, pois faria com
que o espírito apreciasse a si mesmo e não o objeto exposto [
28]. Tudo isso ocorreria
porque o ser humano é um animal capaz de adquirir consciência de suas funções orgânicas
e espirituais. Para Hegel, o cristianismo teria a propriedade de despertar internamente
a espiritualidade através de uma
intuição intelectual. A figura que representa
o deus cristão pode ser ultrapassada, permitindo o acesso à unidade que o espírito
almeja. Tratar-se-ia, portanto, de uma arte subjetiva que exprimiria todos os sentimentos
da alma, encontrando aí sua significação. O espírito e a idéia são livres. Não se
contemplam mais como sensível, mas o próprio espírito internamente em sua mais elevada
perfeição [
29].
O espírito é o verdadeiro
conteúdo do belo. O Deus é o ideal que está no centro da representação artística.
Desde as formas naturais inorgânicas, até a pintura, a música e a poesia romântica,
o caminho da arte é conduzir à realidade adequada a Deus. E o divino se revela pelos
três elementos dessas artes: cor, som e luz. Nesse ínterim, a música vem à frente
da transformação na sensibilidade abstrata e não concreta, pois, na estética hegeliana,
o som não é um elemento material. Apenas a poesia conseguiria dar concretude ao
som de uma melodia, acrescentando-lhe uma letra. Um sinal de representação para
expressão do espírito. Assim, pintura, música e poesia constituiriam no romantismo
as artes subjetivas, das quais a última seria a mais perfeita, enquanto a arquitetura
e a escultura teriam sua expressão máxima, respectivamente, no simbolismo e classicismo
[
30].
A riqueza de concepções
que faz parte da arte impede que se possa determinar um princípio superior tendo
em vista apenas um de seus aspectos. Depois da poesia, o progresso do espírito leva
à necessidade da prosa para se ultrapassar toda forma de arte, no pensamento
discursivo, seu elemento principal. Em seu desenvolvimento, a arte ergue uma galeria,
onde o espírito e a beleza se apresentam simultaneamente aos seus realizadores em
um trabalho que só terá fim quando passarem milhares de anos na história e toda
verdade for desvelada.
Vocês vêem como, aqui, aquele processo
introduzido pela filosofia anterior [31] foi entendido, e como, da maneira mais decidida, foi
tomado como objetivo e real. Por mais meritória, pois, que se tenha considerado
a veleidade, que Hegel teve, de perceber a natureza e significação meramente lógicas
da ciência que encontrou antes de si, por mais meritório que seja, em particular,
que ele tenha salientado como tais as relações lógicas ocultas no real pela filosofia
anterior, é preciso entretanto confessar que, na execução efetiva, sua filosofia
(justamente pela pretensão a uma significação objetiva, real) se tornou em boa parte
mais monstruosa do que era a precedente e que, por isso, também não fui injusto
com essa filosofia quando a denominei... um episódio (SCHELLING, F.W.J. “Hegel”,
in História da Filosofia Moderna, p. 157).
Notas
1. Veja HEGEL, G.
W. F.
Fenomenologia do Espírito, "Introdução", p. 57.
2. Veja HEGEL, G.W.F.
Op. cit., idem, p. 59.
3. Veja HEGEL, G.W.F.
Idem, "A Certeza de Si Mesmo", A., p. 113.
4. HEGEL, G.W.F.
Ibidem,
"O Saber Absoluto", p.473.
5. Veja HEGEL, G.W.F.
Ibidem, “A Religião”, B, pp.408-9.
6. Veja HEGEL, G.W.F.
Ibid., op. cit., 412-21.
7. Veja HEGEL, G.W.F.
Ibid, idem, 421-33.
8. HEGEL, G.W.F.
Filosofia
da História, II part., cap. 2, p. 209.
9. Veja HEGEL, G.W.F.
A Idéia e o Ideal, cap. I, seç. I, § I, pp. 79-80.
10. Veja HEGEL, G.W.F.
Op. cit., idem, seç. I, § II, pp. 82-3.
11. Veja HEGEL, G.
W. F.
Idem, idem, § III, pp. 84-8.
12. Veja HEGEL, G.W.F.
Ibidem, ibidem, p. 89.
13. Nesse passo fica
flagrante a contradição entre as intenções hegelianas de tornar a estética uma ciência,
quando a arte não passa de um meio para elevação do espírito ao absoluto.
14. Veja HEGEL, G.W.F.
Ibid., ibid., pp. 90-3.
15. Veja HEGEL, GW.F.
Ibid., ibid., pp, 93-4.
16. Veja KANT, I.
Crítica
do Juízo, § 22, pp. 239-43.
17. Veja KANT, I.
Op.
Cit., § 57, pp. 346-51.
18. Veja HEGEL, G.W.F.
Ibid, cap. III, § I, 127-32.
19. Veja HEGEL, G.W.F.
Ibid, idem, § II, pp. 132-33.
20. Veja SCHELLING,
F. W. J.
Idéias para uma Filosofia da Natureza, “apêndice”, p. 50.
21. Veja HEGEL, G.W.F.,
Ibid. ibid., p. 134.
22. Veja HEGEL, G.W.F.,
Ibid. ibid., pp. 134-8.
23. Veja HEGEL, G.W.F.,
Ibid., cap. IV, p. 139.
24. Veja HEGEL, G.W.F.,
Ibid. idem., pp. 140-1.
25. Veja HEGEL, G.W.F.,
Ibid. ibid., p. 141.
26. Veja HEGEL, G.W.F.,
Ibid. ibid., pp. 143-5.
27. Veja HEGEL, G.W.F.,
Ibid. ibid., pp. 145-6.
28. Veja HEGEL, G.W.F.,
Ibid. ibid., pp. 146-7.
29. Veja HEGEL, G.W.F.,
Ibid. ibid., pp. 147-9.
30. Veja HEGEL, G.W.F.,
Ibid. ibid., pp. 149-55
31. Schelling refere-se
a sua obra
Idéias para uma Filosofia da Natureza (1797), que foi apresentada
no capítulo anterior ao dedicado a Hegel, em sua
História da Filosofia Moderna.